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12/04/2016

C


INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO

"Creio em Deus" – Hoje

SEGUNDA PARTE

JESUS CRISTO

CAPÍTULO SEGUNDO

Desenvolvimento da Fé em Cristo nos Artigos Cristológicos do Símbolo

2. Padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado.

a)   Justiça e graça.

Qual é propriamente a posição que a cruz ocupa no contexto da fé em Jesus enquanto o Cristo? Eis a questão com que este artigo do Credo nos torna a confrontar. Nas considerações anteriores já foram reunidos os elementos essenciais para uma resposta, bastando-nos agora revocá-los. Nesta questão, a mentalidade cristã está condicionada por uma ideia bastante grosseira da teologia da satisfação de Anselmo de Cantuária, cujas linhas fundamentais foram objecto de análise noutro contexto. Para muitos cristãos, sobretudo para os que conhecem a fé assaz superficialmente, a cruz parece que deva ser compreendida dentro de um mecanismo do direito lesado e reabilitado. Seria a forma com que a justiça divina infinitamente ofendida se consideraria reabilitada por meio de um sacrifício infinito. Tem-se a impressão de se tratar de uma igualação exacta entre dever e haver; ao mesmo tempo perdura a impressão de uma tal igualdade se basear sobre uma ficção. Entrega-se, secretamente, com a esquerda, o que naturalmente se torna a receber com a direita. Deste modo fica envolvida por uma luz duplamente sinistra a "infinita satisfação" da qual Deus parece fazer questão. Observando certos textos de devocionários, não se pode escapar à ideia de que a fé cristã na cruz vê um Deus cuja justiça implacável exige uma vítima humana, o holocausto do seu próprio Filho. E recuamos horrorizados diante de uma justiça, cuja ira tenebrosa torna incrível a mensagem do amor.

Tão espalhada quanto falsa é esta ideia. Na Bíblia a cruz não surge como um episódio no mecanismo do direito ofendido, mas, muito pelo contrário, como expressão do radicalismo do amor que se doa totalmente, como o episódio no qual alguém é aquilo que faz e faz o que é; como expressão de uma vida que é completamente ser-para os outros. Para quem observar mais atentamente, a teologia da cruz da S. Escritura exprime verdadeiramente uma revolução em confronto com as ideias de reparação e salvação da história religiosa extra-cristã. Naturalmente não se pode negar que, na consciência cristã posterior, essa revolução foi largamente neutralizada e só poucas vezes foi reconhecida em toda a sua plenitude. Nas religiões do mundo, reparação denota geralmente a restauração do destruído relacionamento com Deus mediante acções dos homens. Quase todas as religiões giram em torno do problema da expiação. Elas nascem da consciência do homem quanto à sua culpa para com Deus e denotam a tentativa de sufocar a consciência da culpa, de vencer a culpa por meio de acções oferecidas a Deus. A obra reparadora com que os homens querem apaziguar a divindade e torná-la propícia, ocupa o centro da história das religiões.

No Novo Testamento a questão quase parece o oposto. Não é o homem que se dirige a Deus trazendo-lhe um dom propiciatório; é Deus que vem ao encontro do homem para lhe dar. Com a iniciativa do seu poder de amor Deus restaura o direito abalado, transformando em justo o homem pecador, tornando vivo o que fora morto, graças à sua misericórdia criadora. A sua justiça é graça; é justiça actuante que endireita o homem vergado, isto é, torna-o justo. Estamos na encruzilhada que o cristianismo traçou na história das religiões. O Novo Testamento não afirma que os homens aplacam a Deus, coisa que, aliás, deveríamos esperar, já que foram eles os que erraram e não Deus. O Novo Testamento diz que "Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o mundo" (2 Cor 5,19). Eis algo realmente inaudito, novo – o ponto de partida da existência cristã e o centro da teologia da cruz: Deus não espera que os culpados se apresentem e se reconciliem; vai-lhes ao encontro e reconcilia-os. Revela-se aí a verdadeira direcção da Encarnação e da Cruz.

