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13/02/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS

Vol. 1

LIVRO VI

CAPÍTULO IX

Atribuições de cada um dos deuses.

Quê? Estas atribuições dos deuses, repartidas de maneira tão mesquinha e tão minuciosa, por ser preciso invocar cada um deles conforme a tarefa que lhe é própria, e acerca das quais já falámos bastante sem, porém, termos esgotado o assunto, — não estarão mais de harmonia com as palhaçadas dos histriões do que com a majestade dos deuses? Se alguém desse, duas amas a uma criança, uma encarregada de apenas a fazer comer e a outra apenas de a fazer beber, tal como se atribui às deusas Éduca e Pótina, seria certamente tido por um louco a brincar às comédias em sua casa. Pretende-se que o nome de Libero está relacionado com liberamentum (livramento), porque com a ajuda dele são os machos, na cópula, libertados do sémen emitido, e o mesmo faz Libera, a quem chamam também Vénus, às mulheres, porque também elas, conforme pretendem, expulsam o seu sémen. E por isso que nos seus templos se oferecem a Libero os órgãos sexuais do homem e a Libera os da mulher. A isto acrescentam que a Libero são consagradas as mulheres e o vinho, porque provocam a volúpia. Era assim que eram celebradas as Bacanais, num arrebatamento de loucura. O próprio Varrão confessa que, se não estivessem possuídas de delírio, as bacantes não seriam capazes de se entregarem a tais excessos. Mais tarde, porém, estas coisas desagradaram ao Senado, que, mais judicioso, as mandou suprimir. Talvez então se tenha acabado por reconhecer quanto podem sobre a alma humana esses espíritos imundos quando são tomados por deuses. Com certeza que estas coisas não se passariam nos teatros: nestes, as pessoas divertem-se, mas não deliram, se bem que ter deuses que se deleitam com semelhantes diversões se assemelha ao delírio.

Entre o homem religioso e o homem supersticioso descobre Varrão esta diferença: o supersticioso tem medo dos deuses, ao passo que o religioso, os venera como pais e não os teme como inimigos, pois que, na sua opinião, todos os deuses são tão bons que se sentem mais inclinados a perdoar os culpados do que a prejudicar os inocentes. Mas também nos recorda que à mulher que dá à luz se destinam três deuses à sua guarda, para impedir que o deus Silvano venha atormentá-la durante a noite; e como símbolo destes guardiões, três homens fazem rondas nocturnas à volta da casa, batendo nos umbrais, primeiro com um machado e depois com um pilão, acabando por limpá-la com uma vassoura — tríplice símbolo da agricultura, destinado a vedar ao deus Silvano qualquer acesso. Mas que é que com isto se quer dizer? A explicação é que nem as árvores se cortam e se podam sem o ferro, nem a farinha se prepara sem o pilão, e sem a vassoura não se juntam os grãos num monte. Foi destes três objectos que três deuses tomaram o nome: Intercidona, do gume do machado (intercisio), Pilumnum, do pilão (pilum), Deverra, da vassoura (deverro = varrer). É com estes deuses custódios que se defende a prole das investidas do deus Silvano. Com certeza que de nada valeria contra a crueldade de um deus nocivo a custódia dos bons, se não se juntassem muitos contra um e se a este deus rústico, terrífico e inculto (pois que é da selva) não se opusessem os emblemas da cultura que lhe são contrários. É então esta a inocência dos deuses? E esta a concórdia dos deuses? Isto é que são as divindades protectoras da cidade, mais dignas de troça do que as palhaçadas dos teatros?

