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04/01/2017

Leitura espiritual

Leitura espiritual



A Cidade de Deus



Vol. 1

LIVRO II

CAPÍTULO XIII

Os Romanos deviam ter compreendido que eram indignos de honras divinas aqueles seus deuses que desejavam ser venera­dos com diversões torpes.

Talvez Cipião me respondesse se fosse vivo: Como é que não havemos de querer que isto fique impune, se os próprios deuses o aceitam como sagrado? Não foram eles que introduziram nos costumes romanos os jogos cénicos em que tudo isto se celebra, se recita e se representa? Não foram eles que ordenaram que tudo isto fosse consagrado e exibido em sua honra?

Porque é que então eles próprios não concluíram daí que os deuses não eram verdadeiros e muito menos dignos de que o Estado lhes tribute honras divinas? Seria de facto de todo inconveniente, seria absolutamente inútil prestar-se-lhes culto, se tivessem exigido que se celebrassem jogos com ultrajes para com os Romanos. Com o é que, então, pergunto eu, pensaram que eles deveriam ser venerados? Como é que não descobriram que se trata de espíritos detestáveis que anseiam por enganar exigindo que no meio das suas honras se celebrem os seus crimes?

Os Romanos estavam efectivamente dominados por tão nefasta superstição que até prestavam culto a esses deuses que, bem viam, queriam que se lhes consagrassem cenas obscenas; todavia, conscientes da sua dignidade e do seu pudor, nunca honraram à maneira dos Gregos os autores de tais fábulas. Mas antes como, segundo Cícero, o dito Cipião disse:

Consideram infamante a arte do comediante e todo o teatro. Quiseram não somente interditar aos homens desta profissão o acesso às magistraturas abertas aos outros cidadãos, mas também excluí-los da sua tribo pela nota infamante do censor [1].

Magnífica na verdade esta previsão, digna de ser contada entre os louvores aos Romanos. Mas gostaria que ela fosse lógica e consequente consigo mesma. Acertadamente, de facto, a qualquer cidadão romano que preferisse ser actor não só não lhe seria dada nenhuma posição de honra, mas também, por notificação do censor, deixaria de pertencer à sua própria tribo. Ó espírito da cidade, ávido de louvores e sinceramente romano! Mas respondam-me: Por que razão aceitável os homens de teatro são repelidos de tudo o que implique uma honra e são todavia admitidas, entre as honras aos deuses, as representações teatrais? Durante muito tempo a virtude romana ignorou as artes teatrais. Se as tivessem procurado para divertimento do prazer humano — teriam introduzido sub-repticiamente o vício nos costumes humanos. Os deuses pediram que elas para si fossem representadas. Por que razão é então repelido o actor que com a sua arte presta culto aos deuses? E com que cara se desacredita o actor intérprete dessas torpezas teatrais, se se adoram aqueles que as exigem?

Engalfinhem-se nesta discussão os Gregos e os Romanos. Os Gregos julgam que procedem correctamente honrando os actores porque eles prestam culto aos deuses que exigem as representações cénicas; os Romanos, pelo contrário, nem sequer lhes permitem que com a sua presença desonrem uma tribo plebeia, e muito menos a Cúria Senatorial. Nesta discussão resolve o essencial da questão um raciocínio deste teor. Propõem os Gregos: se tais deuses devem ser venerados, também tais homens devem ser com certeza honrados. Contestam os Romanos: mas a tais homens de forma nenhuma se devem conceder tais honras. Concluem os Cristãos: portanto, de nenhum modo devem tais deuses ser venerados.

CAPÍTULO XIV

Platão, que numa cidade morigerada não deixou lugar para os poetas, foi melhor do que aqueles que desejaram que fossem os deuses venerados com representações cénicas.

