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27/01/2017

Leitura espiritual


Leitura espiritual


A Cidade de Deus 

Vol. 1

LIVRO IV

CAPÍTULO XXXI

Opinião de Varrão, que reprova as crenças populares e, embora não tenha chegado à crença do verdadeiro Deus, pensa que se deve adorar a um só Deus.

Não é verdade que o próprio Varrão, (dói-nos que ele tenha posto os jogos cénicos na categoria das coisas divinas, embora não por iniciativa própria), quando exorta, em muitas passagens, como homem religioso que era, a que se venerem os deuses, confessa que segue sem convic­ ção pessoal as cerimónias instituídas, como recorda, pela Cidade Ro­mana e que não hesita em confessar que, se tivesse de constituir a cidade de novo, consagraria os deuses e os seus nomes segundo uma regra tirada de preferência da natureza? Mas, como já estava integrada no velho povo, julgou que devia conservar a história dos nomes e sobrenomes tal como tinha sido transmitida. O fim das suas descrições e investigações consiste em levar o povo ao culto, mais do que levá-lo ao desprezo dos deuses.

Por tais palavras, este homem tão arguto dá suficientemente a entender que nem tudo refere porque muitos pormenores não só provocariam o seu desdém como até suscitariam a repulsa do próprio vulgo se não se calassem. Poder-se-ia julgar que o que digo são meras conjecturas minhas, se ele próprio, noutra passagem, ao falar das coisas religiosas, não declarasse abertamente que há muitas coisas verdadeiras de que é inútil instruir o povo, e também muitas que, embora falsas, é vantajoso para o povo tomá-las por verdadeiras. É por isso que os Gregos ocultavam atrás dos muros e no silêncio a celebração de suas iniciações e mistérios.

Deixou aqui bem patente o que tramam os sabichões para o governo dos povos e das cidades. E nestes logros que se deleitam (de miríficas maneiras) os demónios malignos que detêm em seu poder tanto enganadores como enganados e de cuja dominação só os pode libertar a graça de Deus por Jesus Cristo Senhor Nosso.

Diz ainda o mesmo argutíssimo e doutíssimo escritor que lhe parece que só compreendem a natureza de Deus os que crêem que ele é uma alma que dirige o universo com movimentos e com leis. Por isso, embora ainda não estivesse na posse da verdade (pois o verdadeiro Deus não é uma alma, mas o criador e autor da alma), todavia, se pudesse estar livre dos preconceitos tradicionais, teria proclamado e recomendado o culto a um só Deus, governador do mundo a que imprime movimento e fixa leis. E assim não restaria acerca deste assunto senão uma questão: a de ele dizer que Deus é uma alma em vez de criador da alma.

Diz também que, durante mais de cento e setenta anos, os antigos romanos adoraram os deuses sem representações. Diz ele:

Se isto se mantivesse até agora, o culto dos deuses teria sido mais puro.

Como prova da sua asserção invoca, entre outros, o Povo Judeu. Nem tem dúvidas em terminar esta passagem desta maneira:

Os primeiros que erigiram para o povo estátuas de deuses suprimiram do meio dos seus concidadãos o temor, mas aumentaram o erro

 julgando sensatamente que os deuses podiam facilmente ser despre­zados sob a aparência estúpida de ídolos. Na verdade, não diz:

Introduziram o erro,

mas sim

aumentaram.

Quis assim, com certeza, dar a entender que, mesmo sem ídolos, o erro já existia. Por isso, quando declara que só compreendem o que seja Deus os que o têm por uma alma que governa o universo e considera mais puro que se observe a religião sem ídolos, quem não verá quanto ele está próximo da verdade? Se ele alguma coisa pudesse contra a antiguidade de tão grande erro, sem dúvida que teria acreditado num Deus único que governa o mundo e teria pensado que Aquele se deve adorar sem ídolos.

Encontrando-se tão perto da verdade, poderia talvez reconhecer facilmente a mutabilidade da alma e isso tê-lo-ia levado a conceber que o verdadeiro Deus é, por natureza, imutável e, consequentemente, criador da própria alma.

Porque assim é, todos esses motivos de escárnio respeitantes à multidão dos deuses que tais homens compilaram nos seus livros, foram eles obrigados por uma secreta vontade de Deus mais a confessá-los do que a tentarem convencer-nos deles. Se daqui tiramos alguns testemunhos — fazemo-lo para refutar os que se não querem aperceber de quão grande e quão maligno é o poder dos demónios de que nos libertarão o sacrifício único de tão santo sangue derramado e o dom do Espírito que nos foi concedido.

CAPÍTULO XXXII
Sob que pretexto de utilidade os chefes das nações quiseram que as falsas religiões se mantivessem entre os povos que lhes estavam submetidos.

