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19/11/2016

Leitura espiritual


DE MAGISTRO

(DO MESTRE)

CAPÍTULO I

FINALIDADE DA LINGUAGEM

AGOSTINHO

– Qual te parece ser nossa intenção quando falamos?

ADEODATO

– Pelo que me acode ao espírito agora, eu diria ou ensinar ou aprender.

AGOSTINHO

– Com uma dessas coisas eu concordo; de facto, é evidente que quando falamos queremos ensinar; todavia, como aprender?

ADEODATO

– Mas diz-me, pensas que se pode aprender sem perguntar?

AGOSTINHO

– Mesmo neste caso, creio que só queremos ensinar. Diz-me pois, as nossas perguntas terão outro motivo que não ensinar o que queremos àquele a quem perguntamos?

ADEODATO

– Dizes a verdade.

AGOSTINHO

– Vês, pois, que nosso propósito ao falar é apenas ensinar.

ADEODATO

– Para mim ainda não está claro; ora, se falar nada mais é que emitir palavras, também as emitidas ao cantar; às vezes falamos sozinhos, sem um interlocutor que possa aprender; em tais casos, não creio que pretendamos ensinar algo.
AGOSTINHO


– Creio, contudo, que há certa maneira de ensinar pela recordação, processo certamente valioso, como teremos ocasião de ver na nossa conversação. Ora, se opinas que ao recordarmos não aprendemos, ou que nada ensina aquele que recorda, eu não me oponho; e desde já afirmo que é dupla a finalidade da palavra: para ensinar ou para despertar reminiscências nos outros ou em nós mesmos; e isto ocorre também quando cantamos, concordas?

ADEODATO

– Não, absolutamente, pois é bem raro que eu cante para lembrar-me, mas é bem frequente que o faça para deleitar-me.

AGOSTINHO

– Compreendo a tua ideia; mas não percebes que o que te deleita no canto é apenas uma certa modulação do som, que, pelo facto de se poder associar ou não às palavras, faz com que uma coisa seja o falar e outra o cantar? Na verdade, também com a flauta e a cítara se modulam os sons, cantam também os pássaros, e nós mesmos, às vezes, entoamos um motivo musical sem palavras, o que se pode chamar canto, mas não fala; tens alguma objecção a isto?

ADEODATO

– Nenhuma.

AGOSTINHO

– Aceitas, pois, que a palavra só foi instituída para ensinar e recordar?

ADEODATO

– Poderia concordar, se não me levasse a opinar diversamente o facto de que, ao orarmos, nós sem dúvida falamos, e, certamente não é lícito crer que ensinamos ou recordamos algo a Deus.

AGOSTINHO

– Suspeito que não sabes que, se nos foi dito para orarmos em lugares fechados, significando com isso o espaço secreto da alma, o foi porque Deus não quer ser lembrado de algo ou ensinado por nossas palavras, para atender a nossos desejos. Quem fala, pois, manifesta exteriormente sua vontade articulando o som: mas nós devemos procurar Deus e suplicar-lhe no mais profundo recesso da alma racional, a que se chama o homem interior; quis Ele que fosse este o seu templo. Não leste no Apóstolo: “Não sabeis que sois o templo de Deus e que o espírito de Deus habita em vós”, e que “Cristo habita no homem interior?” E não atentaste nas palavras do Profeta: “Falai dentro dos vossos corações, e nos vossos leitos arrependei-vos; oferecei os sacrifícios da justiça e confiai no Senhor”?
Onde crês que se possam oferecer os sacrifícios da justiça, a não ser no templo da mente e no íntimo do coração? Onde se fizer o sacrifício, aí também se há-de orar. Por isso, não são necessárias palavras quando oramos, isto é, palavras soantes, excepto, talvez, no caso do sacerdote que exprime em palavras o seu pensamento, mas não para que Deus ouça, e sim os homens e, envolvidos na recordação, sejam elevados até Deus. Ou não pensas assim?

ADEODATO

– Concordo plenamente.

AGOSTINHO

– Não te preocupa, pois, o facto de que o Mestre supremo, ensinando a orar aos seus discípulos, ensinou certas e determinadas palavras, parecendo não ter feito outra coisa que ensinar as palavras a serem empregues quando rezamos?

ADEODATO

– Isso não me preocupa absolutamente, pois não lhes ensinou palavras; e sim, pelas palavras, aquilo que deveriam saber quanto a quem e o que haviam de pedir na oração, como foi dito, no segredo do coração.

AGOSTINHO

– Entendeste correctamente: creio que também notaste, apesar de nem todos concordarem que, mesmo sem emitir som algum, nós falamos quando interiormente articulamos as palavras na nossa mente; assim, com as palavras que emitimos, o que fazemos é apenas chamar a atenção; entretanto, a memória das coisas, à qual as palavras estão associadas, provoca-as e faz com que venham à mente as próprias coisas, das quais as palavras são sinais.

ADEODATO

– Compreendo e concordo contigo.

CAPÍTULO II

O HOMEM MOSTRA O SIGNIFICADO DAS PALAVRAS SÓ PELAS PALAVRAS

AGOSTINHO

– Nós concordamos, portanto, em que as palavras são sinais.

ADEODATO

– Concordamos.

AGOSTINHO

– Então, podemos chamar assim a um sinal que nada signifique?

ADEODATO

– Não.

AGOSTINHO

– Quantas palavras há neste verso: “Si nihil ex tanta superis placet urbe relinqui”?

ADEODATO

– Oito.

AGOSTINHO

– Logo, oito são os sinais.

ADEODATO

– É mesmo.

AGOSTINHO

– Creio que compreendes este verso.

ADEODATO

– Parece-me que sim.

AGOSTINHO

– Dize-me o sentido de cada palavra.

ADEODATO

– Sei o que significa o “si”, mas não encontro um sinónimo para expressar o seu significado.

AGOSTINHO

– Sabes indicar, ao menos, em que campo está o seu significado?

ADEODATO

– Parece-me que o “si” expressa dúvida: mas onde está a dúvida, senão no espírito?
AGOSTINHO
– Por enquanto, aceito; continua.

ADEODATO

– “Nihil” que outra coisa significa senão o que não existe?

AGOSTINHO

– Talvez fales com acerto, porém a afirmação anterior impede-me de concordar contigo:
que não existe sinal sem que signifique algo; ora, o nada de modo algum pode ser alguma coisa.
Por isso, a segunda palavra deste verso não seria, pois, um sinal, uma vez que nada significa; e então, teríamos errado ao concordar que todas as palavras são sinais, ou que todo sinal signifique algo.

ADEODATO

– Estás pressionando-me demais; todavia observa que, se não tivermos nada para expressar, seria sem dúvida tolice proferimos alguma palavra; creio que tu, ao falar agora comigo, nada do que disseste foi inútil, mas que, com os demais sons que saem da tua boca, ofereces-me sinais para que eu entenda algo; não precisarias ter pronunciado essas duas sílabas (ni-hil) se elas não significassem algo. No entanto, se entendes que com elas necessariamente se gera um enunciado e que elas, ao atingir nossos ouvidos, nos ensinam ou lembram algo, logo entenderás o que eu queria dizer, mas não posso explicar.

(cont)


(Revisão de versão portuguesa por ama

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