E agora perguntamos nós — porque é que, como os actores, não são também havidos por desonrados os pró­ prios poetas, autores de tais fábulas, que contra os deuses proferem tão grosseiros insultos, a quem a Lei das Doze Tábuas proibiu de lesarem a reputação dos cidadãos? Por que razão é justo que se infamem os actores das ficções poéticas e das ignomínias dos deuses e se prestem honras aos seus autores? Não se deverá talvez dar antes a palma ao grego Platão que, quando concebeu a sociedade como ela devia ser, julgou que, como inimigos da verdade, deviam ser expulsos da cidade os poetas? Ele, na verdade, não pôde suportar, sem indignação, as injúrias aos deuses nem quis que os ânimos dos cidadãos fossem manchados e corrompidos por ficções. Compara agora tu a humanidade de Platão (que afasta da cidade os poetas para proteger os cidadãos), com a divindade dos deuses que reclamam jogos cénicos em sua honra. Aquele, para que tais coisas se não escrevessem, embora os não tenha persuadido com argumentos, opôs-se, todavia, à leviandade e lascívia dos Gregos; — os deuses, porém, coagiram com as suas ordens a gravidade e modéstia dos Romanos, para que tais poemas fossem representados. E não quiseram apenas que fossem representados: quiseram que lhes fossem dedicados, consa grados e solenemente celebrados. A quem deveria então a cidade prestar mais dignamente honras divinas, a Platão, que proibiu essas nefastas indecências, ou aos demónios, que se comprazem em assim enganarem os homens que aquele não conseguiu trazer à verdade?

Labeão foi de parecer que Platão devia ser colocado entre os semideuses, como Hércules e Rómulo. Punha, porém, os semideuses acima dos heróis, contando a uns e outros entre as divindades. Mas eu não tenho dúvidas em pôr estes semideuses acima dos heróis e até dos próprios deuses. As leis dos Romanos aproximam-se dos pontos de vista de Platão:
— este condena todas as ficções poéticas;
— aqueles por sua vez tiram aos poetas a liberdade de pelo me­nos maldizerem os homens;
— este impede os poetas de habitarem na sua própria cidade;
— aqueles pelo menos afastam os actores de fábulas poéticas do convívio da cidade. E, se tivessem a ousadia de, em alguma coisa, se oporem aos deuses (que suspiram por jogos cénicos) talvez fossem de toda a parte repelidos.

De forma nenhuma podem, portanto, os Romanos esperar ou receber dos seus deuses leis que formem bons costumes ou corrijam os maus. Os Romanos é que, com as suas leis, vencem e convencem os deuses:
— estes pedem jogos Génicos em sua honra — e são os Romanos que excluem de todos os cargos honoríficos os homens de teatro;
— os deuses ordenam que, em sua honra, se representem as vilanias divinas em ficções poéticas — e são os Romanos que proíbem a impudência dos poetas de atentar contra a dignidade dos homens.

Mas Platão, aquele semideus, não só se opôs à lascí­via de tais deuses, como também mostrou o que se devia aperfeiçoar na índole dos Romanos. Ele é que de forma nenhuma consentiu que, numa cidade bem organizada, vivessem os poetas, quer como inventores sem peias de mentiras, quer como expositores dos péssimos feitos dos deuses que deveriam ser imitados pelos desgraçados dos homens. Não é que reconheçamos Platão como um deus ou um semideus, nem o comparemos sequer com nenhum santo anjo de Deus Altíssimo, nem com um verdadeiro profeta, nem com qualquer apóstolo ou mártir de Cristo, nem mesmo com qualquer homem cristão. Se Deus nos ajudar, na altura própria apresentaremos a razão deste nosso parecer. Mas, já que quiseram fazer de Platão um semideus, julgamos que deve ser posto à frente, se não de um Rómulo e de um Hércules (embora este último, a acreditar nos ditos dos historiadores ou nas ficções dos poetas, não tenha morto seu irmão nem cometido infâmia alguma), pelo menos de um Priapo ou de qualquer Cinocéfalo ou, por fim, de uma Febre — divindades que os Romanos em parte importaram do estrangeiro e em parte eles mesmos constituíram como seus próprios deuses.

