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31/12/2016

Leitura espiritual

Leitura espiritual



A Cidade de Deus 



Vol. 1


CAPÍTULO XXXII

Instituição dos jogos cénicos.

Todavia, ficai sabendo, vós que o ignorais e vós também que fingis ignorá-lo; prestai atenção, vós que murmurais contra quem vos libertou de tais senhores: os jogos cénicos, espectáculos de torpeza e desvario de vaidades, foram criados em Roma não por vícios humanos, mas por ordem dos vossos deuses. Seria mais tolerável conceder honras divinas a Cipião do que prestar culto a deuses deste jaez. Porque estes não eram melhores que o seu pontífice. Vede se prestais atenção — se é que o vosso espírito, embriagado por erros sorvidos desde há tanto tempo, vos permite tom ar em consideração alguma coisa de são. Os deuses ordenavam exibições de jogos teatrais em sua honra para refrearem a pestilência dos corpos. O pontífice, ao invés, proibia a própria construção do teatro para evitar que as vossas almas se empestassem. Se em vós resta uma centelha de lucidez para dar preferência à alma sobre o corpo — escolhei a qual dos dois deveis prestar culto. E não se acalmou aquela pestilência dos corpos, porque, num povo belicoso como este, até então acostumado apenas aos jogos de circo, se insinuou a insânia refinada das representações teatrais. Mas a astúcia de espíritos nefandos, prevendo que a seu tempo terminaria aquela peste, teve o cuidado de inocular outra muito mais grave e do seu pleno agrado, desta vez não nos corpos, mas nos costumes. Esta peste cegou o espírito a estes desgraçados com tão espessas trevas e tornou-os tão disformes, que, agora (a posteridade talvez não acredite se lhe chegar ao ouvido), devastada que foi Roma, os contagiados desta peste que na fuga conseguiram chegar a Cartago, todos os dias e à porfia se encontram nos teatros enlouquecidos pelos histriões.

CAPÍTULO XXXIII

Nem a destruição da pátria conseguiu corrigir os vícios dos Romanos.

Ó mentes dementes! que tamanho, não erro, mas furor é este? Segundo ouvimos dizer, enquanto todos os povos do Oriente e as cidades mais importantes das regiões mais remotas da Terra lamentam o vosso desastre e decretam luto público e se mostram inconsoláveis, vós procurais os teatros, entrais neles, enchei-los e tornai-los muito mais loucos do que eram antes. Era esta baixeza, era esta peste das vossas almas, era esta perversão da probidade e da honestidade que Cipião temia quando proibia a construção de teatros, quando via que a prosperidade vos podia afundar na corrupção, quando se recusava a que estivésseis seguros do temor do inimigo. Nunca acreditou na felicidade de um estado de altas muralhas e baixos costumes.

Mas em vós valeu mais a sedução ímpia dos demónios do que as advertências de homens precavidos. Por isso não quereis que vos sejam imputados os males que praticais, — mas imputais aos tempos cristãos os males que padeceis. E nem sequer na vossa segurança procurais a paz da repú­blica, mas a impunidade do vosso desregramento — vós que, viciados pela prosperidade não fostes capazes de vos corrigirdes na adversidade. Cipião queria atemorizar-vos com o inimigo para que não caísseis no desregramento; mas vós nem esmagados pelo inimigo refreastes a sensualidade. Perdestes a utilidade da desgraça, tornastes-vos nos mais desgraçados e continuais os piores.

CAPÍTULO XXXIV

A clemência de Deus mitigou a ruína da Urbe.

E todavia, se viveis, devei-lo a Deus, que, perdoando, vos convida à correcção pela penitência. Foi Ele quem vos permitiu, a vós ingratos, escapar às mãos inimigas, quer utilizando o nome dos seus servos quer refugiando-vos nos locais dedicados aos seus mártires. Dizem que Rómulo e Remo fundaram um asilo — e todos os que nele se refugiavam ficavam livres de toda a pena, procurando assim aumentar a população da cidade que iam fundar. Maravilhosa iniciativa que redundou em honra de Cristo! Os destruidores da Urbe decidiram o mesmo que antes tinham feito os seus fundadores. Que há de extraordinário em que, para completar o número dos seus concidadãos, tenham aqueles feito o que estes fizeram para conservarem um grande número dos seus inimigos?

