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17/02/2016

Evangelho, comentário, L. espiritual


Quaresma
Semana I

Evangelho: Lc 11, 29-32

29 Concorrendo as multidões, começou a dizer: «Esta geração é uma geração perversa; pede um sinal, mas não lhe será dado outro sinal, senão o sinal do profeta Jonas. 30 Porque, assim como Jonas foi sinal para os ninivitas, assim o Filho do Homem será um sinal para esta geração. 31 A rainha do meio-dia levantar-se-á no dia do juízo contra os homens desta geração, e condená-los-á, porque veio dos confins da terra para ouvir a sabedoria de Salomão; e aqui está Quem é mais do que Salomão. 32 Os ninivitas levantar-se-ão no dia do juízo contra esta geração, e condená-la-ão, porque fizeram penitência com a pregação de Jonas; e aqui está Quem é mais do que Jonas!

Comentário:

Há que estar atento!

Durante toda a nossa vida o Espírito Santo envia-nos numerosos “sinais” que são inspirações por vezes muito claras, outras nem tanto.

Se não estivermos atentos a esses sinais como podemos queixar-nos que não sabemos o que fazer?

Mas esta atenção de que falo implica, sobretudo, um coração puro e bem-disposto para que possamos entender e entendendo, pôr em prática.

(ama, comentário sobre Lc, 11, 29 - 32 2013.10.14, 2015.10.12)


Leitura espiritual

 

Ioannes Paulus PP. II
Dives in misericordia
sobre a Misericórdia Divina

1980.11.30

/…3

Consideração pela dignidade humana

6. A imagem que acabei de descrever do estado de espírito do filho pródigo permite-nos compreender com exactidão em que consiste a misericórdia divina. Não há dúvida de que naquela simples mas penetrante comparação, a figura do pai revela-nos Deus como Pai.

A atitude do pai da parábola, todo o seu modo de agir manifestação da disposição interior, permite-nos encontrar cada um dos fios que entretecem a visão da misericórdia no Antigo Testamento, mas numa síntese totalmente nova, cheia de simplicidade e profundidade. O pai do filho pródigo é fiel à sua paternidade, fiel ao amor que desde sempre tinha dedicado ao seu filho. Tal fidelidade manifesta-se na parábola não apenas na prontidão em recebê-lo em casa, quando ele voltou depois de ter esbanjado a herança, mas sobretudo na alegria e no clima de festa tão generoso para com o esbanjador que regressa. Esta atitude provoca até a inveja do irmão mais velho, que nunca se tinha afastado do pai, nem abandonado a casa paterna.

A fidelidade a si próprio por parte do pai — traço característico já conhecido pelo termo do Antigo Testamento «hesed» — exprime-se de modo particularmente denso de afecto. Lemos, com efeito, que, ao ver o filho pródigo regressar a casa, o pai, «movido de compaixão, correu ao seu encontro, abraçou-o efusivamente e beijou-o» 64. Procede deste modo levado certamente por profundo afecto; e assim se explica também a sua generosidade para com o filho, generosidade que causará tanta indignação no irmão mais velho.

Todavia, as causas da sua comoção hão-de ser procuradas em algo mais profundo. O pai sabe que o que se salvou foi um bem fundamental: o bem da vida de seu filho. Embora tenha esbanjado a herança, a verdade é que a sua vida está salva. Mais ainda, esta, de algum modo, foi reencontrada. É o sentido das palavras dirigidas pelo próprio pai ao filho mais velho: «Era preciso que fizéssemos festa e nos alegrássemos, porque este teu irmão estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi encontrado» 65. No mesmo capítulo XV do Evangelho de S. Lucas lemos as parábolas da ovelha desgarrada e reencontrada 66 e a seguir a da dracma perdida e de novo achada 67. Em cada uma destas parábolas é posta em evidência a mesma alegria, que transparece no caso do filho pródigo. A fidelidade do pai a si próprio está inteiramente centralizada na vida do filho perdido, na sua dignidade. Assim, sobretudo, se explica a imensa alegria que manifesta quando o filho volta para casa.

