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18/06/2016

Leitura espiritual

Leitura Espiritual


INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO

"Creio em Deus" – Hoje

SEGUNDA PARTE

JESUS CRISTO

CAPÍTULO SEGUNDO

Desenvolvimento da Fé em Cristo nos Artigos Cristológicos do Símbolo

6."Donde há de vir para julgar os vivos e os mortos".

Rudolf Bultmann considera como liquidada para o homem moderno a ideia da volta do Senhor, na qualidade juiz no fim do mundo, equiparando-a com a descida aos infernos e a subida ao céu, como coisas míticas: qualquer pessoa está convencida de que o mundo avança do mesmo modo como progrediu durante quase dois mil anos após a pregação escatológica do Novo Testamento. Uma tal purificação do pensamento parece impor-se aqui, tanto mais, porque a mensagem bíblica neste ponto contém indiscutivelmente fortes elementos cosmológicos, isto é, avança no terreno que consideramos campo das ciências naturais. Certamente, na linguagem sobre o fim do mundo, o termo "mundo" não denota primeiramente a estrutura física do cosmos, mas o mundo dos homens, a história humana; portanto, o seu sentido imediato é que esta espécie de mundo – o mundo humano – há-de chegar ao fim determinado e concretizado por Deus. Contudo, não se pode negar que a Bíblia reveste esse acontecimento essencialmente antropológico de imagens cosmológicas (e em parte também políticas). Será difícil decidir até que ponto se trata de imagens e até onde elas se referem ao próprio objecto.

Seguramente é viável dizer algo a respeito, partindo do contexto mais vasto da cosmovisão da Bíblia. Ora, para a Bíblia cosmos e homem não representam duas grandezas completamente separáveis, como se o cosmos formasse, por exemplo, o cenário ocasional da existência humana, a qual poderia ser separada dele, desenvolvendo-se independente do mundo. Mundo e homem pertencem-se necessariamente, de modo a não se poder imaginar o homem sem o mundo e o mundo sem o homem. O primeiro é-nos evidente, sem mais; o segundo, após as lições de Teilhard de Chardin, também não deveria ser completamente incompreensível. Nessa perspectiva surgiria a tentação de afirmar que a mensagem bíblica do fim do mundo e do retorno do Senhor não é pura antropologia revestida de imagens cósmicas, nem que ela apresenta um aspecto cosmológico ao lado de outro antropológico, mas que, dentro da lógica interna da visão bíblica total, ela representa a coincidência de antropologia e cosmologia na cristologia definitiva e, exactamente ali, o fim do "mundo" que sempre continua polarizado para esta união como sua meta, devido à sua binário-una construção de cosmos e homem. Cosmos e homem que sempre pertenceram um ao outro, muito embora tantas vezes se encontrem em oposição, tornar-se-ão um, pela sua complexão no maior, no amor a envolver e ultrapassar o bios, como dissemos antes: com isto volta a ser claro o quanto se identificam o escatológico final e o avanço realizado na ressurreição de Jesus; torna-se evidente que o Novo Testamento tem razão ao apontar a ressurreição como o facto escatológico por excelência.

Para irmos adiante cumpre desenvolver um pouco mais claramente os nossos pensamentos. Acabamos de dizer que o cosmos não é apenas um espaço externo da história humana, nem uma imagem estática – uma espécie de vaso-continente onde se encontram diversos seres que, por si, poderiam perfeitamente estar em outro vaso qualquer. Positivamente, isto significa que o cosmos é movimento; que não apenas existe uma história nele; mas que ele mesmo é história. Não forma apenas o cenário da história humana, mas ele mesmo já é "história", antes dela e com ela. Em última análise, existe uma única história completa do mundo, a qual mantém um rumo geral e vai "adiante" com seus altos e baixos, nos progressos e regressos que a assinalem. Certamente, para quem apenas considerar uma parcela, mesmo que seja realmente grande, a história parecerá estática, sempre na mesma rotina. Não se descobre um rumo, mas o perene girar em torno do mesmo centro. Somente consegue percebê-lo quem começar a observar o conjunto. Ora, no seio do movimento cósmico,  o espírito, como antes o constatamos, não produto secundário dos azares da evolução, produto sem importância para o todo; antes, averiguamos a matéria e o seu desenvolvimento formam a pré-história do espírito.

