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14/01/2017

Leitura espiritual


Leitura espiritual


A Cidade de Deus 


Vol. 1

LIVRO III

CAPÍTULO XVI

Primeiros cônsules romanos: cada um deles expulsa o outro da pátria e, logo depois, ele próprio morre, após o mais atroz dos parricídios cometidos em Roma, ferido por um inimigo ferido.

A este juntemos aquele período durante o qual, como diz Salústio, vi­gorou um «direito justo e bem aplicado» enquanto se sustentava uma pesada guerra com a Etrúria e se fazia sentir o medo de Tarquínio. De facto, enquanto os Etruscos auxiliaram Tarquínio a reconquistar o trono, Roma foi abalada por duras guerras. Por isso nos refere que a república foi administrada com um «direito justo e bem aplicado» sob a pressão do medo e não sob a inspiração da justiça... Nesse tão curto período, que funesto foi o ano em que foram criados os primeiros cônsules, depois de o poder régio ter sido suprimido! Na verdade, não completaram o seu ano (de consulado). Efectivamente Júnio Bruto exonerou o seu colega Lúcio Tarquínio Colatino e expulsou-o da Urbe. Pouco depois, tombou ele, na guerra, das feridas recebidas de um inimigo que ele mesmo tinha ferido. Antes, tinha ele matado os seus filhos e os irmãos de sua mulher, ao saber que estes conspiravam para repor Tarquínio. Este facto, lembra-o Vergílio, com louvor primeiramente, mas, logo a seguir, a sua humanidade revolta-se. Na verdade, depois de ter dito:

A estes filhos que fomentam novas guerras, seu pai envia-los-á para a morte em nome duma esplendorosa liberdade [i]  exclama logo a seguir:

Desgraçado! seja qual for o juízo que os vindouros fizerem destes factos [ii],
quer dizer, quaisquer que sejam, acerca destes factos, os juízos de admiração e de louvor dos pósteros, desgraçado é o pai que mata os filhos. E, como que para consolar este desgraçado pai, acrescenta:
Quem triunfa é o amor da pátria e uma imensa ambi­ção de glória [iii].


Não parece que neste Bruto, — que matou os filhos e não pôde sobre­viver ao seu inimigo, o filho de Tarquínio, que ele matou e de quem foi vítima, — não parece que nele foi vingada a inocência do seu colega Colatino, esse bom cidadão que, após a expulsão de Tarquínio, sofreu a mesma sorte do próprio tirano? O próprio Bruto era também, segundo consta, do sangue de Tarquínio. Pelos vistos, o que perdeu Colatino foi a semelhança de nome, pois também se chamava Tarquínio. Pois que o obrigassem a mudar de nome e não de pátria! Bastava que de seu nome desaparecesse a palavra Tarquínio, chamando-se-lhe apenas colatino. Não perdeu o nome, o que sem detrimento poderia ter perdido, para ser obrigado, como primeiro cônsul, a perder o cargo, e como bom cidadão, a perder a pátria. A detestável iniquidade de Júnio Bruto — aliás totalmente inútil à República — será ela motivo de glória? Será que para a cometer também quem triunfa é o amor da pátria e uma imensa ambição de glória? De qualquer maneira L. Tarquínio Colatino, marido de Lucré- cia, foi nomeado cônsul com Bruto, já depois de ter sido expulso o tirano Tarquínio. Quão justamente atendeu o povo, no cidadão, não ao nome, mas aos costumes! Quão impiamente privou Bruto de pátria e de cargos um colega da nova e primeira dignidade, quando podia privá-lo apenas do nome, se é que este o incomodava!

Todos estes males se cometeram, todas estas calamidades aconteceram quando na República vigorava um «direito justo e bem administrado». Também Lucrécio, que fora nomeado para o lugar de Bruto, foi consumido por doença antes de esse ano ter terminado. Assim, foram P. Valério, que sucedeu a Colatino, e M. Horácio, que substituiu o falecido Lucrécio, que acabaram esse ano fúnebre e infernal que teve cinco cônsules e em que a República Romana inau­gurou a nova dignidade e o novo poder do consulado.

