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08/08/2016

Leitura espiritual

Leitura Espiritual

Temas actuais do cristianismo 



São Josemaria Escrivá

116  [i]       
Esta doutrina da Sagrada Escritura, que se encontra, como sabeis, no próprio cerne do espírito do Opus Dei, há-de levar-vos a realizar o vosso trabalho com perfeição, a amar a Deus e os homens fazendo com amor as pequenas coisas da vossa jornada habitual, descobrindo esse quê divino que está encerrado nos pormenores. Que bem se enquadram aqui aqueles versos do poeta de Castela: Devagar, e boa letra;/que fazer as coisas bem/ importa mais que fazê-las [ii].

Asseguro-vos, meus filhos, que, quando um cristão realiza com amor a mais intranscendente das acções diárias, ela transborda da transcendência de Deus. Por isso vos tenho repetido, com insistente martelar, que a vocação cristã consiste em fazer poesia heróica da prosa de cada dia. Na linha do horizonte, meus filhos, parecem unir-se o céu e a terra. Mas não; onde se juntam deveras é nos vossos corações, quando viveis santamente a vida de cada dia...

Viver santamente a vida de cada dia, acabo de dizer-vos. E com estas palavras refiro-me a todo o programa da vossa vida cristã. Deixai-vos, pois, de sonhos, de falsos idealismos, de fantasias, daquilo a que costumo chamar mística do oxalá - oxalá não me tivesse casado; oxalá não tivesse esta profissão; oxalá tivesse mais saúde; oxalá fosse mais novo; oxalá fosse velho!... - e cingi-vos, pelo contrário, sobriamente, à realidade mais material e imediata, que é onde Nosso Senhor está: vede as minhas mãos e os meus pés, disse Jesus ressuscitado; sou Eu mesmo. Tocai-Me e vede que um espírito não tem carne e ossos como vedes que Eu tenho [iii].

São muitos os aspectos do ambiente secular em que vos moveis, que se iluminam a partir destas verdades. Pensai, por exemplo, na vossa actuação de cidadãos na vida civil. Um homem sabedor de que o mundo - e não só o templo - é o lugar do seu encontro com Cristo, ama esse mundo, procura adquirir uma boa preparação intelectual e profissional, vai formando - com plena liberdade - os seus próprios critérios sobre os problemas do meio em que vive; e toma, como consequência, as suas próprias decisões que, por serem decisões de um cristão, procedem também de uma reflexão pessoal que tenta humildemente captar a vontade de Deus nesses aspectos, pequenos e grandes, da vida.

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Mas esse cristão não se lembra nunca de pensar ou de dizer que desce do templo ao mundo para representar a Igreja, e que as suas soluções são as soluções católicas daqueles problemas. Isso não pode ser, meus filhos! Isso seria clericalismo, catolicismo oficial, ou como quiserdes chamar-lhe. De qualquer modo, seria violentar a natureza das coisas. Tendes de difundir por toda a parte uma verdadeira mentalidade laical, que há-de levar os cristãos a três consequências:

- a serem suficientemente honrados para arcarem com a sua responsabilidade pessoal;

- a serem suficientemente cristãos para respeitarem os seus irmãos na fé que proponham - em matérias discutíveis - soluções diversas das suas

- e a serem suficientemente católicos para não se servirem da Igreja, nossa Mãe, misturando-a com partidarismos humanos.

Vê-se claramente que, neste terreno como em todos, não poderíeis realizar o programa de viver santamente a vida diária se não gozásseis de toda a liberdade que vos é reconhecida - simultaneamente - pela Igreja e pela vossa dignidade de homens e de mulheres criados à imagem de Deus. A liberdade pessoal é essencial para a vida cristã. Mas não vos esqueçais, meus filhos, de que falo sempre de uma liberdade responsável.

Interpretai, portanto, as minhas palavras como o que são: um chamamento a exercerdes - diariamente!, não apenas em situações de emergência - os vossos direitos; e a cumprirdes nobremente as vossas obrigações como cidadãos - na vida política, na vida económica, na vida universitária, na vida profissional -, assumindo com coragem todas as consequências das vossas decisões, arcando com a independência pessoal que vos corresponde. E essa mentalidade laical cristã permitir-vos-á fugir de toda a intolerância, de todo o fanatismo. Di-lo-ei de um modo positivo: far-vos-á conviver em paz com todos os vossos concidadãos e fomentar também a convivência nos diversos sectores da vida social.

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Sei que não tenho necessidade de recordar o que ao longo de tantos anos venho repetindo. Esta doutrina de liberdade civil, de convivência e de compreensão é uma parte muito importante da mensagem que o Opus Dei difunde. Terei que voltar a afirmar que os homens e as mulheres que querem servir Jesus Cristo na Obra de Deus são simplesmente cidadãos iguais aos outros que se esforçam por viver com responsabilidade séria - até às últimas consequências - a sua vocação cristã?