A fé no retorno de Jesus Cristo e na consumação do mundo nele poderia esclarecer-se como convicção de que a nossa história avança rumo a um ponto ómega, no qual se revelará com claridade definitiva e meridiana que aquele elemento estável, a dar-nos a impressão de ser como que o solo da realidade a nos suster, não é a simples matéria inconsciente, mas que o fundamento propriamente dito e sólido é a razão: ela conserva o ser coeso, confere-lhe a realidade; ela é a realidade – não é de baixo, mas do alto que o ser recebe a sua existência. A existência deste processo da complexidade do ser material mediante o espírito e do espírito mediante a síntese numa nova forma de união pode ser constatada, em certo sentido, mesmo hoje em dia, na reformulação, quase recriadora, do mundo, tal como se vem realizando graças à técnica. Na manipulação do real já começam a esvair-se os limites entre natureza e técnica, que já não é mais possível conservar a ambos distintamente separados entre si, sem confusão. Certamente, a analogia é duvidosa em mais de um ponto de vista. Não obstante, tais processos preconizam uma figura do mundo, na qual espírito e natureza não se acham simplesmente um ao lado do outro, mas o espírito, em nova complexidade, absorve em si o puramente natural, criando assim um mundo novo, conotando ao mesmo tempo o desaparecimento do antigo. Ora, o fim do mundo em que o cristão acredita é completamente diferente da vitória total da técnica. Mas, a fusão de natureza e espírito, concretizada na técnica, possibilita-nos imaginar de modo novo em que direcção a realidade da fé no retorno de Cristo há de ser pensada: como fé na definitiva união do real, a partir do espírito.

Agora podemos prosseguir mais um pouco. Dissemos que natureza e espírito formam uma única história a avançar continuamente de modo tal que o espírito se revele sempre mais do que aquilo que envolve tudo, desembocando finalmente antropologia e cosmologia numa única torrente. Mas, afirmar a crescente complexidade do mundo pelo espírito conota necessariamente uma união sua em algum centro pessoal, porquanto o espírito não é algo indeterminado, mas, onde ele existe em sua peculiaridade, existe como indivíduo, como pessoa. Existe algo assim como "espírito objectivo", espírito investido em máquinas, em obras multiformes; mas em tudo isto o espírito não se encontra na sua forma original: "espírito objectivo" sempre deriva de espírito subjectivo, apontando para uma pessoa, que é a única e exclusiva modalidade existencial do espírito. Por conseguinte, a afirmação de que o mundo avança rumo a uma complexidade pelo espírito, inclui a afirmação de que o cosmos se dirige na direcção de uma união pessoal.

Ora, isto torna a comprovar a infinita primazia do indivíduo sobre a colectividade. Este princípio anteriormente analisado torna a revelar-se agora em toda a sua amplitude. O mundo movimenta-se na direcção da unidade na pessoa. O conjunto recebe o seu sentido do individual e não o inverso. Essa evidência justifica novamente o aparente positivismo da Cristologia, ou seja, a convicção, tão escandalosa para os homens de todos os tempos, que considera um único como centro da história e do todo. Este "positivismo" volta a mostrar-se aqui na sua necessidade interna: se é verdade que no desfecho se encontra o triunfo do espírito, isto é, da verdade, liberdade e amor, então não é uma força qualquer que consegue a vitória final; no ponto final há-de encontrar-se um rosto. Então o ómega do mundo é um "tu", uma pessoa, um indivíduo. Então a complexidade total, a envolver e unir tudo de maneira infinita, é, ao mesmo tempo, negação de qualquer colectivismo, de qualquer fanatismo da ideia pura, inclusive de uma assim chamada ideia do cristianismo. O homem, a pessoa, sempre conservou a sua primazia sobre a ideia.

Aqui inclui-se outra e muito importante consequência. Se a vitória da ultra-complexidade final está baseada no espírito e na liberdade, não se trata absolutamente de um caudal cósmico neutro, mas de um princípio que inclui responsabilidade. Não acontece automaticamente, como qualquer processo físico, mas baseando-se em decisões. Por esta razão, o retorno do Senhor é não somente salvação, não apenas o ómega a recolocar tudo em seu lugar, mas também julgamento. Aliás, nesta altura, estamos em condições até de definir o sentido do discurso sobre juízo final. Ele diz-nos que o estágio final do mundo não é resultado de um desenvolvimento natural, mas da responsabilidade baseada na liberdade. Do seio destas conexões também se há-de procurar compreender porque o Novo Testamento, apesar da sua mensagem da graça, insiste em que no fim os homens serão julgados "pelas suas obras", não havendo possibilidade para ninguém de escapar a esta prestação de contas sobre a própria vida. Existe uma liberdade que não é eliminada pela graça, mas, muito pelo contrário, é por ela levada à sua plenitude: o destino definitivo do homem não lhe será imposto fora de sua decisão vital. O que, aliás, também é necessário acentuar como limite contra um falso dogmatismo e uma segurança cristã errada quanto à vida. Só uma tal averiguação preserva a igualdade dos homens, mantendo a identidade da sua responsabilidade. Desde a época patrística foi e continua sendo esta uma das tarefas decisivas da pregação cristã: trazer à consciência essa identidade da responsabilidade, contrapondo-a à falsa confiança no "dizer: Senhor, Senhor".