Que o deus Jugatino intervenha na união do homem com a mulher — vá que não vá! Mas é preciso levar a noiva a casa — e lá temos o deus Domiducus; para lá a instalar, está o deus Domitius; para a fazer estar com o seu marido, junta-se a deusa Mantuma. Para quê buscar mais? Tenha-se em consideração o pudor humano! Seja a concupiscência da carne e do sangue a levar a cabo o resto no recato do pudor. Para quê encher o quarto com uma caterva de deuses quando se retiram os paraninfos? [i] E enchem o quarto, não para que o conhecimento da sua presença constitua uma garantia maior do pudor, mas para que a mulher, débil em razão do sexo, aterrada pela novidade, graças ao concurso deles perca a virgindade sem dificuldade: realmente, lá estão presentes a deusa Virginense, o deus-pai Súbigo, a deusa-mãe Prema, a deusa Pertunda e ainda Vénus e Priapo! Que vem a ser isto? Se era absolutamente necessário que os deuses ajudassem o varão em apuros, não bastaria um ou uma? Não bastaria apenas Vénus, pois que, diz-se, ela assim se chama porque sem violência (vis) nunca a mulher poderá deixar de ser virgem? Se nos homens há pudor que falta aos deuses, os esposos que acreditam na presença de tantos deuses de ambos os sexos, todos atentos ao acto conjugal, — não se sentirão possuídos de tal vergonha que o ardor do acto se vai apagando e vai aumentando a resistência da vergonha? Se, para desatar o cinto da donzela, lá está a deusa Virginense; se lá está o deus Súbigo para a submeter ao varão; se, para a obrigar, uma vez entregue, a deixar-se desflorar sem resistência, está lá a deusa Prema — que faz lá a deusa Pertunda? Que tenha vergonha! que se vá embora! que deixe ao marido alguma coisa para fazer! É altamente indecoroso que seja outro a cumprir uma tarefa que, como o seu nome indica, só a ele pertence. Talvez seja tolerada por se tratar de uma deusa e não de um deus. Porque, se visse que se tratava de um deus masculino, que se chamaria então Pertundo, o marido, para salvar a honra da mulher, contra ele chamaria por mais socorros do que a parturiente contra Silvano. Mas que estava para aqui a dizer, se há um outro bem macho — Priapo — sobre cujo enormíssimo e tão repugnante membro obrigam os recém-casados a sentarem-se, conforme é costume honestíssimo e religiosíssimo das matronas?

Que tentem ainda, com toda a subtileza de que são capazes, distinguir a teologia civil da teologia fabulosa, as cidades do teatro, os templos da cena, os ritos dos pontífices dos cantos dos poetas, como se distingue o honesto do torpe, o verdadeiro do falso, o grave do frívolo, o sério do jocoso, o apetecível do desprezível! Compreendemos como se comportam: sabem que a teologia do teatro e da fábula provém da teologia civil e que esta se reflecte nos cantos dos poetas como num espelho. Por isso, depois da exposi­ção desta, que não se atrevem a condenar, censuram e recriminam a sua imagem com mais liberdade para que os leitores mais esclarecidos desprezem, ao mesmo tempo, o rosto e a imagem. Todavia, os próprios deuses, vendo-se nesta imagem como se se vissem num espelho, amam-se de tal forma que é no espelho e na imagem que melhor se vê quem são e o que são eles. Por isso obrigam também os seus adoradores, com ordens terríveis, a dedicarem-lhes as imundícias da teologia fabulosa, a concederem-lhes um lugar nas solenidades e a terem-nos por coisas divinas. E assim se declaram, com maior evidência, como os mais imundos dos espíritos; e fizeram com que esta teologia do teatro, abjecta e reprovada, se tomasse parte constitutiva da selecta e recomendável teologia urbana. Desta forma, todo este conjunto é torpe e enganoso, cheio de deuses imaginários, achando-se uma das suas partes nos livros dos sacerdotes e a outra no canto dos poetas. Se contém ainda outras partes, isso é outra questão. Por agora, parece-me que deixei suficientemente demonstrado que, seguindo a divisão de Varrão, a teologia da cidade e a do teatro se reduzem à mesma teologia civil. Consequentemente, como ambas rivalizam em vilania, absurdo, indignidade, falsidade — longe esteja do homem religioso esperar a vida eterna quer duma quer doutra.

Finalmente, o próprio Varrão começa a sua recensão e enumeração dos deuses a partir da concepção do homem, pondo Jano à frente da série; prossegue a série até à morte do homem decrépito; e fecha a lista dos deuses, afectos ao homem, com a deusa Nénia, que se canta nas exéquias dos velhos.

Começa depois a mostrar os outros deuses, afectos, já não ao homem, mas às coisas que este utiliza, tais como o alimento, o vestuário e tudo o que a esta vida é necessário, acabando por revelar qual é a tarefa de cada um e o que é que a cada um se pode pedir. Em toda esta diligente enumeração, não apresentou nem nomeou deus algum a quem se possa pedir a vida eterna, única por causa da qual somos cristãos.

