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21/01/2017

Leitura espiritual


Leitura espiritual


A Cidade de Deus 



Vol. 1

LIVRO IV

CAPÍTULO X

Opiniões seguidas por aqueles que propuseram deuses diferen­tes para as diferentes partes do Mundo.

E porque é que lhe unem Juno como esposa, que se diz sua «irmã e cônjuge»? Porque, dizem, segundo a tradi­ção, Júpiter está no éter, Juno no ar e estes dois elementos, um superior e outro inferior, estão unidos. Já não é, portanto, aquele de quem foi dito:
tudo está cheio de Júpiter  [i].
pois também Juno enche uma parte. Será que os dois cônjuges enchem os dois elementos residindo ao mesmo tempo um e outro nos dois? Então, porque é que se atribui o éter a Júpiter e o ar a Juno? No fim de contas, estas duas divindades bastariam: para quê atribuir o mar a Neptuno e a terra a Plutão? E para que estes não fiquem também sem esposas, juntam Salácia a Neptuno e Prosérpina a Plutão. É que, dizem, assim como Juno reside no ar, isto é, na parte inferior do céu, assim também Salácia ocupa a parte inferior do mar e Prosérpina a parte inferior da terra. Procuram, mas não encontram, a maneira de remendar estas fábulas. Se assim fosse, os antigos teriam falado de três e não de quatro elementos do mundo para atribuírem a cada elemento uma parelha de deuses. Todavia, o que afirmam é bem diferente: o éter é uma coisa e o ar é outra. Quanto à água, superior ou inferior, não deixa de ser água. Imagina tu que é diferente: deixará ela por isso de ser água? E a terra «inferior» que outra coisa poderá ser senão terra, por muito diferente que seja? E eis que com estes quatro ou três elementos já o conjunto do mundo corpóreo está completo. Onde ficará Minerva? Que ocupará ela? Que é que preencherá? Encontrou um lugar no Capitólio ao mesmo tempo que eles, embora não seja filha de ambos. Se, como dizem, Minerva ocupa a parte superior do éter — e por essa razão os poetas fingem que ela nasceu da cabeça de Júpiter — porque não a consideram então como rainha dos deuses, mesmo acima de Júpiter? Porque seria indecoroso colocar a filha acima do pai? Porque é que não se observou a mesma justiça a propósito do próprio Júpiter para com Saturno? Porque este foi vencido? Então, combateram? Longe disso, dizem; palavrório de fábulas é que isso é! Vá — não acreditemos em fábulas e façamos dos deuses melhor juízo. Porque é que então não foi dado ao pai de Júpiter uma morada, se não mais sublime pelo menos de igual categoria? Por­que, dizem, Saturno é a duração do tempo. Portanto prestar culto a Saturno é prestar culto ao tempo e supor que Júpiter, rei dos deuses, nasceu do tempo. Que há de indigno em dizer-se que Júpiter e Juno nasceram do tempo — se aquele é o céu e esta a terra — sendo certo que o céu e a terra foram criados? De facto, também os seus doutores e sábios consignaram isto nos seus livros. Não foi segundo as ficções dos poetas mas segundo os livros dos filósofos que Vergílio escreveu:
Então, o Pai Omnipotente, o Éter, desceu em forma de chuva fecunda, ao seio da sua ditosa esposa [ii],
isto é, no seio de Telure, a Terra. Porque ainda aqui querem que haja diferenças. Julgam que na própria terra uma coisa é a Terra, outra Telure outra Telumão e que cada um destes deuses tem os seus próprios nomes, distingue-se pelas suas funções e é venerado em altares e com ritos próprios.