Pode-se dizer, portanto, que o amor para com o filho, o amor que brota da própria essência da paternidade, como que obriga o pai, se assim nos podemos exprimir, a desvelar-se pela dignidade do filho. Esta solicitude constitui a medida do seu amor; amor, do qual escreverá S. Paulo: «A caridade é paciente, é benigna..., não busca o próprio interesse, não se irrita, não guarda ressentimento pelo mal sofrido... rejubila com a verdade ..., tudo espera, tudo suporta» e «não acaba nunca» 68.

A misericórdia apresentada por Cristo na parábola do filho pródigo tem a característica interior do amor, que no Novo Testamento é chamado «ágape». Este amor é capaz de debruçar-se sobre todos os filhos pródigos, sobre qualquer miséria humana e, especialmente, sobre toda miséria moral, sobre o pecado. Quando isto acontece, aquele que é objecto da misericórdia não se sente humilhado, mas como que reencontrado e «revalorizado». O pai manifesta-lhe alegria, antes de mais por ele ter sido «reencontrado» e , por ter «voltado à vida». Esta alegria indica um bem que não foi destruído: o filho, embora pródigo, não deixa de ser realmente filho de seu pai. Indica ainda um bem reencontrado: no caso do filho pródigo, o regresso à verdade sobre si próprio.

O que, na parábola de Cristo, se verificou na relação do pai para com o filho, não se pode avaliar «de fora». As nossas opiniões acerca da misericórdia são de maneira geral o resultado de um juízo meramente externo. Acontece até por vezes que seguindo tal critério, percebemos na misericórdia sobretudo uma relação de desigualdade entre aquele que a exercita e aquele que a recebe. Por consequência, somos levados a deduzir que a misericórdia degrada aquele que a recebe e ofende a dignidade do homem.

A parábola do filho pródigo persuade-nos que a realidade é diferente: a relação de misericórdia baseia-se na experiência daquele bem que é o homem, na experiência comum da dignidade que lhe é própria. Esta experiência comum faz com que o filho pródigo comece a ver-se a si próprio e às suas acções com toda a verdade (e esta visão da verdade é autêntica humildade). Por outro lado para o pai, precisamente por isso, torna-se o seu único bem. Graças a uma misteriosa comunicação da verdade e do amor, o pai vê com tal clareza o bem operado, que parece esquecer todo o mal que o filho tinha cometido.

A parábola do filho pródigo exprime, de maneira simples mas profunda, a realidade da conversão, que é a mais concreta expressão da obra do amor e da presença da misericórdia no mundo humano. O verdadeiro significado da misericórdia não consiste apenas no olhar, por mais penetrante e mais cheio de compaixão que seja, com que se encara o mal moral, físico ou material. A misericórdia manifesta-se com a sua fisionomia característica quando reavalia, promove e sabe tirar o bem de todas as formas de mal existentes no mundo e no homem. Entendida desta maneira, constitui o conteúdo fundamental da mensagem messiânica de Cristo e a força constitutiva da sua missão. Desta mesma maneira entendiam e praticavam a misericórdia os discípulos e seguidores de Cristo. A misericórdia nunca cessou de se manifestar nos seus corações e nas suas obras, como prova particularmente criadora do amor, que não se deixa «vencer pelo mal», mas vence «o mal com o bem» 69. É preciso que o rosto genuíno da misericórdia seja sempre descoberto de maneira nova. Não obstante vários preconceitos, a misericórdia apresenta-se como particularmente necessária nos nossos tempos.

