Páginas

Um grande Amor te espera no Céu

Cada vez estou mais persuadido: a felicidade do Céu é para os que sabem ser felizes na terra. (Forja, 1005)

(Hoje, a Igreja celebra a Festividade de S. Josemaria Escrivá)

Escrevias: "'simile est regnum caelorum', o Reino dos Céus é semelhante a um tesouro... Esta passagem do Santo Evangelho caiu na minha alma lançando raízes. Tinha-a lido tantas vezes, sem captar o seu âmago, o seu sabor divino".

Tudo..., tudo há-de vender o homem prudente, para conseguir o tesouro, a pérola preciosa da Glória! (Forja, 993)

Pensa quão grato é a Deus Nosso Senhor o incenso que se queima em sua honra; pensa também no pouco que valem as coisas da terra, que mal começam logo acabam...

Pelo contrário, um grande Amor te espera no Céu: sem traições, sem enganos: todo o amor, toda a beleza, toda a grandeza, toda a ciência...! E sem enfastiar: saciar-te-á sem saciar. (Forja, 995)

Não há melhor senhorio que saber-se ao serviço: ao serviço voluntário de todas as almas!


É assim que se ganham as grandes honras: as da terra e as do Céu. (Forja, 1045)

Temas para meditar 200


Espírito Santo - Frutos


Alegrar-se nas provações, sorrir no sofrimento..., cantar com o coração e com o melhor timbre quanto maiores e mais aguçados sejam os espinhos (...) e tudo isto por amor... isto é, junto do amor, o fruto que o Vinhateiro Divino quer recolher nos sarmentos da Vinha Mística, fruto que somente o Espírito Santo pode produzir em nós.

(a. riaud La acción del Espiritu Santo en las almas Palabra 4ª Ed. Madrid 1985 nr. 120 trad. ama)

Tratado da lei 79

Questão 106: Da lei do Evangelho, chamada nova, em si mesma considerada.

Em seguida devemos tratar da lei do Evangelho, chamada lei nova. E primeiro, em si mesmo considerada. Segundo, comparada com a lei antiga. Terceiro, do que a lei nova contém.

Na primeira questão discutem-se quatro artigos:

Art. 1 — Se a lei nova é uma lei escrita.
Art. 2. — Se a lei nova justifica.
Art. 3 — Se a lei nova devia ter sido dada desde o princípio do mundo.
Art. 4 — Se a lei nova há-de durar até o fim do mundo.

Art. 1 — Se a lei nova é uma lei escrita.

[Art. Seq., q. 107, a. 1, ad 2, 3, q. 108, a. 1. II Cor., cap. III, lect, II, Ad Hebr., cap. VIII, lect. II].

O primeiro discute-se assim. — Parece que a lei nova é uma lei escrita.

1. — Pois, a lei nova é o Evangelho mesmo. Ora, este é escrito (Jo 20, 31): Mas, foram escritas estas coisas, a fim de que vós creiais. Logo, a lei nova é uma lei escrita.

2. Demais. — A lei infusa é a da natureza, conforme a Escritura (Rm 2, 14-15): Naturalmente fazem as coisas que são da lei os que mostram a obra da lei escrita nos seus corações. Se pois a lei do Evangelho fosse infusa, não diferiria da lei natural.

3. Demais. — A lei do Evangelho é própria dos que vivem no regime do Novo Testamento. Ora, a lei infusa é comum tanto a esses como aos que viveram no regime do Velho Testamento. Pois, diz a Escritura (Sb 7, 27), que a divina Sabedoria, pelas nações, se transfunde nas almas santas, forma os amigos de Deus e os profetas. Logo, a lei nova não é uma lei infusa.

Mas, em contrário, a lei nova é a lei do Novo Testamento. Ora, esta é infusa no coração. Pois, o Apóstolo, citando a autoridade da Escritura (Jr 31, 31-33) — Eis aí virão os dias, diz o Senhor, e farei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá — e expondo qual seja essa aliança, diz (Heb 8, 8-10): Porque este é o testamento que ordenarei à casa de Israel, imprimindo as minhas leis na mente deles, e as escreverei sobre o seu coração. Logo, a lei nova é infusa.