Nesse contexto não seria inútil aduzir as considerações do grande teólogo judeu Leo Baeck, com as quais o cristão não concordará, mas cuja seriedade não o deixará indiferente. Baeck lembra que a razão peculiar da existência de Israel se transformou em consciência do serviço em prol do futuro da humanidade. "Exige-se uma vocação especial, não se anuncia, porém, nenhuma exclusividade da salvação. O judaísmo escapou à tentação de circunscrever-se à estreiteza religiosa do conceito de uma Igreja, fonte única da salvação. Onde não é a fé, mas a acção que conduz a Deus, onde a comunidade oferece aos seus filhos, como sinal espiritual de pertença, o ideal e a tarefa, ali o facto de estar na aliança da fé ainda não pode garantir a salvação da alma". Baeck mostra, a seguir, de que maneira esse universalismo da salvação baseada na obra, se cristalizou sempre mais no judaísmo, para finalmente desabrochar totalmente no "clássico": "também os piedosos que não são israelitas participam da salvação eterna". Ninguém será capaz de ler sem consternação o que Baeck diz a seguir, a saber, que bastará comparar esta frase "com a descrição que Dante apresenta do lugar da condenação, local do destino até dos melhores de entre os pagãos, com a inflacção de seus quadros de horror, correspondentes à mentalidade eclesiástica dos séculos antes e depois, para sentir o contraste em toda a sua agudeza".

Certamente muita coisa desta citação pode ser contestada, por não exacta; contudo vejo nela uma verdade muito séria. A seu modo, Baeck pode esclarecer em que consiste a irremissibilidade do artigo sobre o juízo final de todos os homens "de acordo com as suas obras". Não é tarefa nossa analisar em detalhe como essa afirmação pode impor-se com todo o seu peso, ao lado da doutrina da graça. Talvez no fim de contas não se consiga fugir a um paradoxo, cuja lógica só poderá abrir-se completamente à experiência de uma vida de fé. Quem se confiar à fé, tornar-se-á consciente de que existem ambas as coisas: a radicalidade da graça a libertar o homem impotente e, não menos, a seriedade perene da responsabilidade que desafia o homem dia e noite. As duas coisas reunidas significam que o cristão dispõe, por um lado, da tranquilidade libertadora e desinibidora daquele que vive da super-abundância da divina justiça e se chama Jesus Cristo. Existe uma serenidade que conta com a certeza: em última análise nada posso destruir do que ele construiu. Em si o homem carrega a terrível certeza de que o seu poder destruidor é infinitamente maior do que o seu poderio construtivo. Mas sabe igualmente que, em Cristo, o poder de reconstruir se revelou infinitamente mais potente. Daí decorre uma profunda liberdade, um saber sobre o amor não arrependido de Deus, que, atravessando todas as confusões, continua a querer-nos bem. Torna-se possível fazer, sem medo, a própria obra que perdeu o seu aspecto pavoroso, por ter perdido o seu poder destruidor: o resultado do mundo não depende de nós, mas está nas mãos de Deus. Mas, ao mesmo tempo, o cristão sabe não ter sido colocado dentro de uma coisa qualquer, sabe que a sua actividade não éum brinquedo que Deus lhe deixa nas mãos, sem o tomar a sério. Sabe que deve responder; que, como administrador, deve prestar contas do que lhe foi confiado. Responsabilidade só existe onde houver um que a exige e examina. O artigo sobre o Juízo Final mostra-nos ante os olhos de modo inequívoco este exame final da nossa vida. Nada e ninguém nos confere credenciais para minimizar a imensa seriedade que paira sobre um acontecimento assim, que revela a nossa vida como sendo caso sério, que lhe confere assim a sua dignidade.