V. O MISTÉRIO PASCAL

A misericórdia revelada na Cruz e na Ressurreição

7. A mensagem messiânica de Cristo e a sua actividade entre os homens terminam com a Cruz e a Ressurreição. Se quisermos exprimir totalmente a verdade acerca da misericórdia, com a plenitude com que foi revelada na história da nossa salvação, devemos penetrar de maneira profunda nesse acontecimento final que, particularmente na linguagem conciliar, é definido como mysterium paschale (mistério pascal). Chegados a este ponto das nossas considerações, impõe-se aproximarmo-nos ainda mais do conteúdo da Encíclica Redemptor Hominis. Se a realidade da Redenção, na sua dimensão humana, revela a grandeza inaudita do homem que talem ac tantum meruit habere Redemptorem (mereceu tal e tão grande Redemptor) 70, a dimensão divina da Redenção permite-nos descobrir de modo, iria a dizer, mais empírico e «histórico», a profundidade do amor que não retrocede diante do extraordinário sacrifício do Filho, para satisfazer à fidelidade de Criador e Pai para com os homens, criados à sua imagem e escolhidos neste mesmo Filho desde o «princípio», para a graça e a glória.

Os acontecimentos de Sexta-Feira Santa e, ainda antes, a oração no Getzemani introduzem mudança fundamental em todo o processo de revelação do amor e da misericórdia, na missão messiânica de Cristo. Aquele que «passou fazendo o bem e curando a todos» 71 e «sarando toda a espécie de doenças e enfermidades» 72, mostra-se agora Ele próprio, digno da maior misericórdia e parece apelar para a misericórdia, quando é preso, ultrajado, condenado, flagelado, coroado de espinhos, pregado na cruz e expira no meio de tormentos atrozes 73. É então que Ele se apresenta particularmente merecedor da misericórdia dos homens a quem fez o bem; mas não a recebe. Até aqueles que mais de perto contactam com ele não têm a coragem de o proteger e arrancar da mão dos seus opressores. Na fase final do desempenho da função messiânica cumprem-se em Cristo as palavras dos Profetas e sobretudo as de Isaías, proferidas a respeito do Servo de Javé: «Fomos curados pelas suas chagas» 74.

Cristo, enquanto homem, que sofre realmente e de um modo terrível no Jardim das Oliveiras e no Calvário, dirige-se ao Pai, àquele Pai cujo amor Ele pregou aos homens e de cuja misericórdia deu testemunho com todo o seu agir. Mas não lhe é poupado, nem sequer a Ele, o tremendo sofrimento da morte na cruz: «Aquele que não conhecera o pecado, Deus tratou-o por nós como pecado» 75, escrevia São Paulo, resumindo em poucas palavras toda a profundidade do mistério da Cruz e a dimensão divina da realidade da Redenção.

É precisamente a Redenção a última e definitiva revelação da santidade de Deus, que é a plenitude absoluta da perfeição: plenitude da justiça e do amor, pois a justiça funda-se no amor, dele provém e para ele tende. Na paixão e morte de Cristo — no facto de o Pai não ter poupado o seu próprio Filho, mas «o ter tratado como pecado por nós» 76 — manifesta-se a justiça absoluta, porque Cristo sofre a paixão e a cruz por causa dos pecados da humanidade. Dá-se na verdade a «superabundância» da justiça, porque os pecados do homem são «compensados» pelo sacrifício do Homem-Deus. Esta justiça, que é verdadeiramente justiça «à medida» de Deus, nasce toda do amor, do amor do Pai e do Filho, e frutifica inteiramente no amor. Precisamente por isso, a justiça divina revelada na cruz de Cristo é «à medida» de Deus, porque nasce do amor e se realiza no amor, produzindo frutos de salvação. A dimensão divina da Redenção não se verifica somente em ter feito justiça do pecado, mas também no facto de ter restituído ao amor a força criativa, graças à qual o homem tem novamente acesso à plenitude de vida e de santidade, que provém de Deus. Deste modo, Redenção traz em si a revelação da misericórdia na sua plenitude.

O mistério pascal é o ponto culminante da revelação e actuação da misericórdia, capaz de justificar o homem, e de restabelecer a justiça como realização do desígnio salvífico que Deus, desde o princípio, tinha querido realizar no homem e, por meio do homem, no mundo, Cristo, ao sofrer, interpela todo e cada homem e não apenas o homem crente. Até o homem que não crê poderá descobrir nele a eloquência da solidariedade com o destino humano, bem como a harmoniosa plenitude da dedicação desinteressada à causa do homem, à verdade e ao amor.

