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08/01/2017

Leitura espiritual


Leitura espiritual



A Cidade de Deus 

Vol. 1

LIVRO II

CAPÍTULO XXIII

As alterações nas empresas temporais não dependem do favor ou da hostilidade dos demónios, mas da decisão do verdadeiro Deus.

Que vos parece? Não acham que esses deuses ajudaram os homens a satisfazerem as suas paixões? Não é evidente que não pensaram em refreá-las? Não foram eles que ajudaram Mário, o plebeu adventício, sanguinário forjador e realizador de guerras civis, a que chegasse a ser cônsul por sete vezes e a que morresse, carregado de anos, no seu sétimo consulado, escapando assim às mãos de Sula prestes a ser o vencedor? E se os deuses o não ajudaram em tudo isto — não é pouca coisa o que confessam: mesmo que não lhe sejam propícios, ao homem pode advir toda a felicidade temporal que tanto amam. Mesmo quando os deuses lhes são adversos, os homens podem, como no caso de Mário, encher-se e gozar de saúde, força, riquezas, honrarias, dignidade e longevidade. E podem também, como no caso de Régulo, apesar de os deuses lhes serem propícios, ser torturados e m orrer no cativeiro, na servidão, nas privações, nas vigílias e nas dores. Se admitem que assim é, acabam por confessar, em conclusão, que eles de nada lhes servem e que o seu culto é inútil. De facto, se, em vez das virtudes da alma e da probidade de vida, cuja recompensa devem esperar só depois da vida, se empenharam em ensinar ao povo o contrário;

Se, nos bens passageiros e temporais, nem prejudicam aos que os odeiam nem favorecem aos que os amam para quê venerá-los? Para quê importuná-los tão zelosamente com o seu culto? Porque é que murmuram nestes trabalhosos e tristes tempos como se tivessem de se afastar ofendidos? E por que é que por causa deles a religião cristã é ofendida com os mais indignos ultrajes? Se nestes assuntos têm poderes benéficos ou maléficos — porque é que prestaram a assistência a esse péssimo homem que foi Mário e se desinteressaram desse óptimo homem que foi Régulo? Não se revelaram eles por esta forma como os mais injustos e perversos? Se assim julgam que são mais de temer e de merecer, pois estão enganados: verifica-se que Régulo não os venerou menos do que Mário. Nem se pense que se deve escolher uma vida depravada lá porque os deuses estimaram mais a Mário do que a Régulo. Na realidade Metelo, de todos os Romanos o mais digno de louvores, que teve cinco filhos consulares, mesmo nos assuntos temporais foi feliz — e Catilina, o pior de todos, foi um desgraçado, oprimido pela miséria e derrubado na guerra que seus crimes originaram. Mas a mais verdadeira, a mais segura felicidade, dela só gozam os bons, os que adoram a Deus, único que a pode conceder.

Quando a República se perdia mercê dos maus costumes, nada fizeram os deuses para os orientar ou corrigir de modo a que ela não perecesse. Pelo contrário aumentaram a depravação e a corrupção dos costumes para que ela morresse. Não finjam pois de bons, sob pretexto de que se afastaram ofendidos pela iniquidade dos cidadãos. Certam ente que estavam lá: eles é que se traem e denunciam: não puderam prestar ajuda com o seu ensino, nem ficar escondidos com o seu silêncio. Ponho de parte o facto de Mário ter sido recomendado pelos compassivos habitantes de Minturna à deusa Marica, no bosque a ela consagrado, pedindo a prosperidade de todos os seus empreendimentos. Tendo ele voltado incólume de uma situação altamente desesperada, este chefe cruel avançou sobre Roma com um exército igualmente cruel. Quão sangrenta, quão selvagem foi essa vitória mais desumana do que a de um inimigo, podem lê-lo nos escritores que o descreveram. Mas, como já disse, ponho isso de parte. Não atribuo a sorte sanguinária de Mário a não sei que Marica, mas antes à oculta Providência de Deus para fechar a boca aos pagãos e deixar livres de erro os que não agem por interesse, mas que olham para os factos com reflexão. Porque embora os demónios tenham algum poder nestes assuntos, reduz-se ele, porém aos limites assinalados por uma secreta e livre decisão do Omnipotente. Não tenhamos em grande conta a felicidade terrena que muitas vezes se concede mesmo aos maus como Mário. Também não a consideremos como coisa má pois muitos homens religiosos e bons, adoradores do verdadeiro Deus, a fruíram contra a vontade dos demónios. Nem pensemos que devemos tornar propícios ou temer esses imundos espíritos por causa dos bens ou males terrenos. Porque, assim como os próprios homens maus da Terra, também eles, os demónios, não podem fazer tudo o que lhes apetece, mas apenas quanto lhes é permitido por Aquele cujos juízos ninguém compreende plenamente nem critica com justiça.