CAPÍTULO XVII

Males com que foi afectada a República Romana após os começos do governo consular, sem que a ajudassem os deuses que ela venerava.

Tendo então desaparecido pouco a pouco o medo, não porque as guerras tivessem cessado, mas porque se tomaram menos opressoras, acabou-se o período em que vigorou «um direito justo e bem administrado» e seguiu-se o que resumidamente descreve Salústio:

Começaram então os patrícios a sujeitar a plebe à servidão, a dispor das suas vidas e dos seus corpos como costumavam fazer os reis, a expulsar os cidadãos dos seus campos e a privá-los de todos os seus direitos, a chamar a si toda a autoridade. Oprimida por tantos vexames e principalmente esmagada por dividas, a plebe que, no decurso de contínuas guerras, era quem suportava tanto os impostos como o serviço militar, retirou-se em armas para o Monte Sagrado e para o Aventino. Conseguiu assim que a seu favor fossem criados tribunos da plebe e outros direitos. Foi a Segunda Guerra Púnica que pôs termo às discórdias e afrontamentos de ambas as partes [iv]

Para que perder tanto tempo a escrever e fazê-lo perder aos leitores? Quão mísera fora essa República no decurso de tão longo período de tantos anos até à Segunda Guerra Púnica: no exterior, guerras incessantes e no interior discórdias, sedições civis a perturbá-la, é o que em poucas palavras nos é exposto por Salústio. Portanto, aquelas vitórias não constituíram a sólida alegria de felizes, mas a vã consolação dos míseros e um acicate estimulante de espíritos inquietos, para suportarem sofrimentos cada vez mais estéreis.

Não se assanhem contra nós os bons romanos por isto dizermos. E absolutamente certo, aliás, que não se indignarão e, acerca disto, nada tenho a pedir nem a admoestar. Porque não dizemos nada mais duro nem o dizemos com mais dureza do que os seus escritores a par dos quais não estamos nem no estilo nem nos vagares. De resto trabalha­ram para saber isto e obrigam os seus filhos a aprendê-lo. Mas os que se assanham, como é que me suportarão se eu lhes disser o que Salústio já disse?

Muitas perturbações, sedições e, por fim, Guerras Civis surgiram. Entretanto um reduzido número de potentados, cuja influência tinha ganhado a maioria, aspirava ao domínio sob o pretexto, aliás louvável, de servirem os patrícios e a plebe. Os maus cidadãos eram tidos por bons, não pelo bem ou mal que faziam ao Estado— pois todos estavam igualmente corrompidos —, mas pelas suas riquezas ou pelo poder de mal-fazer: cada um era considerado bom quando defendia a sua presente situação [v].

Se, portanto, estes historiadores pensaram que o que caracteriza uma honesta liberdade é não esconder as mazelas da sua própria pátria, (que de resto noutras ocasiões não deixaram de exaltar com altos encómios), quando não tinham outra melhor razão para imortalizar os seus cidadãos — que nos convém a nós fazer (a nós de quem quanto maior e mais certa é a esperança em Deus, tanto maior deve ser a liberdade), quando eles imputam ao nosso Cristo os males presentes para alienarem os espíritos mais débeis e menos esclarecidos desta cidade, única na qual devemos viver para sempre em felicidade? Nós não dizemos contra os seus deuses coisas mais horríveis do que os seus autores cuja obra eles lêem e elogiam. Deles é que colhemos os factos que relatamos — apenas não somos capazes de os relatar nem tão bem nem tão completamente.