Todo o ser é considerado como sendo o que nele é principal, consoante o Filósofo. Ora, o que há de principal na lei do Novo Testamento, e no que consiste toda a sua virtude, é a graça do Espírito Santo, dada pela fé em Cristo. Donde, a lei nova é principalmente a graça mesma do Espírito Santo, dada aos fiéis de Cristo. E isto torna-se manifesto pelas palavras do Apóstolo (Rm 3, 27): Onde está o motivo de te gloriares? Todo ele foi excluído. Por que lei? Pela das obras? Não, mas pela lei da fé — chamando, assim, lei à graça mesma da fé. E mais expressamente (Rm 8, 2): A lei do espírito de vida em Jesus Cristo me livrou da lei do pecado e da morte. Por isso diz Agostinho, que, assim como a lei das ações foi escrita em tábuas de pedra, assim, a lei da fé o foi nos corações dos fiéis. E noutro lugar do mesmo livro: Que são as leis de Deus por Ele próprio escritas nos corações, senão a presença mesma do Espírito Santo?

Contudo, a lei nova encerra certos preceitos como que secundários disponentes à graça do Espírito Santo e ao uso dessa graça. E sobre eles era necessário que os fiéis de Cristo fossem instruídos por palavras e escrituras, tanto em relação ao que devem crer como ao que devem agir.

Donde, devemos dizer, que a lei nova é principalmente uma lei infusa, e, secundariamente, uma lei escrita.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — O escrito nos Evangelhos não contém senão o que diz respeito à graça do Espírito Santo, quer dispondo, quer ordenando para o uso dessa graça. Dispondo o intelecto pela fé, pela qual se obtém a graça do Espírito Santo, o Evangelho encerra o concernente à manifestação da divindade ou da humanidade de Cristo. Quanto ao afecto, ele contém a atinente ao desprezo do mundo, que torna o homem capaz da graça do Espírito Santo, pois, o mundo, i. é, os amantes do mundo, não pode receber o Espírito Santo, como diz a Escritura (Jo 14, 17). Quanto ao uso da graça espiritual, ele consiste nos actos virtuosos, aos quais frequentemente o escrito do Novo Testamento exorta os homens.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Pode haver algo de infuso no homem de dois modos. — Primeiro, como fazendo parte da natureza humana. E nesse sentido a lei natural é nela infusa. — De outro modo, como lhe sendo acrescentado à natureza pelo dom da graça. E deste modo a lei nova é infusa no homem, e indica não só o que ele deve fazer, mas também o ajuda a cumprir a lei.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Ninguém nunca teve a graça do Espírito Santo, senão por fé explícita ou implícita em Cristo. Ora, pela fé em Cristo o homem pertence ao Novo Testamento. Donde, aqueles a quem foi infundida a lei da graça pertenciam ao Novo Testamento.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


Evang.; Coment.; Leit. Esp. (Magistério - Ratzinguer)

Tempo comum XIX Semana

Evangelho: Mt 25, 1-13

1 «Então, o Reino dos Céus será semelhante a dez virgens, que, tomando as suas lâmpadas, saíram ao encontro do esposo. 2 Cinco delas eram néscias, e cinco prudentes. 3 As cinco néscias, tomando as lâmpadas, não levaram azeite consigo; 4 as prudentes, porém, levaram azeite nas vasilhas juntamente com as lâmpadas. 5 Tardando o esposo, começaram todas a cabecear e adormeceram. 6 À meia-noite, ouviu-se um grito: “Eis que vem o esposo! Saí ao seu encontro”. 7 Então levantaram-se todas aquelas virgens, e prepararam as suas lâmpadas. 8 As néscias disseram às prudentes: “Dai-nos do vosso azeite, porque as nossas lâmpadas apagam-se”. 9 As prudentes responderam: “Para que não suceda que nos falte a nós e a vós, ide antes aos vendedores, e comprai para vós”. 10 Mas, enquanto elas foram comprá-lo, chegou o esposo, e as que estavam preparadas entraram com ele a celebrar as bodas, e foi fechada a porta. 11 Mais tarde, chegaram também as outras virgens, dizendo: “Senhor, Senhor, abre-nos”. 12 Ele, porém, respondeu: “Em verdade vos digo que não vos conheço”. 13 Vigiai, pois, porque não sabeis nem o dia nem a hora.

Comentário:

Algumas traduções chamam “néscias” às virgens “imprudentes”. Ser néscio é ser pouco atilado, prudente ou coerente.
Alguém que não leva as coisas muito a sério, que está disposto a “esperar para ver o que acontece”, não se preocupar ou não dar importância a algo que a deve ter.

Neste caso, parece evidente, que aquelas virgens a que o Senhor se refere na Sua parábola, são retrato, a imagem destas pessoas que vão pela vida como se não tivessem qualquer responsabilidade ou dever e, pior, que não lhes venham a ser pedidas contas do que deveriam ter feito e não fizeram.

