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22/02/2017

Leitura espiritual


A CIDADE DE DEUS


Vol. 1

CAPÍTULO XXXII

O sacramento da Redenção de Cristo nunca faltou nos tempos passados e sempre foi anunciado por diversos sinais.




Desde a origem da humanidade que este mistério da vida eterna foi, por meio de símbolos e de sinais sagrados apropriados aos tempos, anunciado pelos anjos aos que o deviam conhecer. Depois, o Povo Hebreu foi congregado numa espécie de Estado encarregado de realizar este mistério. Aí, pela voz de certos homens, uns disso conscientes outros inconscientes, foi predito tudo o que devia acontecer desde a vinda de Cristo até aos nossos dias e depois. Posteriormente este povo dispersou-se por diversas nações, para dar testemunho das Escrituras em que se anunciava a salvação eterna que viria a realizar-se em Cristo. Porque, não apenas as profecias, que consistem em palavras, nem apenas os preceitos da vida, que regem os costumes e a religião, e estão contidos nessas Escrituras, mas também os ritos sagrados, o sacerdócio, o tabernáculo ou o templo, os altares, os sacrifícios, as cerimónias, os dias de festa e as outras instituições pertinentes ao serviço a Deus devido, tudo isto figurou e pressagiou os acontecimentos que para a vida eterna dos fiéis em Cristo se realizaram, como nós acreditamos, se realizam, como estamos a ver, e se virão a realizar, como esperamos.

CAPÍTULO XXXIII

Só a religião cristã pôde descobrir o engano dos espíritos malignos que se alegram com os erros dos homens.

Pois foi esta religião, única e verdadeira, que foi capaz de pôr a descoberto que os deuses dos gentios mais não são que impuros demónios. Aproveitando-se das almas dos mortos e sob a aparência de criaturas deste mundo, desejando passar por deuses, têm-se deleitado com uma orgulhosa impudência nas honras quase divinas, que mais não eram senão abominação e torpeza e têm invejado às almas humanas a sua conversão ao verdadeiro Deus. De tão monstruosa e sacrílega tirania se libertou o homem pela sua fé n’Aquele que, para o elevar, lhe deu o exemplo de uma humildade igual em grandeza ao orgulho que fez cair os demónios. Entre estes é preciso colocar, não somente os deuses de que já tanto falámos e tantos outros de outras terras e povos, mas também aqueles de que falamos agora, os deuses escolhidos para constituírem como que um Senado dos deuses, a todos preferidos, não pela dignidade das suas virtudes, mas pela fama dos seus crimes. Nos seus esforços por reduzir o seu culto a explicações naturais, Varrão, procurando coonestar torpezas, não é capaz de as enquadrar e harmonizar com as suas explicações. É que as verdadeiras causas destes ritos não são as que ele crê ou pretende fazer crer. Se, efectivamente, houvesse tais causas ou outras semelhantes, elas, sem dúvida, não teriam nenhuma relação com Deus e a vida eterna, que há que procurar na religião. Mas, dando a estes ritos uns laivos de explicação tirada dos seres da natureza, elas teriam pelo menos atenuado um pouco o escândalo causado pela obscenidade e absurdidade desses mesmos ritos mantidos sem explicações. Foi assim que tentou fazer para certas fábulas do teatro ou certos mistérios do templo, sem justificar os teatros ao compará-los aos templos, mas antes condenando os templos ao compará-los aos teatros. Pelo menos, esforçou-se por, com semelhantes explicações naturais, apaziguar o bom senso revoltado por tais horrores.

CAPÍTULO XXXIV

Dos livros de Numa Pompílio que o Senado mandou queimar para se não divulgarem as causas das instituições religiosas tal como neles vinham expostas.

Bem ao contrário, sabemos, como no-lo relata esse tão douto Varrão, que a revelação das causas dos ritos sagrados referida nos livros de Numa Pompílio, pareceu a tal ponto intolerável e foi considerada indigna, não só de ser lida pelos homens religiosos, mas mesmo de ser conservada por escrito às ocultas.

É a ocasião de eu dizer o que no livro terceiro desta obra eu tinha prometido relatar no momento próprio. Efectivamente, assim se lê no livro do mencionado Varrão acerca do culto dos deuses:

Um certo Terêncio possuía uma propriedade perto do Janículo. O seu boieiro, ao arrastar o arado perto do túmulo de Numa Pompílio, desenterrou os livros em que se encontravam escritas as causas das instituições religiosas. Levou-os a Roma, ao pretor. Este viu o princípio deles e deferiu ao Senado questão de tanta monta. Aí, quando leram algumas das razões que explicavam cada uma das instituições, o Senado concordou com o falecido rei, determinando os Senadores (padres conscritos) [i], religiosos como eram, que o pretor queimasse esses livros [ii].

