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14/02/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS

Vol. 1

LIVRO VI

CAPÍTULO XI

O que Séneca pensava dos Judeus.

Entre as superstições da teologia civil, Séneca criticava também os ritos sagrados dos Judeus. Sobretudo, o sabbat. Diz ele que era uma prática inútil, porque, repetindo- -se de sete em sete dias, faz perder na ociosidade quase um sétimo da vida, além de que muitas tarefas urgentes são prejudicadas com esta folga. Quanto aos cristãos, já então inimigos declarados dos Judeus, não ousou falar deles em qualquer sentido, nem para os louvar contrariamente aos velhos hábitos da sua pátria, nem para os maldizer contrariamente talvez ao seu modo de sentir. Acerca dos Judeus, eis o que ele diz:

Os costumes desta gente perversa adquiriram tal poder que já se impuseram em todas as regiões: os vencidos impuseram as suas leis aos vencedores [i]

Dizendo isto, mostrava a sua admiração; mas, ignorando os planos divinos, acrescenta esta observação em que bem se revela o que sentia acerca da significação dos seus ritos sagrados:

Eles sabem quais as origens dos seus ritos; mas a maior parte do povo pratica-os sem saber o que faz [ii].

Mas estes ritos sagrados — porque e em que medida foram instituídos pela autoridade divina, como é que posteriormente esta mesma autoridade divina os retirou, em ocasião oportuna, ao povo de Deus, ao qual foi revelado o mistério da vida eterna, — já o expusemos em outra parte, sobretudo nos tratados contra os maniqueus, e é assunto de que voltaremos a tratar, em momento mais oportuno, nesta obra.

CAPÍTULO XII

Verificada a inutilidade dos deuses gentílicos, que nem à vida temporal conseguem prestar ajuda, é indubitável que eles a ninguém são capazes de conceder a vida eterna.

Até agora, tratámos das três teologias que os Gregos denominam mítica, física e política e que, em latim, se podem chamar fabulosa, natural e civil, e demonstrámos que a vida eterna nem da fabulosa — que é abertamente reprovada pelos próprios adeptos da multidão dos falsos deuses — nem da civil — a qual mais não é que uma parte em tudo àquela semelhante, se não mais detestável ainda, — se pode esperar. Se se achar insuficiente o que neste livro ficou dito, pois acrescentem-se-lhe os numerosos desenvolvimentos dos livros precedentes, sobretudo do quarto, acerca de Deus dispensador da felicidade. De facto, se a felicidade fosse uma deusa, a quem deveriam os homens consagrar-se, tendo em mira a vida eterna, senão à felicidade? Mas como ela é, não uma deusa mas favor divino, a que deus nos havemos de consagrar senão ao Deus que concede a felicidade, nós que com caridosa piedade amamos a vida eterna, onde se encontra a felicidade plena e verdadeira? Ora, todos esses deuses que se adoram de uma forma tão vergonhosa e que se irritam ainda mais vergonhosamente, quando se lhes recusam tais adorações, confessando assim que são espíritos imundos, são incapazes de conceder a felicidade. Depois de tudo isto, ninguém, parece-me, pode pôr em dúvida o que fica dito. Enfim, como pode conceder a vida eterna quem não pode conceder a felicidade? Realmente, nós chamamos vida eterna àquela em que a felicidade não tem fim. Se a alma vive, com efeito, nas penas eternas que torturam igualmente os espíritos imundos, existe para ela mais uma morte eterna do que uma vida. Não há pior nem mais completa morte do que aquela em que a morte não morre! Mas, como a natureza da alma, criada imortal, não poderá ser privada de toda a vida, a sua morte suprema consiste em ser separada da vida de Deus numa eternidade de suplício. Por conseguinte, a vida eterna, isto é, que não tem fim, só a pode conceder aquele que concede a verdadeira felicidade.

Ora esses deuses, que a teologia civil venera, não podem concedê-la, como se provou. Não temos, pois, que os venerar, quer na mira dos bens temporais e terrenos, como já demonstrámos nos cinco livros precedentes, quer principalmente na da vida eterna, aquela que se segue à morte, como já mostrámos neste e também nos livros anteriores.

Mas, como o hábito inveterado cria raízes bem profundas, se alguém julgar que não expus suficientemente a necessidade de rejeitar e pôr de parte a teologia civil, pois então leia-se atentamente o livro que se segue, destinado a completar, se Deus me ajudar, o presente.

LIVRO VII

Principais deuses da teologia civil: Jano, Júpiter, Saturno e outros por cujo culto se não alcança a felicidade da vida eterna.

PREFÁCIO

Pois que tentei com a maior diligência arrancar e extirpar as velhas e perniciosas doutrinas, inimigas do verdadeiro sentimento religioso, que um inveterado erro do género humano inculcou poderosa e profundamente nos espíritos tenebrosos, e, de acordo com as minhas débeis forças e fortalecido com a ajuda divina, cooperei com a graça d’Aquele que, como verdadeiro Deus que é, tem o poder de a dar, — queiram os mais prontos e mais bem dotados, aos quais bastam os livros anteriores para seu esclarecimento, ter para comigo paciência e calma e não julguem supérfluo para os outros o que para si próprios não julgam necessário! É que se trata de um assunto muito importante — este de mostrar que a verdadeira e verdadeiramente santa Divindade, embora seja dela que nos vêm também todos os socorros necessários à fragilidade de que somos portadores, deve ser procurada e honrada, não por causa desta vida mortal, que não passa de transitório fumo, mas sim por causa da vida bem-aventurada que outra não é senão a vida eterna.