Preparar-se é sinal de prudente coerência de quem se diz empenhado na sua salvação, o maior bem a que pode aspirar.

(ama, comentário sobre Mt 25, 1-13, 2013.08.09)

Leitura espiritual



Magistério

cardeal joseph ratzinger

Algumas perguntas pessoais


Um auto-retrato.

Poderia descrever-se a si mesmo?

É impossível fazer um auto-retrato; é difícil julgar-se a si mesmo. Posso apenas dizer que venho de uma família muito simples, muito humilde, e por isso, mais do que um cardeal, sinto-me um homem simples.

Tenho a minha casa na Alemanha, numa cidade pequena, cujos habitantes trabalham na agricultura, em ofícios manuais, e ali sinto-me no meu ambiente. Também procuro ser assim no meu trabalho: não sei se o consigo, não me atrevo a julgar-me.

Recordo sempre com grande carinho a profunda bondade do meu pai e da minha mãe; naturalmente, para mim, bondade inclui a capacidade de dizer "não", pois uma bondade que deixasse o outro fazer qualquer coisa não lhe faria bem. Algumas vezes, bondade significa ter que dizer "não" e correr assim o risco de que nos contradigam.

Esses são os meus critérios, essa é a minha origem; quanto ao resto, deveriam ser os outros a julgar [i].

Homem de consciência.

Seu irmão fez a seguinte caracterização da sua pessoa:

"Custa-lhe ter de agir com força, mas, quando precisa combater, actua segundo a sua consciência". O senhor é um homem de consciência?

Procuro sê-lo. Não ouso dizer que o seja. Mas parece-me bastante importante não colocar a aprovação ou o ambiente simpático do meio a que se pertence acima da verdade, embora isto seja sempre uma grande tentação. É claro que o apelo à consciência pode transformar-se na mania de ter sempre razão, de modo que uma pessoa pense que tem de se opor a tudo. Mas, entendido num sentido correto, o homem que ouve a sua consciência, e para quem aquilo que se conhece - o bem - está acima da aprovação e da aceitação dos outros, é para mim, de facto, um ideal e uma tarefa. E figuras como Thomas More, o Cardeal Newman e outras grandes testemunhas – entre elas, os que foram implacavelmente perseguidos pelo regime nazi, como por exemplo Dietrich Bonhoeffer [ii] são, para mim, grandes modelos [iii].

Medo de Deus? Eminência, às vezes o senhor também sente medo de Deus?

Não falaria de medo. Graças a Cristo, sabemos como Deus é, sabemos que nos ama [...]. No entanto, sempre experimento a consciência fulminante de não estar à altura da ideia que Deus faz de mim [iv].

O primado da verdade na vida. Ao longo do meu caminho espiritual, senti muito intensamente o problema de saber se, no fundo, não é presunção dizer que podemos conhecer a verdade, em virtude de todas as nossas limitações. Também me interroguei até que ponto não seria talvez melhor pôr essa categoria em segundo plano. Ao aprofundar essa questão, pude observar, e também compreender, que a renúncia à verdade não resolve nada: pelo contrário, conduz à ditadura da arbitrariedade. Tudo o que resta só pode então ser decidido por nós e é substituível. O homem perde a dignidade quando não é capaz de conhecer a verdade, quando tudo não passa de produto de uma decisão individual ou colectiva.

Assim, vi como é importante que não se perca o conceito de verdade, mas permaneça como categoria central, não obstante as ameaças e os riscos que sem dúvida envolve.

Como exigência que nos é feita, não nos dá direitos, mas, pelo contrário, requer a nossa humildade e a nossa obediência, como também nos pode pôr no caminho daquilo que é comum a todos os homens. A partir de um longo confronto com a situação espiritual em que nos encontramos, este primado da verdade foi lentamente tornando-se visível para mim; como disse, não pode ser simplesmente entendido de forma abstracta, mas precisa estar envolvido em sabedoria [v].

Verdade e bondade.

Certa vez, o senhor afirmou que um homem deveria acentuar o primado da verdade sobre a bondade. Julgo que é uma atitude que pode ser perigosa. Isso não corresponderia à imagem do Grande Inquisidor, tal como Dostoievski a descreveu?

É preciso interpretar todo o contexto. Nessa frase, a bondade é entendida no sentido de uma falsa bondade, do tipo "não pretendo aborrecer-me". É uma atitude muito comum, que se verifica também, e sobretudo, no campo da política: não se quer ser impopular.

