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31/01/2017

Leitura espiritual

Leitura espiritual


A Cidade de Deus 

Vol. 1

LIVRO V

CAPÍTULO X

Se alguma forma de necessidade domina a vontade humana.

Não há, pois, que temer a necessidade. Porque a temeram, os estóicos procuraram distinguir as causas dos seres de tal forma que subtraíram algumas a essa necessidade e lhe submeteram outras. Entre as causas que pretenderam subtrair à necessidade puseram eles as nossas von­tades, com receio de as privarem de liberdade ao sujeitarem-nas à necessidade.

Se de facto devemos apelidar de necessidade aquela força que não está em nosso poder e que realiza, mesmo que o não queiramos, o que está nas suas potencialidades (a necessidade da morte, por exemplo) é manifesto que a nossa vontade, que nos faz viver bem ou mal, não está submetida a esta necessidade. Fazemos efectivamente muitas coisas que, se não quiséssemos, decerto não faríamos. E em primeiro lugar o próprio querer: se queremos, o querer existe, se não queremos, não existe porque não quereremos se não quisermos. Mas, se se definir a necessidade segundo a expressão «é necessário que tal coisa seja ou se faça assim» — não sei porque é que havemos de recear que ela nos vá tirar a liberdade da vontade. Certamente que não submetemos a vida de Deus nem a presciência de Deus à necessidade quando dizemos — é necessário que Deus viva sempre e tudo saiba com antecipação; como também se não minora o seu poder quando se diz que ele não pode morrer nem enganar-se. Certamente que não o pode — mas de tal modo que, se o pudesse, ele teria um poder menor. É, pois, correctamente que se chama omnipotente quem todavia não pode nem morrer nem enganar-se. Realmente, chama-se omnipotente porque faz o que quer e não porque suporta o que não quer: se isto lhe acontecesse, deixaria de ser omnipotente. Não pode certas coisas precisamente porque é omnipotente.

Assim é também ao dizermos que é necessário, quando queremos, querer com livre arbítrio. Dizemos sem a menor dúvida a verdade, sem, todavia, sujeitarmos o nosso livre arbítrio a uma necessidade que suprime a liberdade. As nossas vontades são, pois, nossas; elas próprias fazem tudo o que fazemos quando queremos e que não se faria se não quiséssemos.

Mas quando alguém, sem querer, suporta alguma coisa por vontade de outros homens — mesmo neste caso é a vontade que se exerce: embora não seja vontade do próprio é sempre vontade de um homem. Todavia, o poder é de Deus. (Porque, se se tratasse apenas de uma vontade que fosse incapaz de fazer o que quer — ela estaria impedida por uma vontade mais forte. Mesmo neste caso, a vontade não seria outra coisa mais que vontade, e não de outrem, mas de quem estivesse querendo, embora o seu desejo se não pudesse cumprir). Por isso é que tudo o que o homem suporta contra sua vontade, não deve atribuí-lo às vontades dos homens nem à dos anjos nem à de qualquer espírito criado, mas sim à vontade d’Aquele que concede o poder àqueles que são capazes de querer.

Portanto, lá porque Deus previu o que viria a acontecer na nossa vontade, não se segue que nenhum poder tenha havido nela. Porque quem isso previu alguma coisa previu. Ora, se, prevendo o que se passaria na nossa vontade, ele previu não com certeza um puro nada, mas algo de real, sem dúvida conforme a sua própria previdência, alguma coisa depende da nossa vontade. Consequentemente, de modo nenhum somos obrigados nem a suprimir o livre arbítrio, mantendo a presciência de Deus, nem a negar a presciência de Deus (o que é sacrílego), mantendo o livre arbítrio. Pelo contrário: abraçamos uma e outra verdade, uma e outra confessamos fiel e sinceramente — uma para bem querer, a outra para bem viver. Porque vive-se mal se não se acreditar rectamente em Deus. Longe de nós, portanto, negar, para permanecermos livres, a presciência d’Aquele por cujo poder somos ou seremos livres.

Consequentemente, não é em vão que há leis, reprimendas, exorta­ções, louvores e censuras. Tudo isto ele previu e vale tanto quanto ele previu que havia de valer. Também as preces valem para se obterem os bens que ele previu conceder aos que oram. É de toda a justiça que se estabeleçam prémios para as boas acções e castigos para os pecados. E nem é por Deus ter previsto que havia de ' pecar que o homem peca. Pelo contrário, está fora de dúvida que, quando peca, é ele, homem, que peca — porque Aquele cuja presciência é infalível, sabia já que não seria o destino, nem a fortuna, nem outra qualquer causa, mas que seria o próprio homem que iria pecar. E se Ele não quiser, certamente que não pecará — mas, se não quiser pecar, também isso Ele previu.