— Onde estavam então esses deuses, aos quais se julga que se deve prestar culto tendo em atenção a curta e falaz felicidade deste mundo, quando os Romanos, — a quem eles mendigavam o culto com tanta astúcia e mentira —, sofriam tamanhas calamidades?
— Onde estavam eles quando o cônsul Valério morreu a defender o Capitólio incendiado pelos exilados e os escravos? Como é que a ele lhe foi mais fácil socorrer a mansão de Júpiter do que receber a ajuda daquela turbamulta de deuses com o seu tão grande e tão bom rei à frente, cujo templo aquele tinha salvado?
— Onde estavam eles quando a cidade, esgotada por tantas e incessantes sedições, num momento de calma esperava os legados que enviara a Atenas para esta lhe fornecer leis, foi devastada por grave fome e pela peste?
— Onde estavam eles quando o povo de novo atacado pela fome criou pela primeira vez o prefeito dos abastecimentos e, tendo-se a fome agravado, Espúrio Mélio, que distribuiu trigo à multidão esfome­ada, incorreu na acusação de aspirar à realeza e a instâncias deste prefeito, às ordens do ditador L. Quíncio enfraquecido pela idade, foi assassinado por Quinto Servílio, mestre de cavalaria, no meio do mais violento e perigoso tumulto da cidade?
— Onde estavam eles quando surgiu a maior das pestes, e o povo, tão duradoura e gravemente fatigado, achou por bem oferecer a esses inúteis deuses lectistemias, o que nunca antes fizera? Armaram leitos em sua honra: daí esse nome sagrado, ou melhor, sacrílego.
— Onde estavam eles quando o exército romano, depois de dez anos de ininterruptos e desgraçados combates junto aos muros de Veios, só foi salvo graças a Fúrio Camilo, a quem, depois, a ingrata cidade condenou?
— Onde estavam eles quando os Gauleses tomaram Roma, a saquearam, incendiaram e encheram de cadáveres?
— Onde estavam eles quando uma famosa peste fez tão ingentes estragos e nela morreu o próprio Fúrio Camilo, que, depois de ter defendido dos Veientes a sua ingrata República, a livrou em seguida dos Gauleses? Foi durante esta peste que se introduziram os jogos cénicos — uma nova peste, perigosa, não para os corpos dos Romanos, mas, o que é muito mais pernicioso, para os seus costumes.
— Onde estavam eles quando uma outra violenta peste ocorreu, crê-se que devida a peçonhas de numerosas e nobres matronas cujos costumes, além da fidelidade, se revelaram mais virulentos que toda a peste?
— Onde estavam quando, nas Caudinas, os dois cônsules com o exército, cercados pelos Samnitas, foram obrigados a assinarem um pacto vergonhoso, a entregarem como reféns seiscentos cavaleiros romanos, e os outros, depostas as armas, despojados do seu equipamento e do seu uniforme, a passarem seminus por debaixo do jugo dos inimigos?
— Onde estavam quando uma grave peste atingiu muita gente e no exército muitos caíram fulminados por um raio? Ou quando no de­curso de outra intolerável peste, se viu Roma obrigada a chamar Esculápio de Epidauro como deus médico e a utilizar-se dos seus serviços, porque decerto Júpiter, rei de todos os deuses, entronizado desde há muito no Capitólio, não tinha tido tempo, por causa das suas muitas aventuras imorais de juventude, para aprender medicina?
— Onde estavam quando os inimigos de Roma — Lucanos, Brúcios, Samnitas, Etruscos, Gauleses, Senones — se congregavam e primeiro massacraram os seus embaixadores e, depois, esmagaram o seu exército num combate em que morreram, além do pretor, sete tribunos e treze mil soldados?
— Onde estavam quando em Roma, após demoradas e graves sedições, a plebe, abrindo as hostilidades, acabou por se retirar para o Janículo, tendo sido tão funesta esta calamidade que se resolveu (o que só em perigo extremo se fazia) nomear Hortênsio ditador? Este convocou a plebe e morreu no decurso da sua magistratura — o que a nenhum ditador acontecera antes e constituiu uma falta grave contra os deuses, presente como estava já Esculápio.