Quem será tão tacanho, que não compreenda que, — expondo e explicando com tanto cuidado a teologia civil, mostrando a sua semelhança com a indigna e infame teologia fabulosa, ensinando com bastante clareza que esta teologia fabulosa mais não é que uma parte da outra, este homem se propôs infiltrar nos espíritos humanos apenas a teologia natural que diz provir dos filósofos? Com tal subtileza reprova a teologia fabulosa, sem se atrever a criticar a civil, embora esta se mostre repreensível com a sua simples apresentação, e afasta, desta maneira, duma e doutra, o juízo dos atilados, que não resta senão a escolha da natural.

Disto tratarei mais demoradamente, na ocasião oportuna, com a ajuda de Deus.

CAPÍTULO X

Da liberdade de espirito de Séneca, que critica a teologia civil com mais veemência do que Varrão criticou a teologia fabulosa.

A liberdade que a Varrão faltou para criticar a teologia civil tão abertamente como a cénica, apesar de tão semelhantes, não faltou, pelo menos em parte, a Aneu Séneca, que, segundo certos indícios, brilhou nos tempos dos Apóstolos: mas, se a teve nos seus escritos, faltou-lhe, porém, na vida.

No seu livro contra as superstições (De superstitione), atacou esta teologia urbana muito mais ampla e vigorosamente do que Varrão a dos teatros e das fábulas. Efectivamente, quando se refere aos ídolos, diz:

Presta-se culto a seres sagrados, imortais, invioláveis, representados na mais vil e inerte matéria; dá-se-lhes a forma de homens, de feras, de peixes, algumas vezes um duplo sexo e com diversos corpos; chamam deuses a estes entes que, se se tomassem vivos e nos aparecessem de surpresa, seriam tomados por monstros [ii].

Um pouco mais à frente, ao elogiar a teologia natural, depois de ter classificado as opiniões de alguns filósofos, põe a si mesmo a seguinte questão:

Alguém me dirá ao chegar a este ponto: tenho que acreditar que o Céu e a Terra são deuses, que uns habitam acima e outros abaixo da lua? Poderei eu estar de acordo com Platão ou com o peripatético Estratão, dos quais um concebe deus sem corpo e o outro concebe-o sem alma? 

E responde:

Então, quais te parecem mais verdadeiros — os sonhos de T. Tácio ou os de Rómulo ou os de Tulo Hostílio? Tácio fez de Chacina uma deusa, Rómulo tomou Pico e o Tiberino em deuses, Hostílio transformou em deuses o Pavor e o Palor — as mais sombrias afecções do homem, das quais uma resulta de um abalo do espírito atemorizado e a outra de um abalo do corpo — não uma enfermidade, mas uma falta de cor. Será que vais acreditar nestas divindades e pô-las no céu?

A liberdade com que Séneca escreveu acerca de ritos tão cruamente obscenos! Diz ele:

Um amputa os seus próprios orgãos viris; outro corta os biceps dos braços. Como é que temerão a cólera dos deuses os que assim os aplacam? Não se deve prestar qualquer espécie de culto a deuses que querem uma coisa destas! Tão grande é a loucura de uma alma perturbada e como que lançada fora de si, que ela pretende aplacar os deuses comportando-se como o não fariam os homens mais temíveis e cuja crueldade passou à história fabulosa. Tiranos houve que despedaçaram os membros das suas vítimas, mas a ninguém ordenaram que despedaçassem os deles próprios. Alguns desgraçados foram castrados para satisfazerem a vergonhosa lascívia dos reis, mas ninguém se mutilou com as suas próprias mãos às ordens do seu senhor para deixar de ser homem. Golpeiam-se nos templos, oferecem em súplica as suas feridas e o seu sangue. Se a alguém fosse dada a oportunidade de observar os que assim procedem e sofrem, veria coisas tão repugnantes para as pessoas decentes, tão indignas dos homens livres, tão longe dos sãos espíritos, que ninguém duvidaria de estar no meio de loucos se fossem poucos. No caso, a multidão dos insensatos toma-se garantia da sua sanidade mental.

