Páginas

01/01/2017

Leitura espiritual

Leitura espiritual



A Cidade de Deus 
Vol. 1

LIVRO II

No qual se discutem os males que, antes de Cristo, quando vigorava o culto dos falsos deuses, os Romanos sofreram; — e se demonstra:
— primeiro — que se acumularam, com a colaboração dos falsos deu­ses, os maus costumes e os vícios da alma, únicos, ou pelo menos, os mais graves males dignos de consideração;
— segundo — que os Romanos não foram destes males libertados por esses falsos deuses.

CAPÍTULO I

Método a ser aplicado por necessidade de discussão.

Se a inteligência humana não ousasse, com o seu doentio comporta­mento, opor o seu orgulho à evidência da verdade mas fosse capaz de submeter a sua debilidade à sã doutrina, como que a uma medicina, até se recuperar com a ajuda de Deus alcançada por uma fé piedosa, — não haveria necessidade de longos discursos para tirar do erro qualquer vã opinião: bastaria que quem está na verdade a expusesse com palavras suficientemente claras.

Mas agora estamos perante a maior e a mais sombria doença dos espíritos insensatos. Empenham-se em defender suas irracionais motivações como se fossem a própria razão e a própria verdade e isto mesmo depois de discutirem todos os argumentos que um homem pode fornecer a outro homem, não se sabe se por demasiada cegueira que nem as coisas mais claras distingue, ou se pela mais obstinada contumácia que os impede de ver o que se lhes antolha. O certo é que, na maioria dos casos, se torna imprescindível alargar a exposição dos assuntos, por si já claros, não como se tivessem de ser expostos a quem tem olhos para ver, mas antes para que os possam tocar com as mãos os que andam às apalpadelas, meio cegos.

Porém, se julgamos que devemos ripostar sempre àqueles que nos respondem, quando é que acabaríamos de discutir? Até quando estaríamos a falar? Os que ou não podem compreender o que se diz ou estão, na discussão, tão endurecidos na contradição que, mesmo que cheguem a compreender, não prestam atenção, e continuam a responder, conforme está escrito «proferem iniquidades e não se  cansam de falar em vão!» [1]; se nos propuséssemos refutar as suas contradições tantas vezes quantas eles, com cabeças obstinadas, se propõem não pensar no que dizem, atentos apenas em contradizerem de qualquer modo os nossos argumentos,— dar-te-ás conta de quão interminável, penoso e infrutífero isto seria.

Por isso nem a ti, filho meu Marcelino, nem aos outros, a favor dos quais este meu trabalho, espontaneamente, por amor a Cristo, vai dirigido, vos quereria como juízes dos meus escritos, se viésseis a ser daqueles que procuram sempre uma resposta quando ouvem alguma objec­ção ao que estão lendo. Não aconteça que se tornem semelhantes àquelas mulherzinhas de que fala o Apóstolo:
Sempre a aprenderem mas incapazes de conhecerem a verdade [2].

CAPÍTULO II

Do que foi exposto no livro primeiro.

No livro anterior tinha-me proposto tratar, com a ajuda de Deus, da sua Cidade e pus mãos a toda a obra. O que primeiro me ocorreu foi que devia responder aos que atribuem à religião cristã todas estas guerras que estão esfacelando o mundo e principalmente a recente devastação da Urbe Romana pelos bárbaros, isto porque foi proibido por essa religião servir aos demónios com nefandos sacrifícios. Pois deviam antes prestar honras a Cristo, já que foi por causa do seu nome e contra os estabelecidos costumes de guerra que os bárbaros lhes ofereceram para sua liberdade os mais espaçosos lugares para lá pro­curarem asilo. E para muitos o facto de se declararem servidores de Cristo, sincera ou hipocritamente, impelidos pelo medo, foi de tal modo respeitado que até julgaram proibido o que por direito de guerra lhes era permitido. Daí a questão: porque é que os favores divinos se estendem também aos ímpios e ingratos — e porque é que tiveram que sofrer os mesmos horrores causados pelo inimigo tanto os piedosos como os ímpios? Procurarei aclarar esta questão implícita em muitas outras (já sabemos que tanto os dons de Deus como as desgraças humanas estão sucedendo todos os dias quer aos que se comportam bem quer aos que se comportam mal, misturados como estão uns com os outros sem distinção — o que a muitos perturba).

Para fazê-lo segundo o plano da obra empreendida, por vezes me detive principalmente para consolar as santas e piedosamente castas mulheres nas quais pelo inimigo foi praticado algo que lhes acarretou a dor da vergonha embora não lhes arrebatasse a firmeza da castidade. Não vão arrepender-se de viver, elas que não têm de que se arrepender.

De seguida, falei um pouco contra aqueles que atormentam os cristãos afectados pelos ditos factos adversos e que principalmente atormentam com a mais impudente petulância o pudor das mulheres, humilhadas sim, mas castas e santas, quando na realidade são eles os mais perversos e irreverentes, totalmente degenerados daqueles romanos cujos feitos, tantos e tão gloriosos, são exaltados e cantados nas narrativas literárias, continuando eles os mais violentos inimigos de tal glória. A Roma que fora fundada e engrandecida pelos trabalhos dos antepassados, tomaram-na eles mais disforme quando estava de pé do que quando caiu em ruínas: na verdade, quando caiu em ruínas, foram as suas pedras e suas vigas que ruíram, ao passo que na vida destes já não ruíram a fortaleza e os ornatos dos seus muros, mas a fortaleza e os ornatos dos seus costumes. Um fogo de paixões, mais funesto do que o que consumiu os tectos daquela Urbe, devorou os seus corações.