Em vez de ter aborrecimentos e de os criar, prefere-se contemporizar, mesmo com o que é errado, com o que não é puro, nem verdadeiro, nem bom. Está-se disposto a comprar bem-estar, sucesso, reconhecimento público e aceitação por parte da opinião dominante, à custa da renúncia à verdade. Não quis atacar a bondade em geral. A verdade só pode ter sucesso e vencer com a bondade. Referia-me a uma caricatura da bondade que é bastante comum: que se negligencie a consciência com o pretexto da bondade, que se coloque acima da verdade a aceitação e a preocupação de evitar problemas, o comodismo, o ser bem-visto [vi].

Autoridade em matéria de fé.

Como é possível, hoje em dia, ter autoridade em questões de fé?

Certamente é uma tarefa difícil, em parte porque já não existe o conceito de autoridade.

O facto de haver uma autoridade que decida coisas parece hoje incompatível com a liberdade para fazer o que se quiser. É difícil também porque muitas tendências gerais da nossa época se opõem à fé católica. Busca-se uma visão do mundo simplificada:

Cristo não poderia ser o Filho de Deus, mas um mito ou uma grande personalidade humana, pois Deus não poderia ter aceito o sacrifício de Cristo, Deus não seria um Deus cruel... Em última análise, há muitas ideias que se opõem ao cristianismo, e seria necessário reformular muitas verdades de fé para que se adequassem ao homem de hoje.

Mas tenho de dizer que muitas pessoas também agradecem que a Igreja continue a ser uma força que transmite a fé católica e ofereça um fundamento sobre o qual se pode viver e morrer. E isso é consolador para mim [vii].

Posição incómoda.

Eminência, [...] o senhor escreveu um livro chamado Deus e o mundo, no qual disse que a sua posição como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé era a posição mais incómoda que já tinha ocupado. (O cardeal Ratzinger ri tranquilamente) O que quis dizer com isso?

Sim, é uma posição incómoda de muitas maneiras. Sobretudo porque, com frequência, somos obrigados a enfrentar todos os problemas da Igreja: relativismo, heresias, teologias inaceitáveis, teólogos complicados e o resto, juntamente com os casos disciplinares; o problema dos pedófilos, por exemplo, também é problema nosso. Nesta
Congregação, temos de lutar com os aspectos mais complicados da vida da Igreja hoje.

Além disso, somos atacados como "a Inquisição"; o senhor deve sabê-lo melhor do que eu...

Isso por um lado. Mas, por outro, comprovo todos os dias que as pessoas estão agradecidas quando dizem: "Sim, a Igreja tem uma identidade, uma continuidade; a fé é real e está presente também hoje, e é possível professá-la..." E o mesmo quando vou à Praça de São Pedro e vejo tantas pessoas de lugares tão variados do mundo que me dizem: "Obrigado, padre. Estamos agradecidos pelo difícil trabalho que faz, porque nos ajuda". Muitos amigos protestantes chegam também a dizer-me: "O que o senhor vem fazendo é útil para nós porque também defende a nossa fé e a validade da fé em Cristo.

Precisamos de uma instância como a sua, mesmo quando não compartilhamos o que diz.

E é útil também para ver que temos de prosseguir na contínua defesa da fé; o senhor alenta-nos a perseverar na fé, a continuar a vivê-la". E nos últimos dias, aproximou-se de mim uma delegação de ortodoxos que me disseram o mesmo. Portanto, o nosso trabalho tem uma dimensão ecuménica que, com frequência, não é apreciada. [viii]

Deus

O Deus escondido. Onde está Deus, onde pode ser encontrado? Está escondido?

Parece que se revela muito raramente. As pessoas desesperam-se porque pensam que Ele não fala com elas, não dá sinais, não interfere na sua vida.

Ele manifesta-se, mas não de forma ruidosa, não necessariamente sob a forma de uma catástrofe natural, embora as catástrofes naturais também possam ser manifestações suas. Não o faz, pois, de forma ruidosa, mas sempre se está manifestando. É claro que o receptor tem de estar, por assim dizer, sintonizado para captar o emissor.

Na nossa maneira de viver e de pensar, há tantas interferências perturbadoras que não somos capazes de captar o som, que também se tornou tão estranho para nós que não o reconhecemos como vindo dEle. Mas eu diria que qualquer pessoa que esteja atenta pode fazer essa experiência e perceber: neste momento, Ele dirige-se a mim; é uma oportunidade que me é dada para conhecê-lo. [...] Ele pode manifestar-se se eu estiver vigilante, e também se houver alguém que me ajude a decifrar a realidade. É claro que Ele não fala de forma ruidosa, mas sim através de sinais e dos acontecimentos da vida, e através das outras pessoas. É necessário, pois, ter uma certa vigilância, e perseverança para não ser dominado pelas coisas que ocupam o primeiro plano [ix].