CAPÍTULO XXXV

Escondidos entre os ímpios há filhos da Igreja e na Igreja há falsos cristãos.

Estas e outras que tais, — se é possível encontrar outras mais fecundas e mais propositadas, — poderão ser as respostas que a resgatada família de Cristo Senhor e a peregrina cidade de Cristo Rei darão aos seus inimigos. É bom que ela não esqueça que até entre os seus inimigos se ocultam alguns dos seus futuros concidadãos — para que não julgue ter sido improfícuo esperar por eles, suportando- -os como inimigos, até ao dia em que ela os acolherá como crentes. Do mesmo modo sucede que a cidade de Deus, durante a sua peregrinação pelo mundo, conta no seu seio com pessoas a si unidas pela comunhão dos sacramentos (conexos communione sacramentorum) que não partilham com ela a herança eterna dos santos. Alguns mantêm-se escondidos; outros são conhecidos. Como os inimigos, não hesitam em murmurar contra Deus de cuja marca sacramental são portadores. Tão depressa com eles enchem os teatros, como logo a seguir connosco enchem as igrejas. Não há que desesperar da emenda de alguns, nomeadamente destes últimos, pois que entre os nossos mais declarados adversários se escondem alguns predestinados a tornarem-se nossos amigos, coisa de que eles nem suspeitam.

De facto, estas duas cidades estão mutuamente entrelaçadas e mescladas uma na outra neste século, até que no último juízo serão separadas.

Para glória da cidade de Deus, que brilhará com mais claridade em contraste com os seus opostos, — vou expor a minha opinião acerca da sua origem, do seu desenvolvimento e dos fins respectivos, conforme a ajuda que receber de Deus.


CAPÍTULO XXXVI

Assuntos a tratar na sequência desta obra.

Mas tenho ainda algumas coisas a dizer contra os que atribuem todas as desgraças da república romana à nossa religião, que proibiu que se sacrificasse aos seus deuses. Devem com efeito ser relatadas todas aquelas desgraças, que venham a propósito e pareçam suficientes, suportadas por aquela cidade e pelas províncias por ela governadas antes da proibição dos sacrifícios. Sem dúvida que no-las atribuiriam todas a nós se a nossa religião já antes delas brilhasse a seus olhos ou já lhes tivesse proibido os seus cultos sacrílegos.

Em seguida, deve-se mostrar por que virtudes obtiveram o engrandecimento do Império e por que motivo Deus, de quem dependem todos os reinos, lhes prestou o seu auxílio.

Deve-se ainda mostrar como o poder dos que eles chamam deuses de nada lhes serviu — e, pelo contrário, quanto os prejudicaram com os seus enganos e mentiras.

Por fim, responder-se-á aos que, já refutados e convencidos com evidentíssimas provas, procuram sustentar que convém venerar os deuses, não por causa dos interesses da vida presente, mas por causa dos da vida que há-de vir depois da morte. Se não me engano, é um assunto muito mais trabalhoso, muito mais subtil e digno da mais elevada discussão. Trata-se de discutir com filósofos — não com quaisquer filósofos, mas com os mais ilustres, com os que gozam entre eles da mais elevada fama e que connosco estão de acordo em muitos pontos tais como: imortalidade da alma, criação do mundo pelo verdadeiro Deus, Providência com que rege todo o universo que criou.

Mas como também devem ser refutados aqueles pontos em que de nós discordam, não devemos faltar a este dever: resolveremos com as forças que Deus nos conceder, as objecções contra a religião e, de seguida, estabeleceremos firmemente a Cidade de Deus, a verdadeira religiosidade (pietas) e o culto de Deus unicamente no qual se encontra a verdadeira promessa da felicidade eterna.

Seja, pois, este o fim deste livro e encetemos novo caminho conforme o planeado.

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)


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