De acordo com isto, a Cruz aparece no Novo Testamento primariamente como um movimento de cima para baixo. Não é a obra expiatória oferecida pela humanidade à divindade ofendida, mas manifestação daquele insano amor de Deus que se esbanja, lançando-se na humilhação com o fito de salvar o homem; é asua aproximação de nós, não vice-versa. Com esta volta na ideia da expiação, ou seja, no eixo religioso em geral, o culto cristão e a existência inteira recebem novo rumo. Adoração realiza-se primeiro mediante a agradecida aceitação da acção salvadora de Deus. Por isso é com razão que denominamos Eucaristia, acção de graças, a forma essencial do culto cristão. Nele não se apresentam a Deus realizações humanas; consiste, antes, na circunstância de o homem se deixar presentear; não glorificamos a Deus oferecendo-lhe do que supostamente é nosso – como se já lhe não pertencesse desde sempre! – mas aceitando o que é dele, reconhecendo-o, assim, como Senhor único. Adoramo-lo fazendo cair a ficção de um domínio com que poderíamos apresentar-nos diante dele como sócios independentes, quando na realidade nele somente e por ele é que estamos em condições de existir. O oferecimento cristão não consiste em dar o que Deus não teria sem nós, mas em tornar-nos totalmente receptivos, deixando-nos levar completamente por ele. Deixar Deus agir em nós – eis o sacrifício cristão.

b)   A cruz como adoração e sacrifício.

Entretanto ainda não foi dito tudo. Lendo o Novo Testamento do começo ao fim não se pode abafar a pergunta: Não estaria ele descrevendo a acção expiatória de Jesus como holocausto ao Pai, representando a cruz como sacrifício oferecido em obediência ao Pai por Cristo? Em uma série de textos, tem-se a impressão de um movimento ascendente da humanidade a Deus, de modo a parecer que está retomando tudo o que acabamos de refutar. De facto, não é possível apreender o saldo do Novo Testamento exclusivamente com a linha descendente. Mas, então, como harmonizar a relação das duas linhas? Será necessário abrir mão de uma, em benefício da outra? E, em tal caso, que norma nos autorizaria a isto? Claro que não poderíamos agir assim sem erigir a nossa opinião pessoal em parâmetro da fé.

Para poder avançar é mister alargar a pergunta, tentando lançar luz sobre o ponto de partida do sentido neotestamentário da cruz. Primeiramente cumpre lembrar que a cruz de Jesus assumiu, aos olhos dos discípulos, o aspecto de ponto final, de fracasso de sua empresa. Crentes de terem encontrado nele o rei que jamais poderia ser destronado, viram-se, repentinamente, transformados em companheiros de um condenado. Certamente, pela ressurreição, alcançaram a certeza de que Jesus era rei, mas deviam passar por uma longa aprendizagem até compreender para que servia a cruz. A S. Escritura, isto é, o Antigo Testamento fornecera-lhes o meio de compreendê-lo; mediante as suas imagens e conceitos, tentaram analisar o acontecimento. Por isso, também lançaram mão dos seus textos litúrgicos e das suas prescrições, convencidos de que tudo o que ali se dizia, se havia realizado em Jesus e até que, a partir dele, seria possível entender o sentido exacto daqueles textos. Deste modo, encontramos no Novo Testamento a cruz esclarecida, entre outros, também através dos conceitos do culto do Antigo Testamento.

