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09/06/2016

Leitura espiritual


INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO

"Creio em Deus" – Hoje

SEGUNDA PARTE

JESUS CRISTO

CAPÍTULO PRIMEIRO

"Creio em Jesus Cristo seu Filho Unigénito, Nosso Senhor".

IV. Caminhos da Cristologia

3. Cristo, "o último Homem”.
Digressão: Estruturas do Crístico

1.   O princípio do "para".

O "para" deve ser encarado como princípio decisivo da existência humana, tornando-se o local exato da manifestação do divino no mundo. Este facto tem ainda outra conseqüência, a saber: o ser-todo-outro de Deus, que o homem já é capaz de descobrir, ou ao menos de suspeitar por si, torna-se um completo ser-outro, uma total incognoscibilidade de Deus. Significa que o ocultamento de Deus, com que o homem conta, assume a forma escandalosa de sua palpabilidade e de sua visibilidade como Deus crucificado. Expresso de outro modo: tem como consequência que Deus, o primeiro, o "alfa" da criação, surge como o "ómega", como a última letra do alfabecto da criação, como a mínima criatura na criação. Neste contexto, Lutero fala do ocultamento de Deus sub contrario, isto é, no que parece ser o contrário de Deus. Destaca assim a peculiaridade da forma cristã da teologia negativa, determinada a partir da cruz, frente à teologia negativa do pensamento filosófico. Já a Filosofia, a reflexão própria do homem sobre Deus, conduz, à convicção de ser Deus o todo outro, o simplesmente oculto e incomparável. "Curtas como as vistas das aves noturnas são também as nossas vistas diante do que é o mais luminoso em si", já afirmava Aristóteles. De facto, à luz da fé em Jesus Cristo, responderemos: Deus é o todo diferente, invisível, incognoscível. Mas, quando ele surgiu em cena realmente assim todo diferente, tão invisível em sua divindade, tão incognoscível, não se tratava daquela espécie de ser-outro e de estranheza prevista por nós, e ele, de facto, ficou desconhecido. Contudo – não deveria precisamente esta circunstância revelá-lo como o realmente todo outro, que põe abaixo todos os nossos cálculos de ser-outro, revelando-se assim como o unicamente autêntico todo diferente?

De acordo com isto, através da Bíblia inteira se pode encontrar continuamente a ideia da dupla maneira de Deus aparecer no mundo. Deus comprova-se, primeiramente e sem dúvida, na força cósmica. A grandeza, o Logos do mundo que ultrapassa, envolvendo-a, porém, toda a nossa imaginacção, aponta para aquele cujo pensamento este mundo é; para aquele, diante do qual os povos são "como gotas à beira do balde", "como pó na balança" (Is 40,15). Existe realmente o lembrete do universo sobre o seu criador. Por mais que nos obstinemos contra os argumentos da existência de Deus, por mais que a reflexão filosófica objecte contra seus diversos passos, e com muita razão, é um facto irretorquível que o proto-pensamento criativo e a sua força criadora transluzem através do mundo e da sua estrutura ideal.

Mas aí temos apenas um modo de Deus se manifestar no mundo. O outro sinal, que Deus estabeleceu para si, e que o mostra mais verdadeiro no que lhe é mais peculiar, ocultando-o tanto mais, é o sinal do vil, que, medido sob o ponto de vista cósmico-quantitativo, é totalmente insignificante, quase um puro nada. Aqui deveríamos citar a sequência: terra – Israel – Nazaré – cruz – Igreja, em que Deus aparenta desaparecer mais e mais no pequeno, revelando-se exactamente assim como ele mesmo. Eis, primeiro, a terra, um nada no cosmos, destinada a ser o ponto de actividade divina no universo. Eis Israel, um nada entre as potências, destinado a ser o ponto do seu aparecimento na terra. Eis Nazaré, outra vez um nada dentro de Israel, destinada a tornar-se o ponto de sua vinda definitiva. Eis, enfim, a cruz, da qual está pendente alguém – uma existência fracassada, cruz destinada a ser o ponto onde Deus pode ser palpado. Finalmente, eis a Igreja, a criação problemática da nossa história, pretendendo ser o lugar duradouro da sua revelação. Sabemos hoje, e até demais, quão pouco, mesmo na Igreja, continua suprimida a ocultação da proximidade divina. Exactamente onde, no luxo da renascença, a Igreja julgava poder tornar-se imediata "porta do céu" e "casa de Deus" voltou ela a ser, e quase mais do que nunca, o incógnito de Deus, que atrás dela quase não se podia mais encontrar. Desse modo, o que é insignificante cósmica e mundialmente representa o sinal exacto de Deus em que se anuncia o todo outro que, diante das nossas expectativas, volta a ser o completamente incompreensível. O nada cósmico é o verdadeiro tudo, porque o "para" é o específico de Deus...
4. A lei do supérfluo.