CAPÍTULO XI

A Providência universal de Deus a cujas leis tudo está submetido.

Efectivamente este supremo e verdadeiro Deus que, com o seu Verbo e o seu Espírito Santo, são Três em Um;
este Deus único, omnipotente, criador e autor de toda a alma e de todo o corpo, de cuja beatitude participam todos os que em verdade e não em ilusão são felizes;
que fez do homem um animal racional, composto de um corpo e de uma alma, e que não permitiu, quando este homem pecou, que ficasse impune, nem o abandonou sem misericórdia;
que aos bons e aos maus deu o ser como às pedras, a vida vegetativa como às plantas, a vida sensitiva como aos animais, a vida intelectual apenas como aos anjos;
de quem procedem toda a regra, toda a forma e toda a ordem;
de quem procedem a medida, o número, o peso;
de quem procede tudo o que tem uma natureza, tudo o que tem um género, tudo o que tem um preço, seja ele qual for;
de quem procedem os gérmenes das formas, as formas dos gér­menes, o movimento das formas e dos gérmenes;
que deu à carne a sua origem, a sua beleza, a sua saúde, a fecundidade da sua propagação, a disposição dos seus membros, a sua salutar harmonia;
que à própria alma irracional deu memória, sensibilidade, instinto, e à racional deu ainda espírito, inteligência, vontade;
que não deixou de conceder, não somente ao céu e à terra, não somente ao anjo e ao homem, mas também aos órgãos do mais pequenino e do mais desprezível dos animais, à mais pequena das penas da ave, à flor dos campos, à tolha da árvore, a harmonia das suas partes e como que uma certa paz — seria de todo inconcebível que Ele quisesse deixar o reino dos homens, as suas dominações e as suas sujeições tora das leis da sua Providência.

CAPÍTULO XII

Por que costumes os antigos Romanos mereceram que o verdadeiro Deus, embora ainda o não adorassem, dilatasse o seu Império.

 Vejamos, então, quais foram os costumes dos Romanos e qual foi a causa por que se dignou prestar-lhes ajuda, para o engrandecimento do Império, o verdadeiro Deus em cujo poder estão até mesmo os reinos da Terra. Para que o pudéssemos expor com mais precisão, escrevemos sobre este caso o livro precedente, onde mostrámos ser nulo nesta matéria o poder dos deuses que eles têm julgado deverem ser venerados com ritos ridículos. As partes precedentes deste livro, até este momento, tiveram por objecto eliminar a questão do destino, não fosse acontecer que alguém, já persuadido de que a propagação e a manutenção do Império Romano se não devem ao culto de tais deuses, as vá agora atribuir a não sei que destino em vez de as atribuir à vontade poderosíssima de Deus Supremo.

Os antigos romanos, os dos primeiros tempos, tanto quanto a história no-lo ensina e garante, embora como as outras nações, à excepção apenas do povo dos hebreus, adorassem falsos deuses e imolassem vítimas, não a Deus, mas aos demónios, todavia

eram ávidos de louvores, pródigos quanto ao dinheiro, aspiravam por elevada glória e fortuna honesta [i].

Esta foi a sua paixão mais ardente. Por ela queriam viver. Por ela não hesitavam em morrer. Por esta desmesurada paixão, abafaram todas as outras paixões. Finalmente, porque consideravam vergonha para a sua pátria servir e uma glória dominar e imperar, desejaram com todo o empenho, antes de tudo, que ela fosse livre e depois que fosse so­berana.

É por isso que, não suportando o domínio da realeza, criaram uma autoridade renovável todos os anos e partilhavam- -na por dois chefes chamados cônsules, palavra derivada de consulere (aconselhar), em vez de lhes chamarem reis (reges) ou senhores (domini), palavras que derivam de regnare (reinar) e de dominare (dominar) [ii].

E isto embora se pudesse usar muito bem a palavra reges (reis) que deriva do verbo regere (dirigir, governar), tal como regnum (reino, poder) deriva de reges, e reges, como acima disse, de regere.

Pareceu-lhes, porém, que o fausto régio não era próprio da vida disciplinada de um dirigente nem da benevolência de um conselheiro, mas da soberba de um tirano. Por isso, depois da expulsão do rei Tarquínio e da instituição dos cônsules, seguiu-se o que o citado autor descreve assim no seu elogio dos Romanos:

Conquistada que foi a liberdade, a cidade — facto incrível na história—, desenvolveu-se com extrema rapidez, tão grande era a paixão da glória que a animava [iii].

Foram, pois, esta avidez do louvor e esta paixão da glória que realiza­ram tantas maravilhas, dignas por certo de louvores e de glória segundo o juízo dos homens.

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Salústio. (latil., VII, 6.
[ii] Salústio, Catil., VII, 6.
[iii] Salústio, Catil., VII, 3.

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