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23/01/2017

Leitura espiritual


Leitura espiritual


A Cidade de Deus 

Vol. 1

LIVRO IV

CAPÍTULO XVIII

Como é que distinguem a Felicidade da Fortuna os que as con­sideram como deusas?

Vejamos: a Felicidade também é uma deusa? Recebeu um templo, mereceu um altar, são-lhe oferecidos sacrifícios apropriados. Pois então só a ela adorem! Efectivamente, que é que de bom poderia faltar onde ela estivesse? Mas que quer dizer: Que a Fortuna é, também ela, considerada e venerada como uma deusa? Será a Felicidade uma coisa e a Fortuna outra? A Fortuna, essa, pode ser má; mas a Felicidade, se for má, já não será Felicidade. Sem dúvida que devemos considerar os deuses de um e outro sexo (se é que têm sexo) todos bons. Di-lo Platão, dizem-no outros filósofos e ilustres chefes de Estado e de povos. Mas então como é que a deusa Fortuna é ora boa ora má? Acaso será que, quando é má, deixa de ser deusa e se converte de repente num demónio maligno? Quantas são então estas deusas? Tantas, com certeza, quantos os homens afortunados, isto é, de boa fortuna. Mas, como são muitos simultaneamente, isto é, ao mesmo tempo, os de má fortuna, se ela é sempre a mesma, então é ela boa e má — boa para uns e má para outros? Será sempre boa a que é deusa? Então confunde-se com a Felicidade. Porque se empregam então diferentes nomes? Tal é de admitir, pois é costume ter uma só coisa dois nomes. Mas para quê templos distintos, altares distintos e e distinto culto? Há uma razão, dizem: é que a felicidade é a que os bons conseguem pelos seus méritos adquiridos; mas a fortuna, a que se chama boa, acontece fortuitamente, sem consideração pelos seus méritos, a todos os homens — bons e maus. Por isso é que se chama Fortuna. Mas, como pode ser boa a que, sem discernimento, favorece bons e maus? Para que venerar então a que é de tal modo cega que cai ao acaso sobre qualquer um — preterindo o mais das vezes os seus adoradores e favorecendo os que a desprezam? O u então, se os seus adoradores conseguem que por ela sejam notados e amados, será que ela então se deixará guiar pelos méritos e não favorece ao acaso? Em que é que fica então aquela definição da Fortuna? Donde resulta ter ela tirado o nome de acontecimentos fortuitos? Se ela é, na verdade, fortuna — não interessa adorá-la. Mas se discerne os seus adoradores para os favorecer, então já não é fortuna. E se Júpiter a enviar para onde lhe apetecer? Então, adore-se só a ele, pois não pode a Fortuna resistir-lhe quando ele lhe ordena que vá para onde lhe apetecer. Ou então, que lhe prestem culto os maus que não querem adquirir méritos pelos quais possam tom ar propícia a deusa Felicidade.

CAPÍTULO XIX

A Fortuna feminina.

Atribuem realmente tamanha importância àquela pretensa deusa a que chamam Fortuna, que, segundo uma tradição histórica, a estátua consagrada pelas mulheres e chamada Fortuna feminina teria falado não apenas uma vez, mas duas e declarado que as mulheres tinham feito esta consagração em conformidade com os ritos. Se este facto é verdadeiro, não temos de que nos admirar. Efectivamente, não é difícil aos malignos demónios enganarem-nos, mesmo desta maneira. E melhor aqui deveriam notar os seus artifícios e manhas, porque a deusa que falou é aquela que intervém ao acaso e não a que vem recompensar os méritos. A Fortuna foi loquaz e a Felicidade muda — para quê senão para que os homens não tratem de viver com rectidão desde que esteja assegurada a Fortuna que os tomará afortunados sem o menor mérito? Mas, se na realidade a Fortuna fala — então que não seja a feminina, mas antes a masculina a falar, para que não se julgue que foi a loquacidade das mulheres que lhe consagraram a estátua quem inventou um tão grande prodígio.

CAPÍTULO XX

A Virtude e a Fé que os pagãos louvaram com templos e culto, deixando de lado outros bens que da mesma forma deviam ser venerados, se é que está certo que lhes atribuam a divindade.

Fizeram também da Virtude uma deusa. Se ela, na verdade, fosse deusa, devia ser preferida a muitas outras. Mas, porque na realidade deusa não é, mas é antes um dom de Deus, deve ser pedida Àquele que é o único que a pode dar — e toda a turba dos falsos deuses se dissipará. Mas, porque é que a Fé, também ela, é tida por uma deusa e recebeu, ela também, um templo e um altar? Quem quer que seja que a aceite assisadamente é de si próprio que faz uma morada para ela. Mas, como sabem eles o que é a fé, cujo primeiro e máximo dever consiste em crer no verdadeiro Deus? Porque é que a Virtude não há-de bastar? A Fé não estará nela incluída? Mesmo eles entenderam que na verdade a Virtude se deve distribuir por quatro espécies — prudên­cia, justiça, força, temperança. E como cada uma destas tem as suas espécies, a Fé liga-se à Justiça e mantém o primeiro lugar entre nós, que sabemos o que quer dizer o justo vive da fé [i].

Surpreendem-me, porém, estes ávidos duma multidão de deuses: pois se a fé é uma deusa porque é que lhes infligem a injúria de porem de parte a tantas outras deusas às quais podiam, de forma semelhante, dedicar templos e altares? Porque é que a temperança não mereceu ser considerada como deusa, já que foi em nome dela que muitos romanos de alta categoria conseguiram uma não pequena glória? Finalmente, porque não é uma deusa a fortaleza — ela que assistiu a Múcio quando expôs a mão às chamas, ela que assistiu a Cúrcio quando se atirou, pela pátria, a um precipício, ela que assistiu aos Décios, pais e filhos, quando a favor do exército fizeram voto de si mesmos? Se, porém, em todos eles era de verdadeira fortaleza que se tratava, não é isso que está agora em causa.