Nada distingue os meus filhos dos seus concidadãos. Por outro lado, exceptuando a Fé, nada têm de comum com os membros das congregações religiosas. Amo os religiosos e venero e admiro as suas clausuras, os seus apostolados, o seu afastamento do mundo - o seu contemptus mundi -, que são outros sinais de santidade na Igreja. Mas Nosso Senhor não me deu vocação religiosa, e desejá-la para mim seria uma desordem. Nenhuma autoridade na terra poderá obrigar-me a ser religioso, como nenhuma autoridade pode forçar-me a contrair matrimónio. Sou sacerdote secular: sacerdote de Jesus Cristo, que ama apaixonadamente o mundo.

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Os que seguiram Jesus Cristo comigo, pobre pecador, são: uma percentagem de sacerdotes que exerciam antes uma profissão ou tinham uma ocupação laical; um grande número de sacerdotes seculares de muitas dioceses do mundo - que confirmam assim a obediência e amor aos seus Bispos respectivos, e a eficácia do seu trabalho diocesano, com os braços sempre abertos em cruz para que todas as almas caibam nos seus corações, e que estão como eu, em plena rua, no mundo, e o amam; e a grande multidão, formada por homens e mulheres de diversas nações, de diversas línguas, de diversas raças, que vivem do seu trabalho profissional, casados na sua maior parte, solteiros muitos outros, que participam com os seus concidadãos na grave tarefa de tornar mais humana e mais justa a sociedade temporal, na nobre lide das ocupações diárias, com responsabilidade pessoal - repito -, alcançando e sofrendo, ombro a ombro com os outros homens, êxitos e fracassos, procurando cumprir os seus deveres e exercer os seus direitos sociais e cívicos. E tudo isto, com naturalidade, como qualquer cristão consciente, sem mentalidade de selectos, fundidos na massa dos seus colegas, enquanto procuram detectar a luz divina que reverbera nas realidades mais vulgares.

Também as obras promovidas pelo Opus Dei, como associação, têm essas características eminentemente seculares: não são obras eclesiásticas. Não gozam de nenhuma representação oficial da Hierarquia da Igreja. São obras de promoção humana, cultural, social, realizadas por cidadãos que procuram iluminá-las com a luz do Evangelho e aquecê-las com o amor de Cristo. Ficareis esclarecidos com um dado: o Opus Dei não tem nem terá jamais, por exemplo, a missão de dirigir Seminários diocesanos, onde os Bispos, instituídos pelo Espírito Santo [iv], preparam os seus futuros sacerdotes.

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O Opus Dei fomenta, pelo contrário, centros de formação operária e de formação agrícola, de ensino básico, secundário e universitário, e tantas outras e tão variadas actividades em todo o mundo, porque os seus anseios apostólicos - escrevi há muitos anos - são um mar sem limites.

Mas, por que me hei-de alongar nesta matéria, se a vossa própria presença é mais eloquente do que um prolongado discurso? Vós, Amigos da Universidade de Navarra, sois parte de um povo que sabe estar comprometido no progresso da sociedade a que pertence. O vosso alento cordial, a vossa oração, o vosso sacrifício e a vossa contribuição material não seguem os caminhos de um confessionalismo católico; ao prestardes a vossa cooperação, sois o perfeito testemunho de uma recta consciência civil, preocupada pelo bem comum temporal; testemunhais que uma Universidade pode nascer das energias do povo e ser sustentada pelo povo.

Quero agradecer uma vez mais nesta ocasião, a colaboração que prestam à nossa Universidade a minha nobilíssima cidade de Pamplona, a grande e forte região navarra; os Amigos procedentes de toda a geografia espanhola e - com particular emoção o digo - os não espanhóis e até os não católicos e não cristãos que compreenderam, e assim o demonstram com factos, a intenção e o espírito deste empreendimento.

A todos eles se deve que esta Universidade seja um foco, cada vez mais vivo, de liberdade cívica, de preparação intelectual, de emulação profissional, e um estímulo para o ensino universitário. O vosso generoso sacrifício serve de base a um trabalho universal que procura o incremento das ciências humanas, a promoção social, a pedagogia da fé.

O que acabo de dizer foi visto com clareza pelo povo navarro, que também reconhece na sua Universidade um factor de promoção económica para a região e, especialmente, de promoção social, que permitiu a tantos dos seus filhos o acesso às profissões intelectuais que, de outro modo, seria difícil e, em certos casos, impossível. A compreensão do papel que a Universidade havia de ter na sua vida motivou certamente o apoio que Navarra lhe dispensou desde o começo; apoio que, sem dúvida, será cada vez mais amplo e entusiasta.

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Continuo a manter a esperança - porque corresponde a um critério justo e à realidade vigente em tantos países - de que chegará o momento em que o Estado espanhol contribuirá, por seu lado, para aliviar os encargos de um empreendimento que não tem em vista nenhum proveito privado e que, pelo contrário, totalmente consagrado ao serviço da sociedade, procura trabalhar com eficácia para a prosperidade presente e futura da nação.

E agora, meus filhos e minhas filhas, permiti que me detenha noutro aspecto - particularmente querido - da vida comum. Refiro-me ao amor humano, ao amor casto entre um homem e uma mulher, ao noivado, ao matrimónio. Devo dizer uma vez mais que esse amor humano santo não é algo de permitido, de tolerado, à margem das verdadeiras actividades do espírito, como poderiam insinuar os falsos espiritualismos a que antes aludia. Há quarenta anos que venho pregando exactamente o contrário, através da palavra e da escrita, e os que não compreendiam já o vão entendendo.