A concretização mais coerente de tais tendências encontra-se na Carta aos Hebreus que traça um paralelo entre a morte de Jesus na cruz e rito e teologia da festa judaica da expiação, interpretando essa morte com a festa da expiação cósmica. Poderia resumir-se o seu pensamento mais ou menos assim: qualquer holocausto da humanidade, qualquer tentativa de aplacar a Deus mediante culto e rito, de que o mundo está cheio, deviam continuar sendo inócua obra humana, porque Deus não procura touros nem cabritos, nem o que quer que seja apresentado ritualmente. Podem-se oferecer a Deus hecatombes inteiras de animais; ele de nada precisa, pois tudo simplesmente lhe pertence, e ao Senhor do universo nada se lhe dá se queimam algo em sua honra. "Não tomarei o novilho da tua casa, nem os cabritos de teu rebanho; pois a mim pertence todo animal da floresta, as alimárias dos montes, aos milhares. Lembro-me de todas as aves do céu, e tenho ao meu alcance os animais do campo. Se tivesse fome, não o diria a ti, porque meu é o orbe e tudo o que ele encerra. Porventura como carne de touros ou bebo sangue de cabritos? Oferece a Deus sacrifício de louvor, e cumpre os votos que fizeste ao Altíssimo", reza uma palavra de Deus no Antigo Testamento (Sl 50 [49], 9-14). O autor da Carta aos Hebreus situa-se na linha espiritual deste texto e de outros semelhantes. Acentua a inutilidade do esforço ritual de modo mais veemente ainda. Deus não busca touros nem bodes, mas os homens; só o incondicional "sim" do homem a Deus poderia ser a autêntica adoração. Tudo pertence a Deus, enquanto que ao homem foi concedida a liberdade do "sim" e do "não", do amor e da recusa; o livre "sim" do amor é o único que Deus deve esperar – a adoração, e o único holocausto a ter sentido. Contudo, o "sim" a Deus, pelo qual o homem se restitui a Deus, não pode ser nem substituído nem representado pelo sangue de touros ou bodes. "Que pode dar o homem em troca de sua alma?" lemos em Marcos (8,37). A resposta só pode ser: não existe nada com que o homem se possa contrapesar.
Ora, todo o culto pré-cristão baseia-se na ideia da substituição, da representação, tentando substituir o insubstituível; portanto, este culto forçosamente tinha de permanecer inútil. À luz da fé em Cristo, foi possível à Carta aos Hebreus ousar fazer um balancete arrasador da história das religiões, balancete que devia soar como crime horrendo perante um mundo repleto de holocaustos. Pode a carta avançar a afirmação do completo fracasso das religiões, por saber que em Cristo a ideia da substituição e da representação recebeu sentido novo. Cristo, sob o ponto de vista da lei mosaica um simples membro do laicato, não ocupando cargo algum no serviço do culto de Israel – diz o texto – foi o único sacerdote verdadeiro do mundo. A Sua morte, sob o ponto de vista histórico, um acontecimento puramente profano – a execução de um sentenciado por razões políticas – realmente representa a única liturgia da história universal; liturgia cósmica, na qual, não em um ambiente fechado do rito litúrgico do templo, mas em público, diante do mundo, Jesus penetrou, através do véu da morte, no verdadeiro templo, isto é, diante da face do mesmo Deus, não para oferecer coisas, sangue de animais ou o que quer que seja, mas a si próprio.

Atendamos para esta inversão fundamental que é o próprio cerne da Carta: o acontecimento profano, sob o enfoque terreno, é o verdadeiro culto da humanidade, porque o seu protagonista rompeu o espaço da representação litúrgica e restabeleceu a verdade: doou-se a si mesmo. Retirou das mãos dos homens os objectos de holocausto, pondo em seu lugar a personalidade sacrificada, o seu próprio "eu". Se, não obstante, o texto afirma que Jesus realizou a reconciliação pelo seu sangue (9,12), este sangue não deve ser encarado materialmente, como um veículo expiatório a ser medido quantitativamente, mas apenas como concretização do amor, do qual se afirma que alcança até os derradeiros limites (Jo 13,1). É expressão da totalidade da sua entrega e do seu serviço; resumo do facto de Jesus não sacrificar nada mais e nada menos do que a si próprio. De acordo com a Carta aos Hebreus, só e exclusivamente o gesto do amor a doar tudo representa a reconciliação do mundo; por esta razão, a hora da cruz é o dia cósmico da reconciliação, a verdadeira e definitiva festa da reconciliação. Não há outro culto, não existe outro sacerdote que não o que realizou essa festa: Jesus Cristo.

joseph ratzinger, Tübingen, verão de 1967.

(Revisão da versão portuguesa por ama)





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