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05/01/2017

Leitura espiritual

Leitura espiritual



A Cidade de Deus

Vol. 1

LIVRO II

CAPÍTULO XVII

O rapto das Sabinas e outras iniquidades que, noutros tempos, vigoravam e até eram louvadas na cidade romana.

Porque é que não foram ditadas leis ao Povo Romano pelos deuses? Terá sido, por acaso, porque, como diz Salústio,
entre eles o direito, tal como o bem, tirava o seu valor mais da natureza do que das leis. [1]

Creio que as Sabinas foram raptadas em virtude desse «direito» e dessa «bondade». Efectivamente, que é que há de mais justo e melhor do que, pela força, cada um raptar como pode, aos pais que não as cedem, as jovens forasteiras levadas por engano a um espectáculo? Se os sabinos procederam mal em negar as filhas pedidas — não foi muito mais iníquo roubá-las, lá porque lhas recusaram? Seria mais justo de­clarar a guerra a um povo que se negara a dar suas filhas em casa­mento a conterrâneos e vizinhos seus, do que lutar com um povo que reclamava suas filhas raptadas. Preferiu-se porém aquilo. Até Marte ajudaria seu filho a combater para vingar pelas armas a injúria de umas núpcias recusadas. E assim conseguiriam as mulheres que pretendiam. Efectivamente, talvez em virtude de algum direito de guerra, o vencedor poderia justificadamente levar as raparigas que injustamente lhes tinham sido negadas. Mas raptar em tempo de paz as que não lhes tinham sido concedidas é contra todo o direito, gerando assim uma guerra injusta contra seus pais justamente indignados. Isto teve resultados mais úteis e mais felizes: embora se tenha mantido, sob a forma de espectáculo de circo, a recordação desta fraude o exemplo desta má acção não conseguiu o agrado naquela cidade imperial. O erro dos Romanos está mais em terem consagrado Rómulo como deus depois daquela iniquidade, do que permitirem, por qualquer costume ou lei, à sua imitação, o rapto de mulheres. Foi em virtude deste sentido de direito e do bem que, depois de, com seus filhos, ter sido expulso o rei Tarquínio, cujo filho violentara Lucrécia, o cônsul Júnio Bruno obrigou Lúcio Tarquínio Colatino, marido da referida Lucrécia e seu colega, varão bom e inocente, a abandonar a magistratura por causa do nome e do parentesco dos Tarquínios, e nem sequer lhe permitiu que continuasse a viver na cidade. Colatino como também o próprio Bruto, tinha recebido o consulado do povo que favoreceu ou permitiu essa iniquidade.

Foi em virtude ainda desse «sentido do direito e do bem», que Marco Camilo, (varão ilustre daquele tempo, que com toda a facilidade derrotou os Veientes, perigosíssimos inimigos do Povo Romano, depois de uma guerra de dez anos em que o exército romano, combatendo mal, sofreu várias vezes sérios revezes a ponto de a própria Roma tremer e duvidar da sua salvação) tomou a opulentíssima urbe deles — mas a inveja dos caluniadores do seu valor e a insolência dos tribunos da plebe, declararam-no réu. Sentiu que aquela cidade que libertara era tão ingrata que, certíssimo da condenação, espontaneamente se retirou para o exílio. Já ausente, foi condenado ainda em dez mil moedas de cobre, ele que, em breve, de novo salvaria dos Gauleses a sua ingrata pátria. Já me repugna relembrar tantos factos vergonhosos e injustos por que era sacudida aquela cidade, quando os poderosos procuravam sujeitar a plebe e esta se recusava a sujeitar-se-lhes, trabalhando os defensores de uma e outra facção, mais pelo desejo de vencer do que por algo de honrado e bom.

CAPÍTULO XVIII

O que a História de Salústio comprova acerca dos costumes dos Romanos refreados pelo medo ou relaxados pela confiança.

Serei comedido e, como testemunha, apresentarei antes o próprio Sa­lústio que, quando falava em louvor dos Romanos, dizia isto com que iniciámos esta exposição:
Entre eles o direito, tal como o bem, tirava o seu valor mais da natureza do que das leis [2]

Exaltava assim aquela época em que depois da expulsão dos reis, a cidade se estendeu de forma incrível em brevíssimo espaço de tempo. O mesmo, porém, no primeiro livro da sua História e logo desde o prin­cípio dela, confessa que, já então, pouco depois de o governo ter passado dos reis para os cônsules, as injustiças dos mais poderosos provocaram uma cisão entre a plebe e os patrí­ cios, além de outras dissensões na Urbe. Conta ele que, entre a segunda e a última guerra cartaginesa, o Povo Romano viveu nos melhores costumes e na maior concórdia e que a causa deste bom comportamento não foi o amor da justiça mas o medo de uma paz insegura enquanto Cartago se manteve de pé. Por isso é que o dito Nasica, para reprimir a corrupção e conservar aqueles óptimos costumes e para que os vícios fossem contidos pelo medo, não queria que Cartago fosse destruída. Logo abaixo expõe o mesmo Salústio:

Mas a discórdia, a avareza, a ambição e demais males que costumam nascer da prosperidade, aumentaram extraordinariamente depois da destruição de Cartago [3],
para que compreendessemos que já antes costumavam surgir e avolumar-se. Por isso explica porque é que tal dissera:

As injustiças dos poderosos, provocando a separação da plebe e dos patrícios e outras dissenções internas, existiram entre eles desde o princípio, porque a observância de um direito justo e moderado não durou mais que o tempo em que se teve medo de Tarquínio e da pe­sada guerra com a Etrúria [4].