A esta mesma Terra chamam também a mãe dos deuses, e assim já as ficções dos poetas se tomam mais toleráveis, pois não é nos seus poemas mas nos livros sagrados que é chamada não só a «irmã e esposa» mas também a mãe de Júpiter. Querem ainda que a mesma Terra seja Ceres e também Vesta. Mas é frequente apresentarem Vesta como o fogo dos lares, sem o qual a cidade não poderia existir. E por isso eram virgens que costumavam consagrar ao seu serviço, porque, assim como nada nasce do fogo, também nada nasce de uma virgem. Todas estas frivolidades deviam com certeza vir a ser abolidas e extintas por quem nasceu duma virgem. Efectivamente, quem suportará que os que tributam tão grande honra (e até como que castidade) ao fogo, não se envergonhem de chamar Vénus a Vesta, desvanecendo assim a louvável virgindade das suas servidoras? É que, se Vesta é Vénus, como é que virgens podem correctamente servi-la, abstendo-se das obras de Vénus? Haverá duas Vénus — uma virgem e outra senhora (mulier)? Ou antes três — uma das virgens, que é tam­bém Vesta, outra das casadas e outra das meretrizes? Era a esta que os Fenícios davam de presente a prostituição das filhas antes de as vincularem aos maridos. Qual delas é a mulher de Vulcano? Com certeza que não é a virgem, pois tem um marido. Que seja a meretriz — nem pensar nisso: não vá parecer que se pretende fazer injúrias ao filho de Juno, ao colaborador de Minerva. Portanto, tem que se concluir que se trata da que respeita às casadas. Mas não queremos que a imitem no que ela fez com Marte. Lá voltas de novo às fábulas, dirão! Que justiça é essa que se inflama contra nós por isto afirmarmos dos seus deuses e não inflama contra si próprios os que no teatro assistem gostosamente a estes crimes dos seus deuses? E (o que não seria de acreditar se não se provasse sem contestação) estas representações teatrais dos crimes dos deuses foram instituídas em louvor desses mesmos deuses.

CAPÍTULO XL

Os doutores dos pagãos defendem a opinião de que os diversos deuses mais não são que um e o mesmo Júpiter.

Afirmem pois o que lhes apetecer baseados em argumentos de ordem física e em conclusões das suas controvérsias:
— umas vezes, que Júpiter é a alma deste mundo corpóreo, alma que enche e move toda esta mole formada e constituída por quatro, ou por quantos elementos lhes aprouver;
— outras vezes, que ele cede à irmã e aos irmãos a sua parte;
        — outras, que ele é o éter que envolve o ar desde Juno, lá em cima, até ao difundido cá por baixo;
— umas vezes, que ele próprio é o céu todo com o ar e que fecunda com as suas chuvas e sementes a Terra, simultaneamente sua esposa e mãe (pois que nada de torpe há entre os deuses);
— outras vezes, finalmente (para não desfiar todas as possibilidades), que ele é o deus único ao qual muitos atribuem o que foi dito pelo mais ilustre dos poetas:
o deus de facto percorre todas as terras, todas as extensões dos mares, todas as profundezas do Céu [iii];
— ele é Júpiter no éter e Juno nos ares;
— é Nephino nos mares e Salácia nas regiões inferiores do mar;
        — é na terra Plutão, e Prosérpina nas regiões inferiores da terra;
        — é Vesta nos lares domésticos e Vulcano na fornalha dos ferreiros;
— nos astros é o Sol, a Lua e as estrelas, e nos adivinhos é Apolo;
        — no comércio é Mercúrio, Jano no começo das coisas, Saturno no tempo, Marte e Belona nas guerras, Líder nas vinhas, Ceres nas searas, Diana nas florestas, Minerva nas artes;
— está, finalmente, na multidão dos deuses, a bem dizer ple­beus;
— é quem preside, com o nome de Libero, à emissão seminal dos homens e, com o nome de Libera, à das mulheres;
— é Diespáter, que leva a seu termo o parto;
— é a deusa Mena, que preside às regras das mulheres;
— é Lucina, invocada pelas parturientes;
— é quem, com o nome de Ópis, presta socorro aos recém-nascidos, recebendo-os do seio da terra;
— é quem, com o nome do deus Vaticano, lhes abre a boca para os vagidos;
— com o nome da deusa Levana, os ergue da terra;
— com o nome da deusa Cunina, vigia os berços;
— é ele e não outro quem, com o nome das deusas Carmentes, narra os destinos dos recém-nascidos;
— quem, com o nome de Fortuna, preside aos acontecimentos fortuitos;
— com o da deusa Rumina, munge a mama para o pequenino
— por isso é que os antigos chamaram ruma à mama;
— com o da deusa Potina, lhes administra a bebida;
— com o da deusa Edura, lhes fornece a comida;
— quem do pavor das crianças tira o nome de Pavência, o de Venília da esperança que vem, o de Volú­pia da voluptuosidade, o de Agenória do esforço.
— Dos estímulos com que o homem é impelido para o excesso de actividade, vem-lhe o nome de Stímula, e de Strénia da energia (strenuus) para a acção;
— a que ensina a contar (numerare) é Numeria e a que ensina a cantar (canere) é Canena;
— é ainda o deus Consus porque aconselha, a deusa Sência por­que inspira os pensamentos (sententia), a deusa Juventas que, chegada a idade de envergar a toga pretexta, apadrinha a entrada na idade juvenil;
— é a Fortuna barbuda que reveste de barba os adolescentes (a estes os quiseram honrar, considerando esta curiosa divindade pelo menos como um deus masculino, quer chamando-lhe Barbado, por causa da barba, como se chamou Nodato, por causa dos nós (nodus), quer chamando-lhe Fortúnio em vez de Fortuna ainda por causa das barbas);
— como deus Jugatino ele une os esposos;
— com o nome da deusa Virginiense é invocado quando se desaperta a cinta da noiva;
— ele é mesmo Mutuno ou Tutuno, ou seja, entre os gregos, Priapo.