CAPÍTULO XXIV

As façanhas de Sula foram abertamente favorecidas pelos demónios.

Os tempos de Sula foram tais que se começaram a desejar os anteriores embora parecesse que ele era o seu vingador. Quando começou a dirigir o exército para Roma contra Mário, as entranhas da vítima imolada pareceram tão propícias, escreve Lívio, que o arúspice Postúmio queria que o condenassem à pena capital se Sula não conseguisse, com o apoio dos deuses, o que tinha em mente. Eis que «os deuses não tinham abandonado os seus santuários e os seus altares» quando prediziam o resultado dos acontecimentos sem se preocuparem em nada com a correcção do próprio Sula. Prometiam com os seus presságios uma grande felicidade, mas não quebravam com ameaças a sua perversa cupidez.

Depois, quando estava na Ásia a conduzir a guerra contra Mitrídates, foi-lhe revelado por Júpiter, por intermédio de Lúcio Tício, que venceria Mitrídates. E assim aconteceu. Posteriormente, quando pensava voltar a Roma e vingar as injúrias recebidas e as dos amigos, no sangue dos cidadãos, de novo lhe foi revelado pelo mesmo Júpiter, por intermédio de um certo soldado da sexta legião: antes tinha-lhe vaticinado a vitória sobre Mitrídates, mas agora prometia-lhe o poder com que recuperaria de seus inimigos o governo (rem publicam) sem muito sangue. Então, tendo perguntado ao soldado que aspecto lhe parecia que tinha, e tendo-o este indicado, Sula recordou-se que era o mesmo que apresentava o do vaticínio anterior quando lhe anunciou a vitória sobre Mitrídates.

Poderá dar-se resposta a isto: porque é que os deuses tiveram o cuidado de anunciar estes felizes acontecimentos e nenhum tratou de corrigir com uma advertência esse Sula que iria cometer através de criminosa guerra civil tão grandes males que não só macularam como também sufocaram por completo a república? Como tantas vezes disse, foi-nos dado a conhecer nas Escrituras Sagradas, e os próprios factos o indicam suficientemente, que esses deuses são demónios que tratam do seu negócio para serem tidos e venerados como deuses e serem obsequiados com ritos que tornam cúmplices os seus adoradores para que tenham com eles o mesmo péssimo veredicto no juízo de Deus.

Depois, quando chegou a Tarento, e lá ofereceu um sacrifício, Sula viu no vértice do fígado do vitelo a figura de uma coroa de ouro. Então Postúmio, o referido arúspice, declarou que lhe vaticinava uma gloriosa vitória e ordenou que só ele comesse daquelas vísceras. Passado um pequeno intervalo o escravo de um certo Lúcio Pôncio vaticinou aos gritos: «Sou mensageiro que venho de Bellona. A vitória é tua, Sula». Em seguida acrescentou que o Capitólio iria arder. Dito isto, saiu imediatamente do acampamento e voltou no dia seguinte mais desembaraçado e gritou que o Capitólio tinha ardido. E na verdade o Capitólio tinha ardido. Na realidade a um demónio foi fácil prever e anunciar com rapidez o sucedido.

Repara bem nisto que tem o maior interesse para o assunto em causa: a que deuses desejam estar sujeitos os que blasfemam do Salvador que retira do domínio dos demónios a vontade dos fiéis! Vaticinando um homem gritou — «a vitória é tua, Sula!» — e para que se acreditasse que gritava por inspiração divina, predisse também um facto que iria desde já realizar-se e outro que acabava de se realizar muito longe donde estava o espírito que falava por seu intermédio. Todavia não gritou: «Abstem- -te de crimes, Sula!» — crimes horrendos que, uma vez vencedor, ali cometeu aquele a quem apareceu no fígado do vitelo uma coroa de ouro como símbolo evidentíssimo da sua vitória. Se tais sinais costumavam dar os deuses justos e não demónios ímpios, de certeza que o que aquelas entranhas deveriam mostrar eram nefastos acontecimentos e graves prejuízos para o próprio Sula. Nem efectivamente aquela vitória foi tão proveitosa para a sua glória quanto foi nociva a sua cupidez. Dela resultou que, ansiando pela glória e tendo-se exalçado e mergulhado na prosperidade, foi maior o dano que ele próprio sofreu nos seus costumes do que os danos que no corpo infligiu aos inimigos.