CAPÍTULO I

Não se encontra, como demonstrámos, a característica de deidade na teologia civil.
Será que a poderemos achar nos deuses selectos?

Esta divindade ou, como melhor direi, esta deidade (pois já não nos repugna empregar estas palavras para traduzirmos com maior precisão o termo grego) esta divindade ou esta deidade é característica não referida na teologia a que Marco Varrão dá o nome de civil e se encontra exposta em dezasseis livros. Quer dizer — honrando os deuses tais como as cidades os instituíram e da maneira como são honrados, não se pode alcançar a felicidade da vida eterna. Acerca deste assunto, o leitor a quem o livro sexto não chegou a convencer, ao ler este nada mais terá a desejar.

O que pode efectivamente acontecer é que se julgue que, pelo menos os deuses escolhidos principais, estudados por Varrão no seu último livro de que pouco temos falado, devem ser venerados na mira da vida feliz, que outra não pode ser senão a eterna. A este propósito, não pegarei na expressão de Tertuliano, talvez mais faceta do que exacta:

Se se escolhem os deuses como as cebolas, tudo o que não é escolhido é, seguramente, considerado refugo [iii].

Não digo isso. Vejo que mesmo entre os escolhidos há outra escolha de alguns para desempenharem funções mais altas e mais importantes. Assim, no exército, depois de uma escolha entre os recrutas, opera-se uma selecção no mesmo grupo, com vista a um mais árduo trabalho das armas; também na Igreja, quando se escolhem homens para a dirigirem, nem por isso os outros fiéis passam a ser rebotalho, porque todos os verdadeiros crentes são justamente considerados eleitos; da mesma forma nos edifícios se escolhem as pedras angulares sem que com isso se rejeitem as outras que são destinadas às outras partes do edifício; assim, escolhem-se uvas para comer, sem se considerarem refugo as que ficam para a bebida. Não há necessidade de insistirmos: isto é bem claro. Por isso, só porque se escolheram certos deuses dentre muitos, não merecem desprezo nem quem acerca deles escreveu, nem os seus adoradores, nem os próprios deuses. Deve-se antes averiguar quais são esses deuses e para que fim parece que foram escolhidos.

CAPÍTULO II

Quais são os deuses escolhidos e se estes se devem considerar libertos das funções dos deuses inferiores.

Os deuses escolhidos, que Varrão aponta no decurso de um só livro, são os seguintes: Jano, Júpiter, Saturno, Génio, Mercúrio, Apoio, Marte, Vulcano, Neptuno, Sol, Orco, Líbero-pai, Télure, Ceres, Juno, Lua, Diana, Minerva, Vénus, Vesta — vinte ao todo, sendo doze deuses e oito deusas.

Chamam-se escolhidas estas divindades em razão da maior importância das suas funções no mundo, por causa da sua maior autoridade entre os povos, ou devido à maior importância do culto que lhes é prestado?

Se é por causa da importância das suas tarefas no governo do mundo, não deveríamos encontrá-las no meio dessa multidão de divindades a bem dizer plebeias, afectas a papéis insignificantes. Com efeito, para principiar, é o próprio Jano quem, no acto da concepção, onde têm origem todos os empregos miúdos distribuídos aos deuses miúdos, abre o acesso à recepção do sémen; mas também ali está Saturno pela mesma causa do sémen; está lá também Libero, que alivia o macho também pela efusão do sémen; está lá ainda Libera, que se identifica com Vénus, para prestar à mulher o mesmo serviço, aliviando-a, a ela também, pela emissão do sémen. Todos estes deuses são dos que se chamam escolhidos. Mas também lá está a deusa Mena, que preside ao fluxo menstrual, apesar de não ser nobre, embora seja filha de Júpiter. Aliás, Varrão, no seu livro acerca dos deuses escolhidos, assinala este domínio das menstruações à própria Juno, a rainha dos deuses escolhidos; e, sob o nome de Juno Lucina, ela pró­ria preside ao fluxo sanguíneo com a dita Mena, sua nora. Estão lá, ainda, dois deuses, não sei quais, muito obscuros — um Vituno e um Sentino, que conferem ao feto, o primeiro a vida e o segundo a sensibilidade. É extraordinário! Apesar de mais obscuros, concedem muito mais que tantos deuses eminentes e escolhidos. Realmente, em que se toma tudo o que a mulher traz no seu seio, se for desprovido de vida e de sensibilidade, senão em não sei que mais abjecto, comparável à lama e ao pó?

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Annaeus Seneca, De Superstitione. Cfr. nota (1) do Cap. X.
[ii] Id. Ib.
[iii] Tertuliano, Ad nationes, II, 9.

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