A dimensão divina do mistério pascal situa-se, todavia, numa profundidade ainda maior. A cruz erguida sobre o Calvário, na qual Cristo mantém o seu último diálogo com o Pai, brota do âmago mais íntimo do amor, com que o homem, criado à imagem e semelhança de Deus, foi gratuitamente beneficiado, de acordo com o eterno desígnio divino. Deus, tal como Cristo O revelou, não permanece apenas em estreita relação com o mundo, como Criador e fonte última da existência; é também Pai: está unido ao homem por Ele chamado à existência no mundo visível, mediante um vínculo mais profundo ainda do que o da criação. É o amor que não só cria o bem, mas que faz com que nos tornemos participantes da própria vida de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. Quem ama deseja dar-se a si próprio.

A cruz de Cristo sobre o Calvário surge no caminho daquele «admirabile commercium», daquela comunicação admirável de Deus ao homem, que encerra o chamamento dirigido ao homem para que, dando-se a si mesmo a Deus e oferecendo consigo todo o mundo visível, participe da vida divina, e, como filho adoptivo, se torne participante da verdade e do amor que estão em Deus e vêm de Deus. No caminho da eterna eleição do homem para a dignidade de filho adoptivo de Deus, ergue-se na história a cruz de Cristo, Filho unigénito, que, como «Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro» 77 veio para dar o último testemunho da admirável aliança de Deus com a humanidade, de Deus com o homem: com todos e com cada um dos homens. Esta aliança tão antiga como o homem — pois remonta ao próprio mistério da criação, e foi renovada depois muitas vezes com o único Povo eleito — é igualmente nova e definitiva aliança; ficou estabelecida ali, no Calvário, e não é limitada a um único povo, o de Israel, mas aberta a todos e a cada um.

Que nos ensina a cruz de Cristo que é, em certo sentido, a última palavra da sua mensagem e da sua missão messiânica? Em certo sentido — note-se bem — porque não é ela ainda a última palavra da Aliança de Deus. A última palavra seria pronunciada na madrugada, quando, primeiro as mulheres e depois os Apóstolos, ao chegarem ao sepulcro de Cristo crucificado o vão encontrar vazio, e ouvem pela primeira vez este anúncio: «Ressuscitou». Depois, repetirão aos outros tal anúncio e serão testemunhas de Cristo Ressuscitado.

Mas mesmo na glorificação do Filho de Deus, continua a estar presente a Cruz que, através de todo o testemunho messiânico do Homem-Filho que nela morreu, fala e não cessa de falar de Deus-Pai, que é absolutamente fiel ao seu eterno amor para com o homem, pois que «amou tanto o mundo — e portanto, o homem no mundo — que lhe deu o seu Filho unigénito para que todo aquele que n'Ele crer não pereça, mas tenha a vida eterna» 78. Crer no Filho crucificado significa «ver o Pai» 79 significa crer que o amor está presente no mundo e que o amor é mais forte do que toda a espécie de mal em que o homem, a humanidade e o mundo estão envolvidos. Crer neste amor significa acreditar na misericórdia. Esta é, de facto, a dimensão indispensável do amor, é como que o seu segundo nome e, ao mesmo tempo, é o modo específico da sua revelação e actuação perante a realidade do mal que existe no mundo, que assedia e atinge o homem, que se insinua mesmo no seu coração e o «pode fazer perecer, na Geena» 80.

Amor mais forte do que a morte, mais forte do que o pecado

8. A cruz de Cristo sobre o Calvário é também testemunha da força do mal em relação ao próprio Filho de Deus: em relação Àquele que, único dentre todos os filhos dos homens, era por sua natureza absolutamente inocente e livre do pecado, e cuja vinda ao mundo foi isenta da desobediência de Adão e da herança do pecado original. E eis que precisamente n'Ele, em Cristo, é feita justiça do pecado à custa do seu sacrifício, da sua obediência «até à morte» 81, Aquele que era sem pecado, «Deus o tratou por nós como pecado» 82. É feita justiça também da morte que, desde o início da história do homem, se tinha aliado ao pecado. E este fazer-se justiça da morte realiza-se à custa da morte d'Aquele que era sem pecado e o único que podia, mediante a própria morte, infligir a morte à morte 83. Deste modo, a Cruz de Cristo, na qual o Filho consubstancial ao Pai presta plena justiça a Deus, é também revelação radical da misericórdia, ou seja, do amor que se opõe àquilo que constitui a própria raiz do mal na história do homem: se opõe ao pecado e à morte.