Foi nestes termos que acabei o primeiro livro. Em seguida, propus-me falar dos males por que passou, desde a sua origem, aquela cidade, tanto ela própria como as províncias sob o seu domínio, males esses que, todos eles, atribuiriam à religião cristã se já então a doutrina evangé­lica se pudesse fazer ouvir em acusação sem peias contra os seus falsos e falazes deuses.

CAPÍTULO III

Necessidade de recorrer à história para demonstrar que males aconteceram aos Romanos quando, antes da propagação da re­ligião cristã, prestavam culto aos deuses.

Lembra-te porém de que, quando recordo estas coisas, o faço contra os indoutos cuja ignorância deu origem a este divulgado provérbio: «não chove — a culpa é dos cristãos». Sem dúvida que os que foram educados nas disciplinas liberais e gostam de história conhecem estes factos. Todavia, para tom arem extremamente hostis para connosco as turbas ignaras, fingem ignorá-lo e procuram convencer o vulgo de que quem tem a culpa das calamidades que o género humano tem de pa­decer em certos lugares e tempos é o nome de Cristo que por toda a parte se está a difundir com irresistível fama e gloriosíssima popularidade, contra os deuses. Connosco voltem a recordar-se das calamidades que tantas e tão variadas vezes assolaram Roma, antes de Cristo aparecer em carne, antes de ser conhecido entre os povos o seu nome cuja glória em vão invejam; e, se puderem, defendam dessas calamidades os seus deuses, se é que lhes prestam culto os seus devotos para não sofrerem desses males. Pretendem imputar-nos essas calamidades se agora as têm que suportar. Porque é que os seus deuses permitiram que as calamidades de que vou falar acontecessem aos seus devotos antes que o nome de Cristo, já público, os enfrentasse e proibisse os seus sacrifícios?

CAPÍTULO IV

Os devotos dos deuses nenhum preceito de vida honrada rece­beram deles e até nos seus actos de culto praticavam torpezas.

 Em primeiro lugar — porque é que os deuses deles não quiseram interessar-se pelos seus próprios costumes para que se não tomassem tão maus? Porque, realmente, o Deus verdadeiro com toda a razão pôs de lado os que o não veneravam. Mas porque é que esses deuses não ajudaram com algumas leis, para bem viverem, os seus adoradores, homens tão ingratos que se queixam por se ter proibido o seu culto? Com certeza que convinha que, assim como estes se interessavam pelo seu culto, assim aqueles se interessassem pelos seus actos.

Mas responderão que ninguém é mau senão por vontade própria. Quem é que o vai negar? Todavia, pertencia aos deuses conselheiros não ocultarem aos povos seus adoradores os preceitos de uma boa vida, mas antes mostrá-los em clara explanação. Pertencia-lhes até pelos seus vates citar e repreender os que pecam; ameaçar publicamente com castigos os que procediam mal; oferecer prémios aos que vivem rectamente. Quem alguma vez o proclamou em alta voz e bom som nos templos dos seus deuses?

Também nós, quando éramos adolescentes, vínhamos outrora a esses espectáculos ridículos e sacrílegos; víamos os arrebatamentos, ouvíamos os flautistas; deleitávamo-nos com as obscenas representações que se exibiam em honra dos deuses e das deusas* da Virgem Celeste e de Berecíntia, mãe de todos. No dia solene da sua purificação, junto da sua liteira, eram cantaroladas perante o público, pelos mais vis comediantes, coisas tais que de os ouvir se envergonharia, já não digo a mãe dos deuses, mas a mãe de qualquer dos senadores ou homens de bem, e até a mãe desses palhaços. É que a vergonha humana que qualquer deve aos seus pais, nem a própria depravação pode apagar. Todavia tal espectáculo, torpe de palavras e de actos obscenos, que os actores teriam vergonha de ensaiar em sua casa diante de suas mães, representavam-no eles em público diante da mãe dos deuses e na presença de enorme multidão de ambos os sexos que o estava a ver e a ouvir. Se era levada pela curiosidade que a multidão assistia ao espectáculo, pelo menos, envergonhada e ofendida no seu pudor, devia afastar-se dele.

Se aquilo é sagrado — que será um sacrilégio? Se aquilo é purificação — que será a inquinação? E a isto chamavam Fercula [3] (pratos — igua­rias) como se se celebrasse um banquete em que os demónios imundos se fartassem com iguarias suas. Quem não se aperceberá de que ca­tegoria eram os espíritos que se deleitavam com tais obscenidades? Só quem ignore por completo a existência de espíritos imundos que com o nome de Deus nos enganam, ou quem leve uma vida tal que prefira ao verdadeiro Deus tê-los a eles por propícios, ou os receie quando irados.

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[1] loquuntur iniquitatem at que injatigabiliter vani sunt. Salmo XCIII, 4.
[2] Semper discentes, et nunquam ad veritatis scientiam pervenientes. II Tim., III, 7.
[3] Ferculum (pl. fercula), é um derivado do verbo fero (transportar), pelo que o seu significado próprio é «o que serve para transportar». Daí o significado ora de «liteira, em que são trans­portadas pessoas, ora de «prato», bandeja, em que são transportadas comidas, iguarias; e, finalmente, como no caso presente, tomando-se o conteúdo pelo continente, o de «iguarias». V. M. Bréal et An. Bailly in Leçons de Mots — Dict. Etym. Lat., Paris, p. 90 Cfr. Horácio in Sat. II, 6, 104. V. ainda Ernout-Meillet, Dict. Etym, de la langue latine, p. 346.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.