O amor que conduz ao matrimónio e à família pode ser também um caminho divino, vocacional, maravilhoso, meio para uma completa dedicação ao nosso Deus. Realizai as coisas com perfeição, tenho-vos recordado, ponde amor nas pequenas actividades da jornada, descobri - insisto - esse quê divino que se oculta nos pormenores: toda esta doutrina encontra um lugar especial no espaço vital em que o amor humano se enquadra.

Já o sabeis muito bem, professores, alunos e todos os que dedicais o vosso trabalho à Universidade de Navarra: pus os vossos amores sob a protecção de Santa Maria, Mãe do Amor Formoso. E aí tendes a ermida que construímos com devoção no campus universitário, para recolher as vossas orações e a oblação desse amor maravilhoso e limpo que Ela abençoa.

Não sabíeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que recebestes de Deus, e que não vos pertenceis? [I Cor 6, 19]. Quantas vezes, diante da imagem da Virgem Santa, da Mãe do Amor Formoso, respondereis com uma alegre afirmação à pergunta do Apóstolo: sabemos, sim, e queremos vivê-lo com a tua ajuda poderosa, ó Virgem Mãe de Deus!

A oração contemplativa surgirá em vós sempre que meditardes nesta realidade impressionante: uma coisa tão material como o meu corpo foi escolhida pelo Espírito Santo para estabelecer a Sua morada...; já não me pertenço...; o meu corpo e a minha alma - o meu ser inteiro - são de Deus... E essa oração será rica em resultados práticos, derivados da grande consequência que o próprio Apóstolo apresenta: glorificai a Deus no vosso corpo [v].

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Por outro lado, não podeis desconhecer que só entre os que compreendem e valorizam em toda a sua profundidade o que acabamos de considerar acerca do amor humano, pode surgir aquela outra compreensão inefável de que Jesus falou [vi], que é um puro dom de Deus e que conduz a entregar o corpo e a alma a Nosso Senhor, a oferecer-Lhe o coração indiviso, sem a mediação do amor terreno.

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Tenho de terminar, meus filhos. Disse-vos ao começar que a minha palavra gostaria de vos anunciar alguma coisa da grandeza e da misericórdia de Deus. Julgo tê-lo cumprido, ao falar-vos de viver santamente a vida corrente: porque uma vida santa no meio da realidade secular - sem ruído, com simplicidade, com veracidade - não será porventura hoje a mais consoladora manifestação das magnalia Dei [vii], dessas portentosas misericórdias que Deus sempre realizou, e não deixa de realizar para salvar o mundo?

Peço-vos agora com o salmista que vos unais à minha oração e ao meu louvor: magnificate Dominum mecum, et extollamus nomen eius simul [viii]; louvai comigo o Senhor e exaltemos todos juntos o Seu nome. Ou seja, meus filhos: vivamos de Fé.

Tomemos o escudo da Fé, o elmo da salvação e a espada do espírito que é a Palavra de Deus. Assim nos anima o Apóstolo S. Paulo na Epístola aos de Éfeso [ix] que há momentos se proclamava liturgicamente.

Fé, virtude de que os cristãos tanto necessitamos, especialmente neste ano da Fé promulgado pelo nosso amadíssimo Santo Padre o Papa Paulo VI, pois, faltando a Fé, falta o próprio fundamento da santificação da vida corrente.

Fé viva nestes momentos, porque nos aproximamos do mysterium fidei [x], da Sagrada Eucaristia; porque vamos participar nesta Páscoa do Senhor, que resume e realiza as misericórdias de Deus para com os homens.

Fé, meus filhos, para confessar que, dentro de instantes, sobre esta ara, se vai renovar a obra da nossa Redenção [xi]. Fé, para saborear o Credo e sentir, em torno deste altar e nesta Assembleia, a presença de Cristo que faz de nós cor unum et anima una [xii], um só coração e uma só alma; e nos converte em família, em Igreja una, santa, católica, apostólica e romana, que para nós é o mesmo que universal.

Fé, finalmente, filhas e filhos queridíssimos, para demonstrarmos ao mundo que tudo isto não são cerimónias e palavras, mas uma realidade divina, ao apresentarmos aos homens o testemunho de uma vida corrente santificada, em Nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo e de Santa Maria.





[i] Homilia pronunciada no campus da Universidade de Navarra, em 8 de Outubro de 1967.
[ii] A. MACHADO, Poesias Completas. CLXI - Proverbios y cantares XXIV, Espasa-Calpe, Madrid, 1940
[iii] Lc 24, 39
[iv] Ac 20, 28
[v] I Cor 6, 20
[vi] Cfr Mt 19, 11
[vii] Edes 18, 5
[viii] Ps. XXXIII, 4
[ix] Ef 6, 11 e ss
[x] I Tim 3, 9
[xi] Secreta do IX Domingo depois de Pentecostes
[xii] Act 4, 32

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