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23/12/2016

Leitura espiritual

Leitura espiritual




A Cidade de Deus 


Vol. 1
CAPÍTULO V

Costume geral dos inimigos de devastarem as cidades vencidas. Parecer de César.

Como escreve Salústio, historiador de notável fidelidade, já o próprio César fez notar esse costume ao expor perante o Senado o seu parecer sobre os conjurados:
Donzelas e jovens são raptados; meninos são arrancados dos braços dos pais; mães sofrendo os caprichos dos vencedores; templos e casas saqueados; praticam-se morticínios e incêndios. Finalmente, armas, cadáveres, sangue e lamentos por toda a parte. [i]

Se não se tivesse aqui referido aos lugares sagrados, seríamos levados a crer que os inimigos costumavam poupar as moradas dos deuses. E mais: este tratamento não o recebiam os templos romanos das hostes estrangeiras, mas de Catilina e dos seus partidários, nobilíssimos senadores e cidadãos romanos. Claro que se tratava de homens perdidos e parricidas da sua pátria.

CAPÍTULO VI

Nem os próprios Romanos vez alguma
pouparam os vencidos que se refugiavam
nos templos das cidades conquistadas.

Para que há-de a nossa exposição estender-se a múltiplos povos que entre si se guerrearam sem pouparem em parte alguma os vencidos refugiados nas moradas dos deuses?

Vejamos os próprios Romanos; recordemo-los, insisto, e examinemo-los a esses mesmos cuja principal glória, diz-se, foi a de

poupar os vencidos e domar os soberbos. [ii]

Digam-nos que templos costumavam exceptuar para deixarem em liberdade os que lá se refugiavam quando saqueavam tantas e tão grandes cidades, assaltadas e tomadas para estenderem os seus domínios. Será que assim tenham procedido sem o consignarem os historiadores das suas gestas? Mas como é que silenciaram sinais de tão elevada piedade homens que procuravam com todo o empenho registar feitos dignos de louvor?  Conta-se que o ilustre romano Marco Marcelo, conquistador da bela cidade de Siracusa, chorou antes de a arruinar e que, antes do sangue dela, correram as lágrimas dele. Tem até o cuidado de respeitar o pudor que, mesmo num inimigo, se devia respeitar. De facto, antes de, como vencedor, ordenar o assalto da cidade, publicou um édito proibindo que se exercesse violência corporal sobre quem quer que fosse livre. Porém, a cidade foi arrasada, como acontece nas guerras, e em parte nenhuma lemos qualquer decreto em que este general tão casto e clemente tenha ordenado que deixassem ileso todo aquele que tivesse procurado refúgio neste ou naquele templo. Não se iria silenciar este facto, caso ele tivesse ocorrido, quando se não esconderam as suas lágrimas ou a ordem de em nada se ofender a pudicícia.

Fábio, que destruiu Tarento, foi louvado por se ter abstido de pilhar os ídolos. O seu secretário consultou-o para saber o que devia fazer de tantas imagens capturadas dos deuses — e ele temperou até a sua clemência com um gracejo. Perguntou como eram as imagens, — e tendo-se-lhe respondido que eram muitas e de grande tamanho e que até estavam armadas, ele replicou: «deixemos aos Tarentinos os seus irados deuses». Se, pois, os historiadores romanos não puderam deixar no silêncio nem o pranto de um nem o riso do outro, nem a casta piedade do primeiro nem a jovial moderação do último, — como é que iriam então deixar de consignar que eles pouparam fosse quem fosse por amor fosse de que deuses fosse chegando a proibir que fossem atacados ou reduzidos ao cativeiro os refugiados nos templos?

CAPÍTULO VII

As crueldades cometidas na destruição
de Roma são o resultado dos hábitos de
guerra; ao passo que a clemência
então verificada resulta do poder do nome
de Cristo.