Pense cada um o que quiser. Mais ainda: diga qualquer ilustre defensor de tamanha impiedade o que lhe sugerir a sua extravagante teimosia. Quanto a mim, basta-me constatar que as explicações religiosas escritas pela mão do rei Pompílio, fundador da Religião Romana, tiveram de se conservar escondidas do povo, do Senado, dos próprios sacerdotes. Foi este rei em pessoa quem, impelido por uma curiosidade culpável, se iniciou nos segredos dos demónios e os reduziu a escrito para os recordar quando os lesse. Mas, embora, por ser rei, nada tivesse a temer, não se atreveu nem a comunicá-los nem a perdê-los, destruindo-os de qualquer maneira. Assim, como não queria que ninguém conhecesse coisas tão abomináveis, e como, por outro lado, receava profaná-los, com o que atrairia a ira dos deuses, enterrou-os num sítio que julgou seguro — não pensando que um arado poderia passar tão perto da sua sepultura. Quanto ao Senado, teve receio de ter de condenar a religião dos antepassados e viu-se consequentemente constrangido a concordar com Numa. Todavia, julgou estes livros tão perniciosos que se recusou a enterrá-los de novo, para evitar que a curiosidade humana procurasse, com mais ardor, uma coisa já tomada pública — e mandou destruir pelo fogo tão nefandos documentos. E assim, porque se julgou necessária a manutenção desse culto, — a ilusão sustentada pela ignorância das causas pareceu preferível às perturbações que o seu conhecimento suscitaria na cidade.


CAPÍTULO XXXV

Da hidromancia, na qual Numa foi mistificado por certas imagens dos demónios.

Como lhe não foi enviado nenhum profeta de Deus, nenhum santo anjo, Numa viu-se forçado a recorrer à hidromancia para ver na água as imagens dos deuses, ou antes, as mistificações dos demónios e aprender o que devia instituir e observar em matéria de ritos sagrados. O mesmo Varrão nos refere que este género de adivinhação, importado da Pérsia, foi praticado por Numa e mais tarde pelo filósofo Pitágoras. Acrescenta ainda que, desde que se empregue sangue, se podem consultar também os infernos (método que também se chama hidromancia ou necromancia — que é tudo o mesmo: aí, ao que parece, são os mortos quem revela o futuro). Por que artifícios o conseguem, eles lá sabem. O que eu não quero é afirmar que estes artifícios costumavam ser proibidos e punidos pela severidade das leis dos gentios nas suas cidades antes da vinda do nosso Salvador. Não, repito, não o quero afirmar: é que talvez, de facto, fossem então permitidos. Mas não deixou de ser graças a tais artifícios que Pompílio tomou conhecimento dessas instituições sagradas cujos ritos publicou e cujas explicações enterrou (tal foi o medo que ele próprio sentiu pelo que ficou a saber) contidas nos livros que o Senado entregou às chamas logo que os descobriu. A que propósito vem, pois, Varrão, não sei com que pretensas causas físicas para explicar esses ritos? Se os livros de Numa contivessem semelhantes explicações, não os teriam queimado com certeza, ou então os livros do mesmo Varrão dedicados ao pontífice César teriam sido, da mesma forma, lançados ao fogo pelos Senadores (padres conscritos). Quanto ao acto de Numa Pompílio, carreando, isto é, transportando água para as suas operações de hidromancia, ele explica a tradi­ção do seu casamento com a ninfa Egéria, conforme o expõe Varrão no citado livro. Assim costuma acontecer que factos reais, uma vez aspergidos de mentiras, se transformam em fábulas. Foi, pois, pela hidromancia que este curiosíssimo rei romano aprendeu os ritos sagrados que os pontífices deviam conservar nos seus livros, e as explica­ções destas cerimónias que ele quis ser o único a conhecer. Foi por isso que, depois de as ter escrito em segredo, teve o cuidado de as enterrar, para as subtrair ao conhecimento dos homens.

Portanto, ou as paixões dos demónios lá descritas eram tão sórdidas, tão perniciosas, que toda a teologia civil delas haurida devia parecer execrável, mesmo a homens que tinham aceitado tantas infâmias nos seus ritos sagrados, ou então revelava-se aí que todos estes deuses, tidos por imortais desde há tanto tempo pela quase totalidade dos povos pagãos, mais não eram que homens falecidos. Estes ritos agradavam aos demónios que, firmando a sua autoridade em falsos milagres, se faziam adorar em vez desses mortos, fazendo-se passar por deuses. Por uma secreta Providência do verdadeiro Deus, os demónios, tomados favoráveis pelos artifícios da hidromancia, puderam revelar ao seu amigo Pompílio todas estas ignomínias, sem, todavia, o advertirem de, à sua morte, as queimar em vez de as enterrar. De resto, para evitarem que elas fossem conhecidas, não puderam eles impedir nem que a charrua as exumasse nem que a pena de Varrão fizesse chegar até nós o relato deste facto. É que eles não podem fazer mais do que lhes é permitido. Por um justo e profundo desígnio de Deus soberano, foi-lhes permitido afligir ou mesmo sujeitar e enganar aqueles que é justo tratar assim porque o merecem.

Na verdade, quão perniciosos, quão afastados do culto da verdadeira divindade foram esses escritos julgados, pode-se deduzir do facto de o Senado achar preferível queimar os livros, que Pompílio tinha escondido a recear o que receou aquele que se não atreveu a fazê-lo. Por conseguinte, quem nem mesmo agora quer levar uma vida religiosa, procure a eterna em tais mistérios; mas quem não desejar alianças com os demónios malignos, não tema a perniciosa superstição com que são venerados, mas, bem ao contrário, reconheça a verdadeira religião graças à qual eles são desmascarados e vencidos!



(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Padres conscritos, nome por que eram tratados os patrícios (patres) recrutados (conscripti) para constituírem o Senado desde que este fora criado por P. Valério depois da expulsão dos reis.
[ii] Tito Livio, Hist. XL, 29.

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