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13/11/2016

Leonard Cohen teólogo

Leonard Cohen teólogo

Leonard Cohen foi um grande teólogo deste tempo. Afirmá-lo não é a cedência fácil à comoção da sua partida. Reconhecê-lo é, antes, sublinhar um dos traços que fizeram dele, como bem anotava o seu epitáfio no Twitter, um "visionário" na música contemporânea. E não é um lapso que o considere precisamente teólogo. Porque a religiosidade da sua música vai muito para lá das referências bíblicas, espirituais e transconfessionais com que se tece a sua lírica. Porque o eco de Deus na sua obra afina-se com esse diálogo, mas nasce antes e vai mais longe. Nasce de uma inquietude perante a vida que não se sabe dizer sem Deus. E chega à hipótese de um divino ferido, amigo, portanto, do percurso acidentado de Cohen e também de todos os que têm de lutar para crer. Dir-se-ia que a gravidade do seu timbre foi feita para a gravidade do que ele canta. O casamento nele entre voz e palavra não poderia ter sido mais indissolúvel e fecundo.

Talvez seja broken a palavra mais teológica do seu léxico. Estranhará que assim seja apenas quem tem de Deus uma ideia naïf e para com a religião uma atitude triunfalista. Cohen não as tinha. Para ele é na falha, na quebra, na fenda que a questão se decide. Nele cantaram todos quantos apenas podem elevar aos céus um «broken Hallelujah» (in "Hallelujah"). Isto Cohen percebeu como poucos: o teólogo não pode ignorar as feridas que este tempo traz no corpo. E são tantas. E a sua memória tão viva. O louvor que a humanidade pode, então, prestar a Deus está ferido e quebrado, mesmo se não impossibilitado. Porque também disto é Cohen um profeta: essas feridas não mataram o que em nós é música e Hallelujah. Nele cantou-se igualmente a falha como desbloqueio e não somente como défice: «There is a crack in everything / That's how the light gets in» [i].

Sabemos que, historicamente, as Igrejas, tal como os Estados, partidos e ideologias, tiveram dificuldades com os artistas, porque de vez em quando eles fazem e dizem coisas que não estavam no programa, e seguem por caminhos que talvez não fossem os mais ortodoxos, ou mais justos, segundo o entender de quem o diz.

Há nisto uma tal sabedoria do humano que toca o divino. O realismo de reconhecer que em tudo uma falha existe. A inteligência de perceber que essa falha não é vazio, mas habitação e estrada de uma luz que permite ver e ser visto. Teologicamente falando, de poder ver a Deus e ser por ele visto. Mas com a ousadia que se exige a todo o teologar e transportado pela narrativa bíblica, Cohen canta ainda um Deus ferido («you showed me where you had been wounded») e com o nome «broken» inscrito em cada átomo (in "Born in Chains"). Uma tal ideia, nada desconhecida de tradições teológicas como a judaico-cristã, transborda de teologia.

Cantando e escrevendo, Cohen pensou, desabafou, rezou, amou. Sempre com aquele jeito cavalheiresco cultuado noutras eras. Porque assim era, um gentleman em palco e fora dele. Honrou assim o nome que celebrizou. Foi kohen, isto é, sacerdote, fazendo das letras e da música como que um santuário. Porque a forma mais recorrente de Deus na sua obra será mesmo a da invocação. E também assim se faz e fez teologia. Não apenas falando de Deus, mas falando a Deus. Ter-lhe-á este agora manifestado a sua vontade: «If it be your will / That I speak no more / And my voice be still / As it was before» [ii]. Ter-lhe-á este agora respondido à sua "antiga ideia": «Show me the place where you want your slave to go» [iii]. Talvez porque tenha acreditado nele, quando Leonard Cohen lhe cantou: «I'm ready, my Lord» [iv].


alexandre palma, Teólogo
In "Diário de Notícias", 12.11.2016





[i] (in "Anthem")
[ii] (in "If It Be Your Will")
[iii] (in "Old Ideas")
[iv] (in "You Want it Darker")

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