De resto as guerras multiplicavam-se então por toda a parte a tal ponto que, por falta de soldados, se recrutavam os proletários (assim chamados porque tinham por missão única gerar prole para o Estado, uma vez que, devido à sua pobreza, não podiam fazer parte do exército). Chamado pelos Farentinos, Pirro, rei da Grécia, então no esplendor da glória, tornou-se inimigo dos Romanos. Consultou ele Apoio acerca do resultado futuro dos acontecimentos, e este, com muita urbanidade, respondeu-lhe com um oráculo tão ambíguo que, acontecesse o que acontecesse, num ou noutro sentido, passaria sempre por um bom adivinho. De facto, disse:

Dico te, Pyrrhe, vincere posse Romanos [vi].

E, assim, quer os Romanos vencessem Pirro quer Pirro vencesse os Romanos — o adivinho podia estar seguro, qualquer que fosse o resultado. Que horrenda carnificina houve então nos dois exércitos! Todavia Pirro saiu vencedor. Desta forma poderia desde então procla­mar que Apolo vaticinara a seu favor se pouco depois, num outro combate, os Romanos não saíssem vencedores.

Durante estas tão sangrentas guerras, eclodiu entre as mulheres uma grave doença. Morriam grávidas antes do parto. Em tal situação Esculápio escusava-se alegando, julgo eu, que era médico chefe e não parteira (obstetrix). Também os animais morriam da mesma maneira, a ponto de se pensar que a sua espécie se extinguiria. E que mais? Aquele inesquecível inverno, de incrível rigor, pois a neve atingiu alturas perigosas durante quarenta dias, mesmo no Forum, e fez do Tibre um bloco de gelo! Se isso acontecesse nos nossos tempos — o que não diriam! E que mais? Aquele ingente flagelo, enquanto durou, quantos não ceifou! Como se alongou por mais um ano com violência sempre crescente, apesar da presença de Esculápio, houve que recorrer aos Livros Sibilinos. Neste género de oráculos, como no-lo recorda Cícero nos seus livros sobre De Divinatione [vii], costuma-se a gente fiar nos intérpretes que fazem conjecturas duvidosas como podem ou como querem. Proclamou-se então que a causa da peste era que muita gente detinha e ocupava numerosos edifícios sagrados para seu uso privado. Desta forma se livrou, entretanto, Esculápio da grave acusação de imperícia ou de negligência. Mas porque é que esses edifícios foram ocupados, sem oposição de ninguém, por tantos, a não ser porque à turbamulta dos deuses aí se fizeram preces em vão durante muito tempo e por isso pouco a pouco tais lugares foram abandonados pelos seus adoradores e, desabitados como ficaram, puderam, sem ofensa de ninguém, ser reivindicados para, pelo menos, servirem aos homens? Sob o pretexto de se apaziguar a peste, foram então esses edifícios recuperados e reparados com cuidado. Posteriormente, porém, novamente abandonados e usurpados como dantes, caíram no esquecimento. Por isso, deve-se à grande erudição de Varrão, ao escrever sobre os edifícios sagrados, ter rememorado tantos santuários ignorados. Mas então o que habilmente se pretendeu foi desculpar os deuses e não debelar a peste!

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Vergílio, Eneida, VI, 820-821.
[ii] Ib. VI, 823.
[iii] Ib. VI, 823.
[iv] Salustio, Hist. I, fragm. 11.
[v] Salústio, Hist. I, fragm. 12.
[vi] A frase pode ter dois sentidos: «Digo-te, Pirro, tu poderás vencer os Romanos» e «Digo-te, Pirro, os Romanos poderão vencer-te». A ambiguidade resulta de, nas orações infinitivas, tanto o sujeito como o complemente directo estarem no acusativo.
[vii] Sobre adivinhação, v. II, 54.

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