A Cruz é o modo mais profundo de a divindade se debruçar sobre a humanidade e sobre tudo aquilo que o homem - especialmente nos momentos difíceis e dolorosos - considera seu infeliz destino. A cruz é como que um toque do amor eterno nas feridas mais dolorosas da existência terrena do homem, é o cumprir-se cabalmente do programa messiânico, que Cristo um dia tinha formulado na sinagoga de Nazaré 84 e que repetiu depois diante dos enviados de João Baptista 85.

Segundo as palavras exaradas havia muito tempo na profecia de Isaías 86, tal programa consistia na revelação do amor misericordioso para com os pobres, os que sofrem, os prisioneiros os cegos, os oprimidos e os pecadores. No mistério pascal são superadas as barreiras do mal multiforme de que o homem se torna participante durante a existência terrena. Com efeito a cruz de Cristo faz-nos compreender as mais profundas raízes do mal que mergulham no pecado e na morte, e também ela se torna sinal escatológico. Será somente na realização escatológica e na definitiva renovação do mundo que o amor vencerá, em todos os eleitos, os germes mais profundos do mal, produzindo como fruto plenamente maduro o Reino da vida, da santidade e da imortalidade gloriosa. O fundamento desta realização escatológica está já contido na cruz de Cristo e na sua morte. O facto de Cristo «ter ressuscitado ao terceiro dia» 87 constitui o sinal que indica o remate da missão messiânica, sinal que coroa toda a revelação do amor misericordioso no mundo, submetido ao mal. Tal facto constitui ao mesmo tempo o sinal que pre-anuncia «um novo céu e uma nova terra» 88, quando Deus «enxugará todas as lágrimas dos seus olhos; e não haverá mais morte, nem pranto, nem gemidos, nem dor, porque as coisas antigas terão passado» 89.

Na realização escatológica, a misericórdia revelar-se-á como amor, enquanto no tempo presente, na história humana, que é conjuntamente história de pecado e de morte, o amor deve revelar-se sobretudo como misericórdia e ser realizado também como tal. O programa messiânico de Cristo — programa tão impregnado de misericórdia — torna-se o programa do seu Povo da Igreja. Ao centro deste programa está sempre a Cruz, porque nela a revelação do amor misericordioso atinge o ponto culminante. Enquanto não passarem «as coisas antigas» 90, a Cruz permanecerá como o «lugar», a que se poderiam aplicar estas palavras do Apocalipse de São João: «Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e me abrir, entrarei em sua casa e cearemos juntos, eu com ele e ele comigo» 91. Deus revela também de modo particular a sua misericórdia, quando solicita o homem, por assim dizer, a exercitar a «misericórdia» para com o seu próprio Filho, para com o Crucificado.

Cristo, precisamente como Crucificado, é o Verbo que não passa 92, é o que está à porta e bate ao coração de cada homem 93, sem coarctar a sua liberdade, mas procurando fazer irromper dessa mesma liberdade o amor; amor que é não apenas acto de solidariedade para com o Filho do homem que sofre, mas também, em certo modo, uma forma de «misericórdia», manifestada por cada um de nós para com o Filho do Eterno Pai. Porventura, em todo o programa messiânico de Cristo, em toda a revelação da misericórdia pela Cruz, poderia ser mais respeitada e elevada a dignidade do homem, já que o homem, se é objecto da misericórdia, é também, em certo sentido, aquele que ao mesmo tempo «exerce a misericórdia»?

