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03/01/2017

Leitura espiritual

Leitura espiritual



A Cidade de Deus



Vol. 1

LIVRO II

CAPÍTULO IX

O que pensavam os antigos romanos dos desmandos poéticos que os Gregos, seguindo o parecer dos deuses, quiseram que fossem livres.

O que acerca disto pensavam os antigos romanos, atesta-o Cícero nos livros que escreveu sobre A República. Neles diz Cipião no decurso de uma discussão:
Nunca as comédias poderiam representar com êxito as suas tor­pezas se os hábitos de vida o não permitissem. [1]

Os gregos, mais antigos que os romanos, guardaram na sua opinião imoral uma certa lógica. Entre eles foi mesmo permitido por lei que se dissesse, numa comédia, referindo nomes, o que se quisesse acerca de quem se quisesse. Por isso, como diz o «Africano» nos mesmos livros:

Quem é que ela não tem atingido? ou antes — quem é que ela não vexou? a quem poupou? Que tenha maltratado homens conhecidos por ímprobos, revoltosos contra o estado, como Cleone, Cleofonte ou Hipérbolo — seja! [2].

Continua:
Embora cidadãos deste jaez devam ser postos a descoberto pelo censor de preferência a sê-lo pelo poeta — suportemo-lo. Mas a um Péricles que governou a sua própria cidade durante anos, com a maior autoridade, na paz e na guerra, vê-lo ultrajado em versos representados em cena não desagrada menos do que se o nosso Plauto ou Névio quisessem maldizer a Públio e a Gneu Cipião, ou Ceálio a Marco Catão [3].

E, um pouco depois, acrescenta:
— Pelo contrário, as nossas Doze Tábuas, tão parcimoniosas em sancionar a pena capital, eram-lhe porém favorá­veis quando alguém cantasse ou compusesse um poema atentando contra a reputação de alguém. Perfeitamente! Aos juízos dos magistrados e às suas legítimas decisões é que se deve expor a nossa vida, mas não devemos expô-la à imaginação dos poetas — e não devemos deixar que se profira nem um só ultraje a não ser com a condição de podermos responder e defendermo-nos em Tribunal [4].

Julguei que devia citar este texto do livro quarto de A República de Cícero, suprimindo ou alterando alguns pormenores para uma melhor compreensão. Vem muito a propósito do que pretendo explicar, se puder. Diz em seguida mais umas coisas e conclui esta passagem mostrando como aos antigos Romanos desagradava enaltecer ou ultrajar em cena um homem ainda em vida. Mas, como disse, os Gregos preferiram permiti-lo, porque lhes pareceu mais conveniente embora mais impudente; viam que os deuses aceitavam e lhes agradavam as infâmias não só dos homens mas também as dos próprios deuses, compostas para o teatro, fossem elas ficções dos poetas ou autênticas perversidades representadas no palco. E oxalá elas provocassem apenas o riso nos seus adoradores e não também a imitação. Teria sido orgulho demais respeitar a reputação das autoridades do Estado e dos cidadãos quando nem os deuses quiseram que a sua fama fosse poupada.

CAPÍTULO X

Com que arte de causar dano pretendem os demónios que se­jam narrados os seus falsos ou verdadeiros crimes.

Alegam em defesa dos deuses que o que deles se diz não é verdadeiro mas falso. Precisamente isso ainda mais execrável é, se tomares em consideração uma piedade autêntica. Mas, se reflectires na malícia dos demónios, que é que haverá de mais ardiloso e de mais hábil para enganar? Se se fala mal de um honesto, bom e útil príncipe da pátria — não é isso tanto mais indigno quanto mais afastado da verdade e mais alheio à sua vida? Que tormentos bastarão então, quando essa abominável, essa tamanha injúria se pratica contra um deus?