Por conseguinte, todas as devastações, chacinas, pilhagens, incêndios e tormentos, que se cometeram na recente catástrofe de Roma foram produto dos hábitos de guerra. O que porém de insólito ali ocorreu, ou seja, que, mudando o rumo dos acontecimentos de uma forma insuspeitada, a crueldade dos bárbaros se tenha tornado branda até ao ponto de estabelecer que, por escolha, o público enchesse as basílicas mais amplas, onde ninguém seria ferido, donde ninguém seria arrancado, para onde eram levados muitos que deviam ser libertados pelos misericordiosos bárbaros, donde não seriam retirados por inimigos cruéis os que tinham que ser reduzidos ao cativeiro — quem não vê que tudo isto deve ser atribuído ao nome de Cristo, ao cristianismo, é cego; quem o vê mas não o louva, é ingrato; quem se mostra contrário ao que louva, é insensato. É impossível alguém de perfeito juízo atribuir isto à ferocidade dos bárbaros. Quem encheu de terror as mentes ferocíssimas e sanguinárias, quem os foi refreando e miraculosamente os abrandou, foi Aquele que, muito tempo antes, pelo profeta havia dito:

Castigarei com uma vergasta as suas iniquidades, e à chicotada as suas culpas; todavia, não lhes retirarei a minha misericórdia. [iii]

CAPÍTULO VIII

Quase sempre as graças e as desgraças
são comuns a bons e maus.

Alguém dirá: porque é que esta divina misericórdia até aos ímpios e injustos se estende? Será porque, julgamos nós, quem a concede é Aquele que
faz levantar o Sol todos os dias sobre os bons e sobre os
maus e chover sobre os justos e os injustos? [iv]
É certo que alguns haverá que, disto se apercebendo, pela penitência se hão-de corrigir da sua impiedade; outros haverá, porém, que, como diz o Apóstolo, desprezando
as riquezas de bondade e de tolerância de Deus [v],
estão armazenando
de acordo com a dureza do seu coração e conforme o seu coração impenitente [vi]
estão armazenando, repito,
para si castigos para o dia do castigo e da manifestação do juízo de Deus que a cada um retribuirá segundo as suas obras [vii].

Contudo, a paciência de Deus chama os maus à penitência e o açoite de Deus aos bons ensina a paciência. Da mesma forma, a misericórdia de Deus rodeia os bons para os animar, e a sua severidade castiga os maus para os corrigir. Aprouve à divina Providência dispor para a outra vida, para os bons, de bens de que os pecadores não gozarão, e para os ímpios, de males que não atormentarão os justos. Quis, porém, que estes bens e males temporais fossem comuns a todos, para que nem sejam procurados ansiosamente os bens que vemos também na posse dos maus, nem sejam evitados, como qualquer coisa de vergonhoso, os males de que também padecem frequentemente os bons.

O que agora mais interessa é saber qual o uso que fazemos, quer das situações prósperas, quer das adversas. Efectivamente, o homem bom nem se envaidece com os bens temporais, nem se deixa abater com os males. Pelo contrário, o homem mau sofre na infelicidade, porque se corrompe na felicidade. Mas é na distribuição de bens e de males que Deus mais vezes patenteia a sua intervenção. De facto, se ele desde já castigasse qualquer pecado com penas manifestas, julgar-se-ia que nada reserva para o último juízo. E, pelo contrário, se desde já deixasse impunes todos os pecados, julgar-se-ia que a Providência divina não existe. O mesmo se passa com as coisas prósperas: se Deus não as concedesse com toda a largueza a quem lhas pede, diríamos que tal não está no seu poder; e, se as concedesse a todos os que lhas pedem, julgaríamos que só se deve servir, na mira de tais recompensas, e servir assim, em vez de nos tornar santos, tornar-nos-ia mais ambiciosos, mais avaros.

