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21/02/2017

Leitura espiritual


A CIDADE DE DEUS 


Vol. 1

CAPÍTULO XXVII

Explicações físicas imaginadas por alguns, que não honram a verdadeira divindade e cujo culto não é o que convém à verdadeira divindade.




Vemos que estes deuses escolhidos se tornaram mais conhecidos do que os outros, não porque se tenham posto em relevo os seus méritos, mas sim porque os seus crimes não ficaram ocultos. Por isso é mais verosímil que tenham sido homens, como o testemunham não só os escritos dos poetas, mas também a tradição histórica. De facto, o que diz Vergílio:

O primeiro que veio do alto Olimpo foi Saturno, fugindo das armas de Júpiter e desterrado dos reinos perdidos [i],
e os versos que se seguem sobre este facto referem-se a acontecimentos contados por Evémero, cujo relato foi traduzido por Énio para latim. E, como disseram já tantas coisas os que antes de mim escreveram em grego e em latim contra estes erros, não vale a pena deter-me nisso.

Quando considero as teorias naturais pelas quais os homens doutos e argutos se esforçam por converter as coisas humanas em coisas divinas, constato que tudo nelas recai unicamente em obras temporais e terrestres, numa natureza corporal que, apesar de invisível, nem por isso é menos mutável e, por conseguinte, de maneira nenhuma poderia ser o verdadeiro Deus. Se ao menos elas se exprimissem em simbolismos conformes com o sentido religioso, certamente que se lamentaria que eles não tenham servido para anunciar e glorificar o verdadeiro Deus, mas seriam de certo modo suportáveis pelo simples facto de não obrigarem nem prescreverem qualquer rito imundo e torpe.

Mas, uma vez que não é lícito adorar, em lugar do verdadeiro Deus — único que pode tomar feliz a alma em que habita — quer um corpo quer uma alma, quanto mais ilícito não será adorá-los duma forma que não assegura ao corpo e à alma do adorador nem a salvação nem a honra humana.

Por isso, se, com templos, sacerdotes e sacrifícios (que só ao verdadeiro Deus são devidos), se venera algum elemento do mundo ou algum espírito criado (mesmo que não seja imundo nem mau) — não é com certeza mau porque sejam más essas honras, mas porque elas são de tal natureza que só devem ser empregadas no culto daquele a quem se deve todo o culto e serviço.

Por outro lado, se se pretende que ridículas e monstruosas estátuas, sacrifícios homicidas, coroas depostas sobre os órgãos viris, o comércio da prostituição, o corte dos membros, as mutilações vergonhosas, as consagrações de invertidos, a celebração de jogos impuros e obscenos, contribuem para honrar o verdadeiro Deus, isto é, o Criador de todas as almas e de todos os corpos, peca-se, não porque se adore um ser que não devia ser adorado, mas porque se não adora como deve ser o Deus que se deve adorar.

Mas recorrer a tais meios, isto é, a torpezas e infâ­mias, para adorar, não o verdadeiro Deus, criador da alma e do corpo, mas uma criatura, mesmo inocente, seja ela alma ou corpo, seja conjuntamente alma e corpo, é pecar duas vezes contra Deus, adorando em seu lugar um ser dele diferente, adorando-o de uma forma indigna não só dele mas de qualquer outro.

De que modo os pagãos adoram, isto é, quão torpe e perversamente adoram — está bem à vista! Que objecto ou que seres adoram eles — é assunto que ficaria por esclarecer se a sua história não atestasse que tal culto, cuja hediondez e ignomínia confessam, se dirige a divindades que o exigem com terríveis ameaças. Fica, pois, dissipado todo o equívoco: são horríveis demónios, espíritos imundos que toda esta teologia civil convida a se mostrarem nessas estúpidas imagens, para possuírem, por intermédio delas, o coração dos insensatos.

CAPÍTULO XXVIII

A teologia de Varrão está em total desacordo consigo própria.