Se ele não se envergonha de ser tudo o que disse e até o que não disse (pois não tenciono dizer tudo), isto é, que Júpiter sozinho seja todos os deuses e todas as deusas, quer sejam estas, como pretendem uns, partes dele ou potências dele, como parece a outros, a quem apraz ver nele a alma do mundo, o que constitui a opinião de muitos dos seus grandes doutores.

Se assim é (e qual seja não o indago por ora) — que perderiam, se adorassem, numa síntese mais sensata, um Deus apenas? Que poderiam «dele desprezar, adorando-o a ele próprio»? Se deviam evitar que se irassem algumas das partes que eram esquecidas ou postas de lado — então não é ele (Júpiter), como pretendem, a vida total do único animador que em si contém todos os deuses como po­tências suas, como membros seus, como partes suas; mas cada uma das suas partes tem vida própria, separada das outras, uma vez que uma pode irar-se com a exclusão de outra e que uma se amansa quando a outra se indigna. Se se disser que o próprio Júpiter todo inteiro se ofende, isto é, todas as suas partes ao mesmo tempo, no caso de não serem veneradas todas elas, uma a uma — diz-se uma tolice. Na verdade, uma parte não seria posta de parte quando fosse venerado o próprio Uno que a todas contém. Mas omito outras questões, que muitas são. Quando afirmam que todos os astros são partes de Júpiter, que todos vivem e têm alma racional, que, portanto, são indiscutivelmente deuses — não reparam quantos não veneram, a quantos não constroem templos nem levantam altares, pois entenderam que não os deviam levantar senão a muito poucos astros, aos quais deviam ser oferecidos sacrifícios em especial. Se, pois, se enfurecem os que não são venerados em especial, não haverá que recear, dado o pequeno número dos satisfeitos, viver na cólera de todo o céu?

Mas, se se veneram todos os astros honrando Júpiter que a todos contém, poderiam então elevar-lhes súplicas a todos os compreendidos em Júpiter (desta forma, nenhum teria que se encolerizar, já que, neste único, nenhum estaria posto de parte). Seria melhor do que reservar o culto para uns tantos, dando lugar a que injustificadamente se indignem os que — decerto muitos mais — tivessem sido preteridos, sobretudo quando do alto do céu onde brilham, vêem preferir-se-lhes um Priapo exibindo-se na sua obscena nudez.

CAPÍTULO XII

Opinião dos que consideram Deus como a alma do Mundo e o Mundo o corpo de Deus.

Quê? Isto não deve deixar de emocionar os homens argutos ou sejam eles o que forem, porque, se pusermos de parte a discussão apaixonada, não é preciso ser um grande génio para compreender que

se Deus é a alma do Mundo e o Mundo o corpo desta alma, então Deus é um ser vivo único, composto de um corpo e de uma alma;

e se Deus, no próprio seio da natureza, contém em si todas as coisas de maneira que da sua alma, como princípio vivificante de toda esta mole, derivam a vida e a alma de todos os seres vivos conforme a sorte que coube a cada um quando nasceu — então nada há que não seja parte de Deus.

Se assim é — quem não vê quanta impiedade e irreligiosidade daí de­corre: pois o que qualquer calcar, a Deus calcará, e ao m atar qualquer ser vivo, matará parte de Deus?

Não quero referir tudo o que pode ocorrer aos que nisto pensam, mas não pode ser referido sem vergonha.

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Vergílio, Bucólicas, III, 60
[ii] Vergílio, Geórgicas, II, 325.
[iii] Vergílio, Georg., IV, 221.

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