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30/11/2016

Leitura espiritual


DE MAGISTRO

(DO MESTRE)

CAPÍTULO X
SE É POSSÍVEL ENSINAR ALGO SEM SINAIS.
AS COISAS NÃO SE APRENDEM PELAS PALAVRAS

AGOSTINHO

– Lembras quantas voltas demos para chegar a tão modesto resultado? Desde o começo da nossa conversa, que dura já um bom tempo, fatigamo-nos bastante para descobrir estas três coisas:
1) se era possível ensinar sem sinais;
2) se havia sinais preferíveis às coisas que expressam;
3) se o conhecimento das coisas pode ser melhor que os sinais.
Mas há ainda uma quarta que gostaria de saber agora: se as coisas que encontramos, estão para ti claras e não te deixam possibilidade de dúvida.

ADEODATO
– Seria mesmo agradável, depois de tantos rodeios, que tivéssemos chegado à certeza, mas esta pergunta gera em mim certa inquietação, que me impede de assentir.
Tenho a impressão que tal não me perguntarias se não tivesses alguma objeção a apresentar: e o emaranhado do assunto não me permite ver tudo e responder com segurança, pois, entre tantos véus, temo que se esconda algo que os olhos da minha mente não possam divisar.

AGOSTINHO

– Agrada-me a tua dúvida, porque revela uma alma sem leviandade, e isto garante imensamente a tranquilidade.
É de facto difícil não se perturbar quando o que nós tínhamos como ponto de consenso fácil e pacífico é derrubado e como que arrebatado das mãos por discussões.
Por isso, como é justo ceder depois de observar e examinar bem os motivos, assim é perigoso conservar como coisa certa o que não é.
Às vezes, quando desmorona aquilo que tínhamos como estável e permanente, pode haver o receio que se gere tão grande aversão ou medo da razão, que nos pareça não podermos mais depositar nossa fé nem sequer na verdade mais evidente.
Mas, vamos adiante?
Reexaminemos, agora um pouco mais rapidamente, se tens razão de duvidar.
Pergunto: se alguém, que não conheça as armadilhas que se tendem aos pássaros com varas e visco, deparasse com um caçador com este arnês, e que vá indo pelo caminho sem ter começado ainda a sua tarefa e, vendo o caçador, apressasse o passo, e estranhando no seu íntimo tudo aquilo, se perguntasse o que poderiam significar aqueles apetrechos; e o caçador, sentindo-se observado e admirado, para fazer mostra de si, exibisse a cana e o falcão, conseguisse atrair e apanhar um passarinho, diga-me: o caçador, sem usar de sinais, mas usando a própria coisa, não estaria a ensinar ao seu espectador o que esse queria saber?

ADEODATO

– Parece-me que o caso é semelhante àquele que mencionei, isto é, de quem pergunta o que é caminhar.
Neste caso também não acho que foi mostrada toda a arte de caçar.

AGOSTINHO

– É simples desfazer-se desta impressão; eu acrescento: se aquele espectador fosse inteligente o bastante para compreender por inteiro a arte de caçar só pelo que viu, isto bastaria para demonstrar que alguns homens podem ser ensinados sem sinais sobre algumas coisas, embora não sobre todas.

ADEODATO

– No caso, também posso acrescentar isto: quem pergunta o que é caminhar, se for bem inteligente, compreenderá por inteiro o que é caminhar, bastando que se lhe mostrem uns poucos passos.

AGOSTINHO

– Podes, eu concordo com prazer.
Chegamos, pois, a esse resultado, ou seja, que umas coisas podem ser ensinadas sem sinais, sendo portanto falso aquilo que há pouco nos parecia verdadeiro, isto é, não existir nada que se possa mostrar ou ensinar sem sinais; e acode à nossa mente não uma ou duas coisas, mas milhares que, sem precisar de sinal algum podem mostrar-se por si mesmas.
Poderemos, pois, duvidar, eu te pergunto?
Sem considerar os muitos espectáculos em que uns actores representam nos teatros as coisas sem usar sinais, Deus e a natureza não apresentam e mostram por si mesmos, ao observador, o sol e a luz, que tudo banha e recobre, a lua e as estrelas, a terra e os mares com infinidade de criaturas que os habitam?