Que vale, pois, o raciocínio, aparentemente tão subtil, de um homem tão douto e arguto como Varrão, ao tentar reduzir todos esses deuses ao Céu e à Terra e transferi-los para aí? Não pode! Os deuses escorregam-lhe das mãos, escapam-se, resvalam e caem. Ao falar das fêmeas, isto é, das deusas, escreve:

Como disse no primeiro livro consagrado aos lugares, é dupla a origem atribuída aos deuses: o Céu e a Terra. É por isso que a uns deuses se chama celestes, e a outros terrestres. Nos livros anteriores, começámos pelo Céu ao falarmos de Jano que, na opinião de alguns, é o Céu e, na opinião de outros, é o mundo. Assim, ao tratarmos das fêmeas, começá­mos por Telure.

Compreendo as dificuldades de um tão elevado engenho. É de facto arrastado por certas verosimilhanças a fazer do Céu um agente e da Terra um paciente. E por isso que ele atribui a um uma virtude masculina e à outra uma virtude feminina — e não repara que quem fez um e outra foi o que tudo isso fez.

Daí que, no livro precedente, também assim tenha interpretado os famosos mistérios de Samotrácia e prometa, com uma seriedade quase religiosa, expor por escrito e enviar aos seus, coisas que lhes são desconhecidas. Diz ele que de muitos indícios tirou a conclusão de que, entre as estátuas, uma representa o Céu, outra a Terra e outra os modelos das coisas a que Platão chama ideias. Quer que em Júpiter se veja o Céu, em Juno a Terra, em Minerva as ideias: o Céu pelo qual tudo é feito, a Terra de que tudo é feito, o modelo segundo o qual tudo se faz. Abstenho-me de referir aqui que Platão concede a essas ideias um tal poder que o Céu, longe de fazer seja o que for em conformidade com elas, ele próprio é que seria feito à sua semelhança. Direi apenas que, no seu livro acerca dos deuses escolhidos, (Varrão) perdeu de vista o alcance desses três deuses, com os quais abarcava a bem dizer a totalidade das coisas. Realmente, ele atribui ao Céu as divindades masculinas, à Terra as femininas e entre estas últimas colocou Minerva, que um pouco antes tinha posto acima do próprio Céu. Além disso, um deus masculino — Neptuno — está no mar, que pertence mais à Terra do que ao Céu. E por fim Dísparter (Dis Pater), chamado em grego Plutão, também deus masculino e irmão dos outros dois, apresenta-se como um deus da Terra, e dela ocupa a parte superior, ocupando Prosérpina, sua esposa, a parte inferior. Como é que pretendem, então, referir os deuses ao Céu e as deusas à Terra? Que é que há de sólido, de coerente, de sensato, de preciso, nesta exposição?

Telure é de facto o princípio das deusas, a Grande- -Mãe em volta da qual os invertidos e mutilados, castrados e contorcionistas exibem a sua ruidosa e louca torpeza. Para que, então, chamar a Jano a cabeça dos deuses, e a Telure a cabeça das deusas? Nem o erro pode do primeiro fazer uma cabeça sequer, nem a loucura pode curar a da segunda. Porque é que tentam, em vão, referir tudo isto ao Mundo? Mesmo que isso fosse possível, nenhum espí­rito religioso adoraria o Mundo em vez do verdadeiro Deus. E todavia, que isso não é possível, demonstra-o a evidência da verdade. Atribuam tudo isto a homens que já morreram, a demónios detestáveis — e não haverá mais dificuldades.

CAPÍTULO XXIX

Tudo o que os fisiólogos atribuem ao Mundo e às suas partes deve ser atribuído ao único Deus verdadeiro.

Vejamos como tudo o que a teologia atribui ao mundo com a ajuda de razões pretensamente naturais, deve ser efectivamente atribuído, sem a menor suspeita de sacrilégio, ao verdadeiro Deus, criador do Mundo, autor de toda a alma e de todo o corpo! Nós adoramos a Deus, e não o Céu nem a Terra, que são partes constitutivas do Mundo; nem a alma ou as almas difundidas em todos os seres vivos, mas Deus que fez o Céu e a Terra e tudo o que neles se contém, autor de toda a alma, quer simplesmente viva e carente de sensibilidade e de razão, quer também a dotada de sensibilidade ou também de inteligência.

CAPÍTULO XXX

Por que faculdade-sentimento religioso (qua pietate) distinguimos o Criador das criaturas de modo a não adorarmos, em vez de um só, tantos deuses quantas as obras de um só autor.