Nas declarações éticas do Novo Testamento existe uma tensão aparentemente invencível: entre graça e ética, entre perdão total e não menos completa reivindicação, entre completo ser-agraciado do homem que recebe tudo gratuitamente, por ser incapaz de produzir alguma coisa, e a não menos radical obrigacção de doar-se até ao inaudito desafio: "Sede, portanto, perfeitos, como o vosso Pai no céu é perfeito" (Mt 5,48). Nesta fascinante polaridade, se procurarmos um termo médio de ligação, depararemos continuamente, sobretudo na teologia paulina, mas também nos Sinópticos, com o termo "supérfluo" (perisseuma), no qual se encontra, entrelaçando-se e interpenetrando-se o que se afirma da graça e do desejo.

Para visualizar este princípio, destaquemos aquele tópico central do Sermão da Montanha, que ali se acha como se fora a epígrafe e a síntese das seis grandes antíteses ("aos antigos foi dito... Eu porém vos digo..."), mediante o qual Jesus completa a nova redacção da segunda tábua do Decálogo: O texto reza: "Porque, eu vos digo, se a vossa virtude não sobrepujar a dos escribas e dos fariseus, não entrareis no reino dos céus" (Mt 5,20). Jesus declara primeiramente toda a justiça humana como insuficiente. Quem poderia gabar-se honestamente de ter assimilado realmente e sem reservas, até ao âmago da própria alma, o sentido de cada exigência, tendo descido inteiramente até suas derradeiras raízes e, muito menos ainda, de ter produzido o supérfluo? Certamente, na Igreja há um "estado de perfeição", no qual as pessoas se comprometem ao supérfluo, a passar além do que é objecto de uma ordem. Mas, os que integram tal estado são os últimos a negarem que se encontram sempre no início e se sentem cheios de falhas. O "estado de perfeição", é na verdade, a forma mais dramática de representar a perene imperfeição do homem.
Quem não se contentar com esta indicacção, leia os seguintes versículos do Sermão da Montanha (5,21-48) e sentirá exposto a um exame de consciência desalentador. Neste texto torna-se claro o que significa levar a sério as determinações aparentemente tão simples da segunda tábua do Decálogo, das quais três são ali desenvolvidas: "Não matarás. Não cometerás adultério. Não jurarás falso". À primeira vista, parece muito fácil sentir-se justo frente a estas exigências. Afinal, não matamos a ninguém, não cometemos, adultério, não sentimos o peso de perjúrio algum sobre a consciência. Mas Jesus lança uma luz forte sobre as profundezas destes postulados; e então revela-se como o homem participa daqueles crimes, com sua cólera, a sua vontade de não perdoar, a sua inveja e cobiça. Torna-se claro o quanto o homem, com a sua aparente justiça, está emaranhado no que se chama a injustiça do mundo. Lendo com seriedade as palavras do Sermão da Montanha, dá-se o mesmo que se acontece com alguém que passa da apologética de um partido para a realidade. O belo preto-e-branco em que se costuma dividir os homens, transforma-se no pardo de um lusco-fusco geral. Torna-se evidente não existir entre os homens o preto-e-branco; apesar de todas as gradações distribuídas em vasta escala, encontram-se todos de algum modo numa luz indefinível. Usando outra comparação, poderíamos dizer: Reconhecendo ser possível identificar, no todo, em um plano "macroscópico", as nuances morais dos homens, uma consideração quase microscópica, micro-moral oferece, também aqui, um quadro diferenciado no qual as dessemelhanças começam a tornar-se problemáticas; em todo caso, não se pode mais falar de uma justiça que, além do necessário, apresenta o supérfluo.