Vês de que modo, naquele breve espaço de tempo que se seguiu à suspensão dos reis, isto é à sua expulsão, se viveu com leis justas e moderadas — sendo o medo a causa disso. Temia-se efectivamente a guerra que o rei Tarquínio, expulso do reino e de Roma, aliado dos Etruscos, sustentava contra os Romanos.

Repara no que ele, em seguida, escreve:
Mais tarde os patrícios submeteram a plebe a um jugo de escravos, dispuseram à maneira dos reis da sua vida e da sua pele, expulsaram-nos dos seus campos e apoderaram-se sozinhos do poder depois de dele excluírem os demais. Oprimida por estas sevícias e prin­cipalmente por dívidas, quando suportava, devido a contínuas guerras, o duplo peso dos impostos e do serviço militar, a plebe instalou-se com armas no Monte Sagrado e no Aventino — o que desde logo lhes valeu passarem a ter tribunos da plebe e outros direitos. Mas a segunda guerra Púnica pôs termo, de parte a parte, a estas discórdias e lutas [5].

Aperceber-te-ás desde quando, isto é, desde pouco depois da expulsão dos reis, eram desta qualidade os Romanos. Foi deles que diria:
Entre eles o direito, tal como o bem, tirava o seu valor mais da natureza do que das leis. [6]

Mas se se consideram assim aqueles tempos, dos quais se diz terem sido os melhores e os mais belos da República Romana, — que é que se dirá do período seguinte ou que é que se há-de pensar, para usar das próprias palavras do historiador,

quando pouco a pouco se foi transformando da mais bela e da mais virtuosa (República) na pior e na mais corrompida [7], depois da destruição de Cartago, como ele já notara? O que o próprio Salústio um tanto resumidamente recorda e escreve desses tempos pode ler-se na sua História: quão grave decadência dos costumes nasceu da prosperidade e acabou na guerra civil.

Como ele diz:
Desde essa época os costumes dos antepassados foram-se pre­cipitando, não pouco a pouco, como outrora, mas como uma torrente. A juventude estava de tal forma corrompida pelo fausto e pela cobiça que com razão se podia dizer: surgiu uma geração que não é capaz de possuir património próprio nem permite que outros o possuam [8].

Muito mais diz Salústio em seguida acerca dos vícios de Sula e das outras imundícias da República. Outros escritores são nisto concordes, embora muito inferiores no estilo.

Apercebes-te talvez, julgo eu, — e qualquer um que esteja atento fa­cilmente notará — em que lodaçal de imundícias morais tinha caído aquela cidade antes da vinda do nosso Rei Supremo.

Realmente, estas coisas aconteceram não apenas antes que Cristo, presente em carne, começasse a ensinar, mas até antes de ter nascido da Virgem.

Não se atrevem a imputar aos deuses tantos e tão grandes males daqueles tempos quer os, a princípio, toleráveis, quer os que, depois da destruição de Cartago, se tornaram intoleráveis e hor­ríveis. Foram eles porém que, com astúcia maligna inculcaram nas mentes humanas as opiniões donde tais vícios surgiriam como uma floresta. Então, por­que é que imputam os males presentes a Cristo que com a sua doutrina salvadora proíbe o culto dos deuses falsos e falazes, detesta e condena, com divina autoridade, estas nocivas e escandalosas paixões dos homens, subtrai pouco a pouco em toda a parte, deste mundo que cambaleia e cai nesses males, a família com que fundará uma cidade eterna, a mais gloriosa, não pelos aplausos de vãs superficialidades, mas pelo autêntico valor da verdade?

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)




[1] jus bonumque apud eos non legibus magis quam natura valebat. Salústio, Catilina, IX, 1.
[2] At discórdia, et avaritia, atque ambitio, et cetera, secundis rebus oriri sueta mala, post Carthaginis excidium maxime cuncta sunt. Salústio, Hist., fragm. 1 ,11.
[3] Nam injuriae validiorum, et ob eas discessio plebis a patribus, aliaeque dissentiones domifuere jam inde a principio, ne que amplius quam regibus exactis, dum metus a Tarquinio et bellum grave cum Etruria positum est, aequo et modesto jure agitatum. Id. Ib..
[4] Nam injuriae validiorum, et ob eas discessio plebis a patribus, aliaeque dissentiones domifuere jam inde a principio, ne que amplius quam regibus exactis, dum metus a Tarquinio et bellum grave cum Etruria positum est, aequo et modesto jure agitatum. Id. Ib..
[5] Deitt servili império patres plebem exercere, de vita atque tergo regio more consulere, agro pellere et ceteris expertibus soli in império agere. Quibus saevitiis et maxime faenore oppressa plebs cum assiduis bellis tributum et militiam simul toleraret, armata montem Sacrum atque Aventinum insedit: tumque tribunos plebis et alia jura sibi paravit. Discordiarum et certaminis utrimque finis fuit secundum bellum Punicum. Id. Ib..
[6] jus bonumque apud eos non legibus magis quam natura valebat. Salústio, Catilina, IX, 1.
[7] Cum paulatim mutata ex pulcherrima atque optima, pessima ac flagiotiosissima facta est. Salústio, Catilina, V, 9.
[8] Ex quo tempore majorum mores non paulatim, ut antea, sed torrentis modo praeciptati; adeo juventus luxu, atque avaritia corrupta, ut merito dicatur genitos ess qui neque ipsi habere possent res familiares, neque alios pati. Salústio, Hist., fragm. I, 16.

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