Em última análise, não é acaso esta a posição que toma Cristo em relação ao homem quando diz: «Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos... foi a mim que o fizestes»? 94 As palavras do Sermão da Montanha — «Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» 95 — não constituem, em certo sentido, uma síntese de toda a Boa-Nova, de todo o «admirável intercâmbio» (admirabile commercium) nela contido, que é uma lei simples, forte e ao mesmo tempo «suave», da própria economia da Salvação? Estas palavras do Sermão da Montanha, mostrando desde o ponto de partida as possibilidades do «coração humano» («ser misericordiosos»), não revelarão talvez, na mesma perspectiva, a profundidade do mistério de Deus: isto é, aquela imperscrutável unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, em que o amor, contendo a justiça, dá origem à misericórdia, a qual, por sua vez, revela a perfeição da justiça?

O mistério pascal é Cristo na cúpula da revelação do imperscrutável mistério de Deus. É precisamente então que se verificam plenamente as palavras pronunciadas no Cenáculo: «Quem rne vê, vê o Pai» 96. De facto, Cristo a quem o Pai «não poupou» 97 em favor do homem e que na sua paixão assim como no suplício da cruz não encontrou misericórdia humana, na sua ressurreição revelou a plenitude daquele amor que o Pai nutre para com Ele e, n'Ele para com todos os homens. Este Pai «não é Deus de mortos, mas de vivos» 98. Na sua ressurreição Cristo revelou o Deus de amor misericordioso, precisamente porque aceitou a Cruz como caminho para a ressurreição. É por isso que, quando lembramos a cruz de Cristo, a sua paixão e morte a nossa fé e a nossa esperança concentram-se n'Ele Ressuscitado naquele mesmo Cristo, aliás, que «na tarde desse dia, que era o primeiro de semana... se pôs no meio deles» no Cenáculo «onde se achavam juntos os discípulos... soprou sobre eles e lhes disse: «Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados e àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos» 99.

Este é o Filho de Deus que na sua ressurreição experimentou em si de modo radical a misericórdia, isto é, o amor do Pai que é mais forte do que a morte. Ele é também o mesmo Cristo Filho de Deus, que no termo — e, em certo sentido, já para além do termo — da sua missão messiânica, se revela a si mesmo como fonte inexaurível de misericórdia, daquele amor que, na perspectiva ulterior da história da Salvação na Igreja, deve perenemente mostrar-se mais forte do que o pecado. Cristo pascal é a encarnação definitiva da misericórdia, o seu sinal vivo: histórico-salvífico e, simultaneamente, escatológico. Neste mesmo espírito a Liturgia do tempo pascal põe nos nossos lábios as palavras do Salmo: Cantarei eternamente as misericórdias do Senhor 100.

Copyright © Libreria Editrice Vaticana

(Nota: Revisão da tradução para português por ama)
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Notas:
63 Lc 15,18 s.
64 Lc 15,20
65 Lc 15,32.
66 Cf. Lc 15,3-6.
67 Cf. Lc 15,89.
68 1 Cor 13,4-8.
69 Cf. Rom 12,21.
70 No «Exsultet» da Liturgia da Vigília Pascal.
71 Act 10 38
72 Mt 9,35
73 Csf. Mc 15,37; Jo 19,30
74 Is 53,5
75 2 Cor 5,21.
76 Ibid
77 Símbolo Niceno-Constantinopolitano.
78 Cf. Jo 3,16.
79 Cf. Io 14.9.
80 Mt 10,28.
81 Flp 2,8.
82 2 Cor 5,21.
83 Cf. 1 Cor 15,54s.
84 Cf. Lc 4,18-21.
85 Cf. Lc 7,20-23.
86 Cf. Is 35,5; 61,1-3.
87 1 Cor 15,1.
88 Apoc 21,1.
89 Apoc 21,4.
90 Cf. Apoc 21,4.
91 Apoc 3,20.
92 Cf. Mt 24,25.
93 Cf. Apoc 3,20.
94 Mt 25,40
95 Mt 5,7
96 Jo 14,9.
97 Rom 8,32.
98 Mc 12,27
99 Jo 20,19-23.

100 Cf. Sl 89(88),2

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