Porque é que a prudência, porque é que a sabedoria nenhum dos lugares dos deuses mereceram? Será porque são todas veneradas sob o nome genérico da própria Virtude? Nesse caso, bem podia ser adorado um só Deus, do qual julgam que todos os outros são partes. Mas a Fé e a Pudicícia estão incluídas numa única virtude e, todavia, mereceram altares à parte em templos próprios.

CAPÍTULO XXI

Os que não compreendem que haja um só Deus, deveriam con­tentar-se pelo menos com a Virtude e a Felicidade.

Não foi a verdade, mas sim a vaidade que criou estas deusas; o que elas são, na realidade, são dons do verdadeiro Deus e não deusas. Aliás, onde estão a Virtude e a Felicidade para quê procurar outra coisa? Que bem, de facto, basta àqueles a quem não bastam a Virtude e a Felicidade? É que a Virtude abarca tudo o que se deve fazer e a Felicidade tudo o que se deve desejar. Se Júpiter era adorado para que no-las dispensasse, (porque, se a extensão e a duração do Império são algo de bom, pertencem à Felicidade) como é que se não compreendeu que a Virtude e a Felicidade são dons de Deus e não deusas? Se, porém, se consideram deusas, pelo menos que deixassem de procurar essa tamanha multidão de deuses. Atendam às funções de todos os deuses e deusas, tais como lhes apraz imaginá-los segundo a sua fantasia e, se puderem, vejam se encontram algum bem que os deuses possam dispensar a um homem que já possua a virtude, a um homem que possua já a felicidade. Que ensinamento se deveria pedir a Mercúrio ou a Minerva quando a Virtude já em si os contém a todos? Efectivamente, a virtude foi definida pelos antigos como a própria arte de viver honesta e correctamente (ars ipsa bene recteque vivendi virtus). Pelo facto de «virtude» em grego se chamar ápex·}), os Latinos acharam por bem traduzi-la com o nome de «arte». Mas, se a virtude não pode estar presente senão nos dotados de engenho, — que necessidade havia do deus-pai Cácio (Catius) para tom ar os homens Sagazes (cati) isto é, argutos, uma vez que a Felicidade podia conceder-lhes esta qualidade? É que, na verdade, nascer dotado de engenho é um favor da Felicidade; e daí, embora a deusa Felicidade não possa ser adorada por alguém que ainda não nasceu para dela obter este favor, esta deusa poderá conceder aos pais seus adoradores que deles nasçam filhos dotados de engenho. Que necessidade têm as parturientes de invocar Lucina, quando, se a Felicidade estiver presente, elas derem à luz com facilidade filhos bem dotados? Que necessidade há de recomendar à deusa Ope os que estão a nascer; ao deus Vaticano os que dão vagidos; à deusa Cunina os deitados no berço; à deusa Rumina os lactantes; ao deus Estalitino os que começam a erguer-se (stantes); à deusa Adeona os que começam a andar (adeuntes); à deusa Abeona os que se afastam (abeuntes); à deusa Mente para que tenham boa inteligência (mens), ao deus Vo­lumno e à deusa Volumna para que queiram (volo) o bem; aos deuses nupciais para que façam um bom casamento; aos deuses campestres, principalmente à deusa Fructesea, para que colham abundantes frutos; a Marte e a Bellona para que combatam (belligero) valentemente; à deusa Vitória para que vençam; ao deus Honor para que recebam honras; à deusa Pecúnia para que sejam ricos (pecuniosi), ao deus Esculano (Aesculanus) e a seu filho Argentino para que tenham moedas de bronze (aes) e de prata (argentum)? É que puseram Esculano por pai de Argentino por a moeda de bronze se ter começado a usar antes da de prata. Admiro-me, porém, por Argentino não ter gerado Aunno, já que a moeda de ouro (aurea) se lhe seguiu. Se tivessem este deus, tê-lo-iam preferido ao seu pai Argentino e ao avô Esculano, como preferiram Júpiter a Saturno.

Que necessidade havia então de adorar e invocar tamanha multidão de deuses para se obterem os bens da alma e do corpo e os bens exteriores, (e nem sequer a todos recordei, nem mesmo eles foram capazes de atribuir a todos os bens humanos classificados restrita e separadamente, deuses restritos e separados), quando por si só a deusa Felicidade era capaz de conceder todos esses bens com grande e fácil vantagem, sem que se tivesse de procurar um outro deus não somente para os conseguir mas também para afastar os males? Porque é que, na verdade, se teria de invocar a deusa Fessónia para aliviar os cansados (fessi), a deusa Pelónia para repelir (pellere) os inimigos, o médico Apolo ou Esculápio para curar os enfermos, ou ambos em conjunto quando grave fosse o perigo? Não se teria invocado o deus Espiniense para arrancar dos campos os espinhos (spina), nem a deusa Robiga para nos preservar da alforra (robiga). Bastaria a presença e a protecção da Felicidade para prevenir ou afastar facilmente estes males. Finalmente, já que tratamos destas duas deusas, Virtude e Felicidade — se a felicidade é a recompensa da virtude, não é uma deusa, mas um dom de Deus; mas se é uma deusa, porque é que se não diz que ela confere a própria virtude, quando na verdade a aquisição da virtude é também uma grande felicidade?


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Habacuc, II, 4.

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