Quanto ao que se passa no próprio Capitólio, que ele menciona a seguir e reprova (com que coragem!) — quem poderia acreditar que essas cenas não são realizadas senão por farsantes ou por loucos? Primeiro, põe a ridículo os mistérios do Egipto, as lágrimas que derramam sobre Osíris perdido e a grande alegria que manifestam, logo a seguir, ao encontrarem-no — quando, afinal, tanto a sua perda como o seu encontro são puras ficções; todavia exprimem uma dor e uma alegria sincera da parte daqueles que nada perderam nem acharam. Depois, observa:

Porém esta loucura tem uma duração limitada. Ser louco uma vez por ano suporta-se. Mas sobe ao Capitólio: corarás de vergonha ao veres a generalizada demência que frenesi toma como um dever. Um apresenta nomes a Júpiter, outro anuncia-lhe as horas; um é o seu massagista (litor), outro é o seu perfumista que com o ridículo movimento de braços imita a acção do perfumista. Há as que arranjam os cabelos de Juno e de Minerva (mantendo-se de pé, afastadas do templo e do ídolo, mexem os dedos como os cabeleireiros). H á as que seguram no espelho. Há as que pedem o patrocínio dos deuses nos seus pleitos e há os que lhes apresentam memoriais escritos e os informam das suas causas. Um hábil chefe de histriões, velho já decrépito, representa todos os dias uma farsa no Capitólio, como se os deuses sentissem prazer em contemplarem um actor a quem os homens já não ligam importância. Ali cai toda a casta de artífices para trabalharem para os deuses imortais.

E um pouco mais à frente acrescenta:

Todavia, estes (serviços prestados a um deus), por muito inúteis que sejam, não são vergonhosos nem infames. Algumas, que se julgam amadas por Júpiter, instalam-se no Capitólio — mas não ficam amedrontadas nem mesmo com o olhar de Juno o qual, a crer nos poetas, é irritadíssimo.

Esta liberdade não a teve Varrão; apenas se atreveu a criticar a teologia poética; na teologia civil — que Séneca demoliu —, nem ousou tocar. Mas, verdade se diga, os templos, onde estes factos se passam, são piores do que os teatros, onde eles se simulam. Por isso, nas cerimónias da teologia civil, a parte que Séneca reserva ao sábio não é a adesão dum coração sinceramente religioso, mas a celebração exterior. Efectivamente, diz ele:

O sábio tudo isto observará como coisa ordenada pela lá e não como coisa grata aos deuses.

E, um pouco à frente, acrescenta:

Que significam esses casamentos que celebramos entre os deuses e até, com desprezo da religião, entre irmãos e irmãs? Juntamos Pelona a Marte, Vénus a Vulcano, Salácia a Neptuno. Todavia deixamos algumas solteiras, como se lhes faltasse algum requesito; apesar de haver algumas viúvas como Papulónia ou Fúlgora e a deusa Rumina. Não me admiro de que para elas tenha faltado pretendente. Toda esta obscura turbamulta de deuses que uma longa superstição foi engrossando no decurso de tão longos séculos, adoramo-la nós, lembrando-nos, porém, de que este culto assenta mais no costume do que na verdade.

Por conseguinte, nem as leis nem os costumes estabeleceram na teologia civil o que é que seria agradável aos deuses ou interessaria a este assunto. Todavia, este Séneca, libertado pela filosofia, como convinha a um ilustre por assim melhor se lhe captar o sentido. senador do Povo Romano, honrava o que censurava, praticava o que reprovava, adorava o que condenava. Quer dizer, a filosofia tinha-lhe ensinado alguma coisa de grande: não ser supersticioso no mundo; mas as leis da cidade e as tradições humanas obrigaram-no, sem descer ao papel de histrião representando ficções no palco, a imitar esse papel no templo — pelo que é tanto mais digno de censura quanto mais, praticando esses ritos sem sinceridade, assim procedia para que o povo pensasse que era com sinceridade que procedia; o próprio comediante, ao representar, pretende divertir e não enganar com as suas mentiras.

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)




[i] Paraninfos são os rapazes, em número de três, que constituem o acompanhamento da noiva até casa do noivo. — V. M. David, La religion romaine, Lille, 1949-50, p. 111.
[ii] Annaeus Seneca, De Superstitione.

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