Estas coisas, na verdade tristes e dignas de dó, é que aqueles deuses não vaticinaram nas entranhas do sacrifício, nos augúrios, nos sonhos ou vaticínios fosse de quem fosse. Tinham mais medo de serem corrigidos do que de serem vencidos. Mais ainda: faziam com que o glorioso vencedor dos seus concidadãos fosse vencido pelos seus nefandos crimes e deles cativo e por aí ficasse mais estreitamente submetido aos demónios.

C A P ÍT U L O XXV

Os espíritos malignos incitam os homens ao crime e, para que o cometam, apresentam-lhes a autoridade divina do seu exemplo.

 Depois disto, quem não compreende — a não ser aqueles que preferem imitar tais deuses a separar-se da sua companhia com a graça divina — quem não verá quanto estes espíritos malignos se esforçam por prestar pelo seu exemplo uma autoridade divina aos crimes? Os próprios deuses foram surpreendidos a lutar uns com os outros numa ampla planície da Campânia, onde, não muito depois, os exércitos dos cidadãos se envolveram em terrível combate. Ouviu-se lá, primeiro um tremendo fragor e logo depois dizem muitos que viram lutar dois exércitos durante vários dias. Quando esta batalha findou, encontraram vestígios, tanto de homens como de cavalos — o que era de esperar de tal conflito. Se é verdade que os deuses lutaram entre si, então já se desculpam as guerras civis entre os homens — notando-se, todavia, até onde é que vai a malícia ou a miséria de tais deuses. Mas, se fingiram que batalhavam, que mais fizeram senão convencer os Romanos de que, quando se envolvem em guerras civis a exemplo dos deuses, nada de criminoso cometem? É certo que já tinham começado as guerras civis; já dantes tinha havido, em batalhas nefandas, horrendas carnificinas; já a muitos comovera o caso de certo soldado que, ao despojar um morto, reconheceu no cadáver desnudado o seu próprio irmão e, amaldiçoando as guerras civis, aí a si mesmo se aniquilou e se juntou ao corpo do irmão. E, para que ninguém tivesse aversão a tamanho mal e antes o ardor das armas criminosas fosse aumentando cada vez mais, — os nefastos demónios (que eles, tendo-os por deuses, entendiam que deviam louvar e venerar), quiseram mostrar-se perante os homens a lutar entre si, para que a sensibilidade cívica não receasse imitar tais pugnas, mas, pelo contrário, desculpasse o crime humano com o exemplo divino.

Com igual astúcia também os espíritos malignos exigiram que se lhes dedicassem e consagrassem jogos cénicos, do que já falámos bastante. Aí se celebram as enormes imoralidades dos deuses com cânticos de cena e com representação de fábulas. Cada um poderá crer que eles fazem tais coisas; cada um poderá não o crer. Mas o certo é que vendo-os deliberadamente exibirem-se em tais actos, os imitará sem escrúpulos. E, para que ninguém julgasse que os poetas comemoravam as suas pugnas e infâ­mias em vez de proezas dignas deles — eles próprios confirmaram tais poemas para assegurarem o engano dos homens. Confirmaram as suas pugnas não só nas representações teatrais, mas também mostrando-se aos olhos humanos no campo de batalha.

Fomos obrigados a dizer estas coisas porque os seus autores não tinham a menor dúvida em dizer e escrever que a República Romana, por causa dos péssimos costumes dos seus cidadãos, já se tinha perdido e dela já nada existia antes da vinda de Jesus Cristo Nosso Senhor. Não atribuem esta perda aos seus deuses. Mas imputam ao nosso Cristo os males transitórios que não podem causar a perdição dos bons, quer estes continuem a viver quer lhes sucumbam. O certo é que o nosso Cristo frequentemente deu tantos preceitos contra os costumes depravados a favor dos bons costumes; ao passo que os deuses não contribuíram com preceitos semelhantes a favor do seu povo fiel para que a república se não perdesse. Pelo contrário: contribuíram até para a sua perda corrompendo os seus costumes com a nociva autoridade dos seus exemplos.

Ninguém ousará, julgo eu, dizer que ela sucumbiu então, porque
Retiram-se todos abandonando altares e santuários, estes deuses [i],
como «amigos da virtude» que se sentiram ofendidos com os vícios dos homens. Porque os inúmeros sinais das entranhas, dos áugures, dos adivinhos com que mostravam o seu empenho em serem gabados e com que se vangloriavam da sua pretensa ciência do futuro e não menos pretensa ajuda nos combates, provam que eles sempre lá estiveram. Se na verdade tivessem partido, os Romanos ter-se- -iam sentido menos incitados à guerra civil pelas suas paixões do que efectivamente o foram por incitação dos deuses.

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Discessere omnes adytis arisque relictis Di. Vergílio, Eneida, II, 351-352.

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