Como é que, pois, semelhantes deuses seriam capazes de prevenir com os seus preceitos e as suas leis tão graves males do espírito e dos costumes? — Ou, se já estavam arraigados, como é que os iam extir­par, eles que tiveram o cuidado de semear e de desenvolver os seus vergonhosos gérmenes? Porque quiseram dar aos seus crimes, reais ou fictícios, a solene publicidade do teatro, para que, graças à sua autoridade divina, se atiçasse o fogo, já tão maléfico, das paixões humanas? Foi bem em vão que Cícero, quando falava dos poetas, exclamou.
        «Quando lhes chegam o clamor e os aplausos do povo, como se de um grande e sapiente mestre se tratasse— que trevas se espargem! que terror que inspiram! que paixões que ateiam!» [2].

CAPÍTULO XV

Não foi a razão, mas a adulação que levou os Romanos a criarem para si alguns deuses.

Mas não será antes a adulação, mais do que a razão, o que levou os Romanos a elegerem os seus deuses, mesmo falsos como eram? Não julgaram digno nem sequer de um pequeno templo um Platão que têm como semideus, que tanto trabalhou com suas controvérsias para evitar os maiores males do espírito que corrompem os costumes humanos. Mas ao seu Rómulo, puseram-no à frente de muitos deuses, embora entre eles corra uma doutrina mais ou menos secreta que o apresenta mais como semideus do que como deus. Até lhe instituíram um flâmine, dignidade que, nas cerimónias sagradas, como o atesta o apex [3] que usavam, era superior à de sacerdote. Só havia três flâmines ao serviço de outros tantos deuses — o flâmine Dial para Júpiter, o Marcial para Marte e o Quirinal para Rómulo. A benevolência dos cidadãos chamou-lhe depois Quirino, quando ele foi recebido no Céu. E por isso Rómulo recebeu honras superiores às de Neptuno e Plutão, irmãos de Júpiter, e do próprio Saturno, pai deles. Para o engradece­rem, dedicaram-lhe o mesmo grau de sacerdócio que a Júpiter e a Marte, a este provavelmente atendendo a Rómulo, de quem é pai.

CAPÍTULO XVI

Se aos deuses interessasse para alguma coisa a justiça, seria deles que os Romanos teriam recebido as normas de conduta em vez de pedirem leis a outros homens.

Se os Romanos pudessem receber dos seus deuses normas de vida, não teriam, alguns anos depois da funda­ ção de Roma, tomado dos Atenienses as leis de Sólon. Todavia, não as conservaram como as receberam, mas tentaram torná-las melhores e mais correctas. Embora Licurgo tenha fingido que as instituiu para os Lacedemónios pela autoridade de Apoio — , os Romanos, prudentemente, não quiseram acreditar nisso, e consequentemente não as aceitaram como tais. Conta-se que Numa Pompílio, que no reino sucedeu a Rómulo promulgou algumas leis que na verdade de nenhuma forma eram suficientes para governar a cidade. Também lhes instituiu muitas solenidades sagradas. Não consta, porém, que ele tenha recebido dos deuses essas leis.

Mas dos males da alma, dos males da vida, dos males dos costumes (tão grandes que é deles que a República ruirá, mesmo que se mantenham de pé as cidades, como testemunham os seus mais doutos varões) nada os deuses fizeram para que tais males não atingissem os seus adoradores. Bem ao contrário — procuraram por todos os modos que eles aumentassem, como acima já ficou exposto.


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)




[1] Cum artem ludicram scaenamque totam in probo ducerent, genus id hominutn non modo honore civium reliquorum carere, sed etiam tribu moveri notatione censória voluerunt. Cícero, De republica, IV, 10.
[2] Ad quos cum accessit clamor et adprobatio populi, quasi magrti cujusdam et sapientis magistri, quas illi obducunt tenebras, quos invehunt metus, quas inflamrmnt cupiditatesl Cícero, De Republica, IV, 9.
[3] Apex (icis): tufo de lã na extremidade do barrete dos sacerdotes flâmines. Desta palavra é que vem o termo português ápice — extremidade superior ou ponta de alguma coisa.

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