Diz ainda Varrão, a propósito da genealogia dos deuses, que os povos estão mais inclinados a ouvir os poetas do que os filósofos. É por isso que os seus antepassados, isto é, os antigos romanos, acreditaram no sexo e na genealogia dos deuses e lhes atribuíram casamentos. Parece que isto aconteceu só pela razão de que a pretensa prudência e sabe­doria dos homens se preocupava em enganar o povo em matéria de religião, servindo assim e imitando os demónios, cujo maior desejo é enganar. Com efeito, assim como os demónios não se podiam apoiar senão naqueles que começaram por enganar, assim também os chefes, certamente homens não justos, mas semelhantes aos demónios, inculcavam como verdade aos povos, sob o nome de religião, crenças que sabiam que eram vãs. Desta maneira, prendiam-nos, a bem dizer, mais eficazmente, à sociedade civil, para os manterem semelhantemente submetidos. Quem, pois, débil e ignorante, poderia escapar a chefes das nações e demónios, uns e outros enganadores?

CAPÍTULO XXXIII

É pelo juízo e pelo poder do verdadeiro Deus que os tempos de todos os reis e de todos os impérios são ordenados.

É, pois, Deus, autor e dispensador da felicidade, porque é ele o único Deus verdadeiro, quem concede os reinos da Terra tanto aos bons como aos maus. E não o faz à toa, como que fortuitamente (pois que Ele é que é o verdadeiro Deus e não a fortuna), mas conforme a ordem das coisas e dos tempos, para nós oculta mas dele perfeitamente conhecida. Ele não serve nem está submetido a esta ordem dos tempos. Pelo contrário, é Ele que, como senhor, a rege e, como moderador, a ordena. Mas a felicidade — essa dá-a aos bons. Podem tê-la ou não os que servem; podem tê-la ou não os que reinam. Todavia, só será plena naquela vida onde já ninguém terá que servir. E por isso que os reinos da Terra são por Ele concedidos tanto aos maus como aos bons: Ele não quer que os seus adoradores, ainda crianças na vida moral, desejem d ’Ele esse dom como qualquer coisa de grande.

É este o mistério do Antigo Testamento, no qual se ocultava o Novo: nele, as promessas e os dons são de ordem terrena. Mas os homens espirituais de então já compreendiam, sem, todavia, o pregarem aber­tamente, de que eternidade eram figura estas coisas temporais e em que dons divinos consistia a verdadeira felicidade.

CAPÍTULO XXXIV

O reino dos Judeus foi instituído e conservado pelo único e verdadeiro Deus enquanto eles se mantiveram na verdadeira religião.

Também, para fazer compreender que estes bens terrenos, únicos a que aspiram os que não podem conceber outros melhores, dependem do poder do próprio Deus único e não da multidão dos falsos que os Romanos outrora acreditaram que deviam ser venerados, multiplicou Ele o seu povo no Egipto, a partir de um reduzido número de indivíduos, e libertou-o por meio de sinais maravilhosos. E não foi a Lucina que invocaram as mulheres judias quando, das mãos dos Egípcios perseguidores, que procuravam matar todos os seus filhos, Ele próprio salvou os seus recém-nascidos para que de forma prodigiosa se multiplicassem e aquele povo crescesse de maneira incrível. Mamaram sem a deusa Rumina; estiveram nos seus berços sem Cunina; comeram e beberam sem Educa e sem Potina; foram educados sem tantos deuses da infância; casaram sem os deuses conjugais; uniram-se aos respectivos cônjuges sem o culto de Priapo, sem invocarem Neptuno, o mar abriu-se aos que passavam e as ondas se fecharam sobre os inimigos que os perseguiam; não se consagraram a qualquer deusa Mania quando receberam o maná caído do céu; não veneraram as Ninfas nem as Linfas quando a água jorrou da rocha batida quando estavam sequiosos; conduziram a guerra sem os insensatos ritos de Marte e de Belona e, se não venceram certamente sem a vitória, nem por isso consideraram esta como uma deusa mas como uma dávida do seu Deus; tiveram searas sem Segetia, bois sem Bubona, mel sem Melona, fruta sem Pomona, numa palavra — todos estes bens pelos quais os Romanos julgavam que deviam invocar uma tão grande multidão de falsos deuses, receberam-nos eles de uma forma mais feliz do único Deus verdadeiro.

E, se contra Ele não tivessem pecado por uma curiosidade ímpia, se d’Ele afastados por pretensas artes mágicas, não deslizassem para os deuses estrangeiros e os ídolos, e se, por fim, não tivessem dado a morte a Cristo — manter-se-iam no mesmo reino, embora não mais espa­çoso, todavia mais feliz. E agora o facto de se apresentarem dispersos por quase todas as terras e nações, constitui uma decisão providencial daquele único e verdadeiro Deus. E assim a destruição das imagens, dos altares, dos bosques sagrados e dos templos dos falsos deuses, e a proibição dos sacrifícios, que se vão verificando por toda a parte, pode provar-se pelos livros deles como tudo de há muito estava profetizado, para que, quando se lerem estas previsões nos nossos livros, se não possa pensar que as inventámos. Deixemos para o próximo livro a continuação destas considerações e ponhamos termo aqui a esta longa exposição.

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)


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