Todavia, se observarmos isto com maior atenção, talvez não encontremos nada que se possa aprender pelos seus próprios sinais.
De facto, se me for apresentado um sinal e eu não souber de que coisa é o sinal, este nada poderá me transmitir; se, ao contrário, já souber de que é sinal, que estará me ensinando?
Assim, quando leio “Et saraballae eorum non sunt immutatae” (E as suas coifas não foram trocadas), a palavra (coifas) não me explica a coisa que significa.
Pois se uns objectos que servem para cobrir a cabeça têm este nome de ‘saraballae” (coifas), terei porventura, depois de ouvi-lo, aprendido o que é cabeça e o que é cobertura?
Ao contrário, eu já as conhecia antes, pois delas adquiri conhecimento sem que as ouvisse chamar assim por outrem, mas vendo-as com os meus próprios olhos.
Quando as duas sílabas da palavra “caput” (cabeça) soaram pela primeira vez ao meu ouvido, desconhecia o seu significado como quando ouvi e li pela primeira vez “saraballae”.
Porém, ouvindo repetidamente dizer “caput” (cabeça), e notando e observando a palavra quando era pronunciada, reparei facilmente que ela significava aquela coisa que eu bem conhecia, por tê-la visto.
Mas antes de entender seu significado, a palavra era para mim apenas um som, e aprendi que era um sinal quando a associei àquilo de que era sinal, e aprendi o seu significado pela visão directa do objecto.
Vemos, pois, que é mais pelo conhecimento da coisa que se aprende o sinal do que o contrário.
Para que compreendas isto com maior clareza, imagina que estejamos ouvindo agora, pela primeira vez, pronunciar a palavra “caput” (cabeça).
(Lembra-te que buscamos o conhecimento não da coisa que é significada, mas do próprio sinal, conhecimento que nós não temos enquanto ignorarmos o que sinaliza).
Se, na nossa pesquisa, nos mostrassem ou apontassem com o dedo a própria coisa, ao vê-la teríamos conhecimento do sinal; isto é, saberíamos o que quer dizer aquele sinal que tínhamos ouvido, mas não compreendido. No sinal há duas coisas: o som e o significado; ora, o som não foi certamente recebido como sinal de algo, mas como simples
verberação no ouvido, enquanto o significado foi apanhado pela visão da coisa que é significada.
Como o apontar do dedo só pode significar o objecto que o dedo está apontando, e como o dedo não está apontado pelo sinal, mas para a parte do corpo que se chama “caput” (cabeça), ocorre que, pelo gesto, não venho a conhecer a coisa, que já conhecia, nem o sinal que o dedo não estava apontado.
Mas não quero colocar grande ênfase no gesto de apontar o dedo, pois o tenho mais como sinal do acto de indicar do que das próprias coisas indicadas; vê o que ocorre quando dizemos: “ecce” (eis), e habitualmente acompanhamos este advérbio com o gesto de apontar como se não bastasse um só desses sinais para indicar.
E procurarei ao máximo convencer-te, se o puder, disto: que nada aprendemos por meio dos sinais chamados palavras; antes, como já disse, aprendemos o valor da palavra, ou seja, o significado oculto no som pelo conhecimento ou da percepção da coisa significada; mas não a própria coisa mediante o significado.
E o que disse da cabeça, poderia dizer do que serve para cobrir a cabeça e de infindáveis outras coisas; que, embora as conhecesse, nunca, até agora, tive o conhecimento daquelas “saraballae” (coifas). Se alguém com um gesto me apontasse estas “saraballae” (coifas) ou as pintasse, ou me mostrasse algo de parecido, não diria, como aliás poderia se quisesse falar um pouco mais, que não mas ensinou, mas que não me ensinou com as palavras o que está diante de mim. Se, ao tê-las diante de mim eu fosse avisado com as palavras:
Ecce saraballae” (eis as coifas), aprenderia uma coisa que não sabia, não pelas palavras que foram pronunciadas, mas pela visão directa da coisa em si, à qual associei o nome, cujo valor gravei.
Pois, quando aprendi a própria coisa, não acreditei nas palavras de outrem, mas nos meus olhos; talvez acreditasse também nelas, mas apenas como um alerta, ou seja, para procurar com os olhos o objecto em questão.


(Revisão de versão portuguesa por ama

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