E, para começar a percorrer as obras do único Deus verdadeiro — obras que levaram os pagãos à invenção de uma multidão de falsos deuses, esforçando-se por, com aparências de honestidade, interpretarem os mais torpes e perversos mistérios — digamos: Nós adoramos a Deus
que às naturezas, de que é criador, fixou o começo e o fim, quer da sua existência, quer da sua actividade;
que detém, conhece e ordena as causas dos seres;
que conferiu às sementes a sua virtualidade;
que comunica aos vivos, que ele próprio escolheu, uma alma racional, chamada espírito;
que dotou os homens da faculdade e uso da palavra; que concedeu aos espíritos, como lhe aprouve, o dom de anunciar o futuro e que ele próprio prediz por intermédio de quem lhe apraz, como, por intermédio de quem lhe apraz, cura os doentes;
que governa os inícios, desenvolvimentos e termos das próprias guerras, quando desta forma o género humano merece ser corrigido e castigado;
que cria e rege o fogo tão violento e tão impetuoso deste mundo, como convém à imensidade da natureza;
que cria e governa todas as águas;
que fez o Sol, a mais brilhante das luzes materiais, ao qual deu força e movimentos convenientes;
que mesmo dos Infernos não retira o seu poder e domínio;
que fornece aos mortais sementes e alimentos secos e líquidos, apropriando-os às suas naturezas;
que sustém a Terra e a toma fecunda:
que dá com largueza os frutos dela aos animais e aos homens;
que conhece e ordena as causas principais e as que destas dependem;
que fixou o curso da Lua, acomodou os caminhos do Céu e da Terra às mudanças de lugar;
que às inteligências humanas, criaturas suas, concedeu também o conhecimento das diversas artes para ajudar a vida e a natureza;
que estabeleceu a união do macho e da fêmea para ajudar a propagar a vida;
que aos agregados humanos, para se aquecerem e iluminarem, dotou de um fogo terreno próprio para todos os usos.

Tais são as obras ou atributos que o tão douto e arguto Varrão, sabendo-o de outrem ou por sua iniciativa, se esforçou por distribuir entre os deuses escolhidos, levado não sei por que interpretações físicas. De tudo isto é autor e animador o único Deus verdadeiro, mas à maneira de Deus, isto é, estando todo em toda a parte, sem estar limitado por qualquer espaço, nem ligado por qualquer vínculo, incindível em partes, absolutamente imutável, enchendo o Céu e a Terra de um poder presente, por natureza não carente.

Também governa tudo quanto criou, de tal maneira que a cada uma das suas criaturas é dado provocar e dirigir [686] os seus próprios movimentos. E, ainda que nada possam sem ele, com ele não se confundem. Realiza também muitas coisas por intermédio dos anjos, mas só nèle é que está a origem da felicidade dos anjos. Mesmo quando, por certas causas, ele envia anjos aos homens, não é todavia pelos anjos mas por si próprio que torna felizes os homens, tal qual como toma felizes os anjos.

É deste único Deus verdadeiro que esperamos a vida eterna.

CAPÍTULO XXXI

Benefícios que, além dos gerais, Deus concede aos que seguem a verdade.

Temos realmente dele um grande sinal do seu amor para com os bons, além dos benefícios que, de acordo com a administração, já por nós mencionada, da natureza, ele concede aos bons e aos maus. A realidade é que nunca seremos capazes de lhe agradecer a dádiva de sermos, de vivermos, de contemplarmos o Céu e a Terra, de possuirmos inteligência e razão para procurarmos Aquele que todos estes bens criou. E todavia, acabrunhados pelo peso dos nossos pecados, desviados da contemplação da sua luz, cegos pelo amor das trevas, ou seja, da iniquidade, não fomos completamente abandonados — mas enviou-nos o seu Verbo, o seu único Filho, que, na sua carne de nós assumida, nasceu e sofreu para que soubéssemos quanto Deus amou o homem e ficássemos purificados de todos os pecados por esse sacrifício sem igual e, com a caridade do Espírito Santo, difundida em nossos corações, chegássemos ao eterno descanso e inefável doçura da sua contemplação. Que corações, que línguas poderão ter a pretensão de lhe prestarem condignas acções de graças?



(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Vergílio, Eneida, VIII, 319-320.

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