Em se tratando do homem, portanto, ninguém estaria em condições de entrar no reino dos céus, isto é, na região da justiça real e plena. O reino dos céus estaria condenado a ser pura utopia. De facto, deve continuar pura utopia, enquanto depender exclusivamente da boa vontade do homem. Quantas vezes não se ouve dizer: bastaria um pouco de boa vontade para que tudo no mundo fosse belo e bom. É verdade: um pouco de boa vontade bastaria, mas a tragédia humana consiste precisamente no facto de faltar ao homem a indispensável força para criar aquele pouco de boa vontade. Neste caso, Camus teria razão, vendo o símbolo da humanidade em Sísifo a tentar incessantemente levar a pedra ao alto, condenado a deixá-la rolar sempre de novo morro abaixo? No que toca à humana capacidade, a Bíblia mostra-se tão sóbria como Camus, sem, contudo, se deixar envolver pelo cepticismo. Para ela, o limite da justiça humana, da humana capacidade em geral, é expressão de o homem estar à mercê do inquestionável dom da graça, que se lhe oferece sem medida, abrindo-o ao mesmo tempo, e sem o qual ele permaneceria fechado e injusto apesar de toda a sua "justiça". Só o homem que aceita o dom pode encontrar o caminho para si. Assim a percepção da justiça humana torna-se, simultaneamente, indicação da justiça de Deus, cuja superabundância se chama Jesus Cristo. Ele é a justiça de Deus que ultrapassa de muito o necessário, justiça que não calcula, mas que é realmente superabundante, que representa o "apesar de" do grande amor com que ele sobrepuja o fracasso do homem.

Apesar disto, haveria um mal entendido, se se quisesse deduzir daí uma desvalorização do homem, afirmando-se que, em tal caso, tudo daria na mesma e qualquer procura de justiça e bondade diante de Deus seria uma coisa sem sentido. Muito pelo contrário. Apesar de tudo, e precisamente por causa do que se disse, fica de pé o desafio de possuir a justiça em superabundância, já que não se pode realizar a justiça inteira. Mas, que quer isto dizer? Não há aí um contra-senso? Ora bem, isto quer dizer que não é cristão quem sempre está a calcular quanto lhe compete fazer, quanto é exactamente o bastante para apresentar-se como alguém revestido da veste nupcial, com a ajuda, quiçá, de alguns truques casuísticos. Nem é cristão, mas fariseu, quem se põe a calcular, onde termina a obrigação e onde se pode conseguir méritos excedentes, mediante um opus supererogatorium. Ser cristão não significa fornecer determinada quota obrigatória, e, quiçá, a título de perfeição maior, até ultrapassar o limite obrigatório. Cristão é quem sabe que, em qualquer hipótese, vive de dádiva; que, por conseguinte, qualquer justiça só poderá consistir em também ser doador, semelhante ao mendigo que continua a distribuir generosamente, grato pelo que recebeu. Não passa de injusto quem for justo apenas, o calculista que acredita ser capaz de conseguir para si a veste branca e nela realizar-se completamente. Justiça humana só se realizará na renúncia às suas pretensões, e no entregar-se à generosidade face ao homem e a Deus. Trata-se da justiça do "perdoai, como nós perdoamos" – súplica que se revela como a fórmula clássica da justiça humana cristãmente concebida: consiste em passar adiante, já que cada qual vive essencialmente do perdão recebido.


joseph ratzinger, Tübingen, verão de 1967.

(Revisão da versão portuguesa por ama)



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