Mas os espíritos malignos, que eles têm por deuses, permitem que os homens lhes atribuam crimes que não cometeram, contanto que as suas mentes se deixem envolver nessas crenças como que em redes e os arrastem assim consigo para o suplício que lhes está destinado. Ou então quem os cometeu foram homens que gostam de ser havidos por deuses, que se comprazem nos erros humanos, pelos quais com mil artes de causar dano e de enganar, se propõem mesmo serem adorados. Ou ainda tais crimes por nenhum homem foram cometidos mas esses espíritos tão falazes aceitam de boa vontade que eles se inventem acerca dos deuses para que assim pareça que desceu do próprio céu à terra uma autoridade bastante idónea para perpetuar esses crimes e torpezas.

Como, porém, os Gregos se sentiam escravos de tais deuses, pensaram que, sendo estes vítimas de tantos e tão grandes ultrages no teatro, de forma nenhuma deviam ser os homens poupados pelos poetas: procediam assim porque pretendiam assemelhar-se aos seus deuses e porque receavam provocar a cólera destes se eles próprios, simples homens, gozassem de melhor reputação e, por isso, lhes passassem à frente.


CAPÍTULO XI

Entre os Gregos, os actores eram admitidos à administração pú­blica, porque seria injusto que fossem desprezados pelos homens os que aplacavam os deuses.

Nesta ordem de ideias consideraram os actores destas farsas dignos da não pequena honra de cidadania. Assim também no dito livro A República, se recorda que não só o ateniense Esquines, varão eloquentíssimo, que representou tragédias quando adolescente, se apossou da governação, mas também Arostodemo, igualmente actor trágico, foi várias vezes enviado pelos Atenienses a Filipe como embaixador principalmente para os assuntos de paz e de guerra. Não lhes parecia razoável que os actores da arte e dos jogos cénicos em que os deuses se compraziam, fossem atirados para o número dos desacreditados.

Era na verdade torpe, mas de certo totalmente de acordo com os seus deuses, o que faziam os Gregos que não ousavam subtrair à língua dos poetas e dos histriões a vida dos cidadãos que estava a ser lacerada. Viam que era depreciada a vida dos deuses com consentimento e prazer dos próprios deuses. Por isso, longe de na cidade sentirem desprezo para com os actores de tais torpezas nos teatros, vendo quão agradáveis eram para com os deuses seus senhores, consideraram-nos credores das mais altas honrarias.

De facto, que razões se poderiam encontrar para os Gregos honrarem os sacerdotes — porque, por seu intermédio, ofereciam vítimas agradáveis aos deuses— , mas considerarem infames os actores por cujo intermédio se oferecia este prazer ou honra reclamada pelos deuses que, em caso de omissão, teriam sofrido as consequências da sua cólera? Principalmente atendendo a que Labeão [5], que é tido pelo melhor perito neste género de matérias, distingue as divindades boas das divindades más pela diversidade do culto: e assim as más aplacam-se com matanças e súplicas tristes — e as boas com homenagens ale­gres e festivas tais como, segundo ele próprio diz, jogos, banquetes e lectistemia [6].

De tudo isto faremos, mais à frente, se Deus nos ajudar, um exame mais pormenorizado. Por agora, no que respeita ao presente assunto, quer se tributem todas as honras a todos os deuses, como se todos fossem bons (não me parece que haja deuses maus: e, todavia, todos estes, por serem espíritos imundos, são maus), quer se lhes atribuam certas honras a cada um conforme a sua categoria, como é o parecer de Labeão, estão absolutamente certos os Gregos ao honrarem tanto os sacerdotes, ministros dos sacrifícios, como os actores que exibem os espectáculos. Não aconteça que sejam convencidos de injustiça: em relação a todos os deuses, se os jogos a todos são agradáveis; ou então, o que é mais grave, em relação aos deuses que julgam bons, se os jogos só a estes agradam.

CAPÍTULO XII

Os Romanos, tirando aos poetas a liberdade em relação aos humanos e concedendo-a em relação aos deuses, pensaram melhor de si do que dos deuses.