Lá porque é assim — que os bons e maus sofrem as mesmas provas — nem por isso vamos negar a distinção entre uns e outros porque distinto não é o que uns e outros sofrem. Mantém-se, na realidade, a diferença dos que sofrem, mesmo na semelhança dos sofrimentos. Ainda que estejam a sofrer do mesmo tormento, a virtude e o vício não se identificam. Assim, sob um só fogo, o ouro rebrilha e a palha fumega; sob o mesmo trilho, a palha tritura-se e o grão limpa-se; assim como a água ruça não se confunde com o azeite embora saiam espremidos da mesma prensa, — o único e mesmo golpe, caindo sobre os bons, põe-nos à prova, purifica-os, afina-os e condena, arrasa, extermina os maus. Daí que, na mesma aflição: — os maus abominam a Deus e blasfemam, e os bons dirigem-Lhe as suas súplicas e louvam-No. O que mais interessa não é o que se sofre, mas como o sofre cada um. Agitados com o mesmo movimento — a imundícia exala um fedor insuportável, e o unguento, um suave perfume [viii].
 (cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Rapi virgines, pueros, divelli liberos a parentum complexu, matres familiarum pati quae victoribus conlibuisset, fana atque domos spoliari, caedem incendia fieri: postremo armis cadaveribus cruore atque luctu omnia compleri. Salústio, De Conjuratione Catilinae, LI, 9.
[ii] Parcere subjectis et debellare superbos.
Vergílio, Eneida, VI, 853.
[iii] Visitabo in virga iniquitates eorum et in flagellis peccata eorurn; misericordiatn autem meam non dispergam ab eis.
Salmo LXXXVIII, 33-34.
[iv] Cotidie facit oriri solem suum super bonos et malos, et pluit super justos et injustos.
Mat., V, 45.
[v] Divitias bonitatis et longanimitatis Dei.
Rom. II, 4.
[vi] Secundum duritiam cordis sui et cor impaenitens.
Rom., II, 5.
[vii] Sibi iram in die irae revelationis justi judicii Dei, qui reddet unicuique secundum apera ejus.
Rom., II, 5-6.
[viii] Distribuição dos bens temporais.
Deus faz brilhar o sol e faz chover sobre os bons e sobre os maus.
Mais que isso: parece preferir os maus aos bons na distribuição desses e demais bens materiais.
É esta uma situação que sempre na vida dos homens, através de todas as gerações, vem sendo posta com angústia e escândalo. Já os Judeus sobre ela meditavam no Eclesiástico e em Job.
Santo Agostinho apresenta várias soluções que, no fim de contas, se vêm a unificar:
Esses bens são concedidos mesmo aos santos — para que se não pense que não são bons esses bens: são bens, embora de valor inferior aos bens do espírito, à virtude.
São também concedidos aos maus — para que os santos não pensem que são os bens supremos. Em relação a outros, são bens de inferior categoria, que até aos maus podem ser concedidos — e por isso os bons não devem ter apego a eles e por causa deles perder de vista os bens não temporais.
Concedem-se aos maus, porque não são tão maus que não mereçam qualquer recompensa por algum bem que pratiquem. Concedem-se aos bons, para que não percam a coragem em se converterem com receio de os perderem.
Na desolação e adversidade, a divina Providência não deixa o justo sem a consolação desses bens, não vá ele esmorecer; na prosperidade prova-o, retirando-lhos, não vá com eles corromper-se, mas a felicidade dos maus detentores desses bens é aparente: o remorso rói-lhes a alma. Não há motivo para os invejar.
Os bens temporais são concedidos a todos — aos maus, porque é a sua paga por algum bem que façam; aos bons, para que não receiem a conversão sem eles. Se, porém, fossem concedidos só aos bons, julgar-se-ia que só por eles se tomariam bons. Se fossem concedidos só aos maus, os bons não se converteriam, porque receariam perder o que afinal não deixa de ser um bem.
Se não fossem retirados senão aos bons — os débeis não se converteriam aos bens mais altos, com receio de perder os bens da Terra; se não fossem retirados senão aos maus, julgar-se-ia que nisso e só nisso consistiria toda a sua pena. Sobre o assunto, v. R. Jolivet, Le probl. Du mal chez S. Augustin (in Arch. de Phil. VII, 2, 1930); G. Philips, La raison d’Etre du mal, d’après Saint Augustin, Louvain, 1927.

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