"Para julgar os vivos e os mortos", o que, certamente, significa que ninguém, senão ele tem o direito último de julgar. Com isto está dito que a injustiça do mundo não retém a última palavra, também não se afirma que ela será eliminada indiferentemente por meio de um acto geral de graça; existe, antes, uma instância última de apelação que defende o direito para poder realizar o amor. Um amor que destruísse o direito criaria a injustiça, não passando assim de caricatura de amor. O verdadeiro amor conota excesso de direito, excesso sobre o justo, nunca porém destruição da justiça, que há-de ser e permanecer a forma básica do amor.

Naturalmente devemos defender-nos também contra outro extremo. Não se pode impugnar que o artigo sobre o juízo final se desenvolveu, de tempos a tempos, numa forma na qual, praticamente, deveria conduzir à destruição da fé na redenção, e da promessa da graça. Aduz-se, à guisa de exemplo, a profunda antítese entre Maran atha e dies irae. O cristianismo primitivo, na sua invocação deprecatória: "Senhor nosso, vem! Maran atha" interpretou o retorno de Jesus como um acontecimento cheio de esperança e de alegria, suspirando por ele como o instante da grande realização. Para o cristão da Idade Média, ao contrário, aquele instante surgia como o terrível "dia da ira" (dies irae) diante do qual o homem gostaria de se desfazer em dor e terror, e para qual olha com receio e com horror. O retorno do Cristo é simplesmente julgamento É o dia da grande prestação de contas a ameaçar a cada um. Em semelhante perspectiva foram esquecidos elementos decisivos: o Cristianismo ficou reduzido praticamente ao moralismo, privado de qualquer sombra de esperança e de alegria, onde, porém, está a sua expressão vital mais autêntica.

Talvez se deva dizer que o primeiro impulso para essa evolução falha, que percebe apenas o risco da responsabilidade e não a liberdade do amor, se encontra no nosso símbolo, onde, ao menos para quem examinar o texto no seu sentido literal, o retorno de Cristo se apresenta totalmente centrado e reduzido à ideia do julgamento: "donde há de vir para julgar os vivos e os mortos". Sem dúvida, nos círculos familiarizados com o símbolo, a herança cristã primitiva ainda estava bem viva; sentia-se ainda a palavra sobre o juízo em ligação natural com a mensagem da graça: o facto de ser Jesus o juiz por si mesmo mergulhava o julgamento em uma atmosfera de esperança. Permito-me aduzir um trecho da chamada Segunda Carta de Clemente em que esta mentalidade se revela de maneira muito clara: "Irmãos, devemos pensar sobre Jesus Cristo como sobre Deus, como aquele que julga vivos e mortos. Não devemos pensar na nossa salvação de maneira mesquinha, pois pensando nela assim, também estaremos amesquinhando a nossa esperança".

Torna-se visível agora onde está exactamente o acento do nosso texto: não é meramente – como seria de esperar – Deus, o infinito, o desconhecido, o eterno, quem julga. Antes, Deus confiou o julgamento a um que, como homem, é irmão nosso. Não é um estranho que nos julgará, mas aquele ao qual conhecemos pela fé. O juiz virá ao nosso encontro, não como um inteiramente outro, mas como um dos nossos, que conheceu e sofreu por dentro o "ser-homem".

E assim, automaticamente, paira sobre o juízo a aurora da esperança; não é apenas dia de ira, mas dia do retorno de Nosso Senhor. Acorre a grandiosa visão de Cristo com que principia o Apocalipse (1,19): o vidente tomba como morto diante do vulto cheio de medonho poder. Mas o Senhor põe a mão sobre ele e dirige-lhe a palavra que, outrora, lhe tinha dito nos dias em que atravessavam juntos o lago de Genezaré em meio à tempestade: "Não temas, sou eu" (1,17). O Senhor de todo o poder é aquele Jesus, de quem o vidente se havia tornado outrora companheiro de viagem pela fé. O artigo sobre o juízo final transfere precisamente este pensamento para o nosso encontro com o juiz do mundo. Naquele dia de medo, o cristão constatará, tomado de sagrada administração, que aquele "ao qual foi dado todo o poder no céu e na terra" (Mt 28,18) fora seu companheiro de jornada nos dias do peregrinar terreno, pela fé, e é como se ele, já agora, lhe pusesse as mãos sobre a cabeça por meio das palavras do símbolo e dissesse: "Não tenhas receio; sou eu". Talvez não se possa responder mais belamente ao problema do entrelaçamento de juízo e graça, do que mediante a ideia oculta por trás do nosso Credo.

(cont)

joseph ratzinger, Tübingen, verão de 1967.


(Revisão da versão portuguesa por ama)

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