Ora os Romanos, como se gloria Cipião na dita disputa de A República, não permitiram que a sua vida e reputação estivessem sujeitas às injúrias dos poetas e até prescreveram que devia ser condenado à morte o que ousasse compor um poema desse género. Isto que decidiram é realmente bastante honroso em relação a si próprios, mas, em relação aos seus deuses, é orgulhoso e ímpio. Sabendo que estes se deixavam denegrir pelos ultrajes e maldições dos poetas não apenas com paciência, mas até com prazer — consideram-se eles menos me­recedores dessas injúrias que os seus deuses. E até se defenderam deles ao abrigo da lei, ao passo que os deuses até isso misturaram nas suas solenidades e ritos sagrados. Afinal, Cipião, será que tu louvas a licença negada aos poetas romanos de infligirem uma ofensa a qualquer dos Romanos, quando estás a ver que eles não poupam nenhum dos vossos deuses? Será que te parece mais digna de estima a vossa Cúria do que o Capitólio, mais até Roma sozinha do que todo o Céu — pois que os poetas estão proibidos, mesmo por lei, de exercitarem a sua envenenada língua contra os teus compatriotas, mas podem tranquilamente lançar contra os teus deuses tanta zombaria sem que um único senador, um único censor, um único governante, um único pontífice o proíbam? Evidentemente que seria indigno que Plauto ou Névio dissessem mal de Públio e de Gneu Cipião, ou Cecílio de M. Catão; mas foi digno que o vosso Terêncio excitasse a perversidade dos adolescentes com os vícios de Júpiter Máximo e Óptimo?


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)




[1] Nunquam comoediae nisi consuetudo vitae pateretur, probare sua theatris plagitia potuissent. Cic., De republica, VI, 11-12.
[2] Quem ilia non adtigit? Vel potius quem non vexavit? cui pepercit? Esto, populares homines inprobas, in re publica sedetiosos, Cleonem, Cleophontem Hyperbolum laesit. Id. Ib.
[3] Patiamur etsi ejus modi cives a censore melius est quam a poeta notari. Sed Peridem, cum jam suae civitati maxima autoritate plurimos annos domi et belli praefuisset, uiolari versibus; et eos agi in scaena, non plus decuit quam si Plautus noster voluisset, aut Nevius Publio et Gneo Scipioni aut Caecilius Marco Catoni maledicere. Id. Ib.
[4] Nostrae contra duodecim tabulae cum perpaucas res capite sanxissent, in his hanc quoque sanciendam putaverunt, si quis occentavisset, sive carmen condidisset, quod infamiam faceret flagitiumne alteri. Preclare! Judiciis enim magistratuum, disceptationibus legitimes propositam vitam, non poetarum ingeniis habere debemus; nec probrum audire, nisi ea lege, ut respondere liceat, et judicio dependere. Id. Ib.
[5] Acerca deste misterioso Labeão (houve um M. Antistius Labeo jurisconsulto, contemporâneo de Augusto; um Cornelius Labeo, citado por Macróbio, Sénio e Lido, autor de De oráculo Apollinis Clarii e de De diis animalibus que parece ser o autor citado por Santo Agostinho). V. S. Muelleneisen, De G. Labeonis fragmentis, studiis, assectatoribus, Marburgo, 1889; Gabarron, Amobe, son oeuvre, Paris, 1921; George E. Mc Cracken, Amobius o f Sicca, The case against The pagans, Westminster, 1949, t. I, p 39 e segs e 259 e segs; Boehm, De Comelii Labeonis aetate, Königsberg, 1913; Niggetiet, De Comelio Labeone, Münster, 1908; Festugière, La Doctrine des « Viri Novi» sur l origitte et sur la vie des âmes d’aprés Amobe, em Memorial lagrange, Paris, 1940, pp 97-131.
[6] Lectistemium (pl.-a) era um banquete ritual em honra dos deuses. Colocavam-se as estátuas dos deuses em leitos (lectum, pl.-a) em frente da mesa com iguarias como se eles fossem os comensais.

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