O Deus marginalizado.

Onde está Deus na sociedade contemporânea?

Está muito marginalizado. Na vida política, parece quase indecente falar de Deus, como se fosse um ataque à liberdade de quem não crê. O mundo político segue as suas normas e os seus caminhos, excluindo Deus como uma realidade que não pertence a esta terra.

O mesmo acontece no mundo do comércio, da economia e da vida privada. Deus fica à margem. No entanto, parece-me necessário voltar a descobrir [...] que também a esfera política e económica têm necessidade de uma responsabilidade moral, de uma responsabilidade que nasce do coração do homem e que, em última análise, tem a ver com a presença ou a ausência de Deus. Uma sociedade em que Deus esteja absolutamente ausente autodestrói-se [x].


Existência de Deus e existência humana.

Li recentemente as afirmações de um intelectual alemão que, em relação à "questão de Deus", se dizia agnóstico e, ao mesmo tempo, acrescentava que não se poderia nem provar nem excluir totalmente a existência de Deus, de modo que esse problema permaneceria sempre em aberto. No entanto, declarava-se firmemente convencido da existência do inferno: bastava-lhe ligar a televisão para comprová-lo sem sombra de dúvida.

Se a primeira parte dessa afirmação corresponde plenamente ao sentir moderno, a segunda parece extravagante, ao menos à primeira vista. Como é possível crer no inferno se Deus não existe? Mas, se considerarmos essas palavras com um pouco mais de atenção, veremos que encarnam uma certa lógica. O inferno é, por definição, viver na ausência de Deus. Onde Deus não está, ali está o inferno. Certamente, não é tanto o espetáculo diário da televisão que nos fornece a prova, quanto um olhar sobre o século que terminou e que nos deixou palavras como "Auschwitz" ou "Arquipélago Gulag", e nomes como Hitler, Stalin, Pol Pot. Esses infernos foram construídos para preparar um mundo futuro de homens auto-suficientes que não teriam nenhuma necessidade de Deus.

Mas onde Deus não está, surge o inferno, e o inferno persiste, muito simplesmente, pela ausência de Deus. Pode-se chegar a esse extremo também de maneiras subtis, que quase sempre afirmam que o que se busca é o bem dos homens. Hoje, quando se comercializam órgãos humanos, quando se fabricam fetos para dispor de órgãos de reposição ou para promover o avanço da ciência e da prevenção médicas, muitos consideram implícito o caráter humanitário dessas práticas. Mas o desprezo pelo homem que esse usar e abusar do ser humano pressupõe, conduz, quer se queira quer não, à descida aos infernos.

Isto não significa que não possa haver ou não haja ateus com um grande senso ético.

Seja como for, atrevo-me a afirmar que essa ética se baseia na luz que emanou um dia do Monte Sinai e que continua a brilhar até hoje: a luz de Deus. Nietzsche tinha razão ao sublinhar que, quando a notícia da morte de Deus se tornasse conhecida por todo o mundo, quando a sua luz se tivesse apagado definitivamente, esse momento seria necessariamente terrível.

O cristianismo não é uma filosofia complicada e envelhecida com o passar do tempo, não é uma imensa coleção de dogmas e preceitos: a fé cristã consiste em sermos tocados por Deus e sermos as suas testemunhas.

Precisamente por isso podemos dizer: a Igreja existe para que Deus, o Deus vivente, seja anunciado, para que o homem possa aprender a viver com Deus, sob o seu olhar e em comunicação com Ele. A Igreja existe para evitar o avanço do inferno sobre a terra e para fazer com que esta se torne mais habitável à luz de Deus.. Graças a Ela, e somente graças a Ela, a terra será humana. Nem que seja apenas por este motivo, a Igreja deve continuar a existir, porque a sua eventual desaparição arrastaria a humanidade para o torvelinho das trevas, da escuridão, até à destruição de tudo o que torna humano o homem. [...] Sem Deus, o mundo não consegue iluminar-se. A Igreja serve ao mundo fazendo com que Deus viva nela, permitindo que Ele transpareça nEla, e estando pronta assim para levá-lo à humanidade [xi].

Encontro pessoal com Deus.

O cristianismo apresenta-se hoje como uma antiga tradição carregada de antigos mandamentos, algo que já conhecemos e que não nos diz nada de novo, uma instituição forte, uma das grandes instituições que pesam sobre os nossos ombros. [...] Mas se pararmos nesta impressão, não viveremos o núcleo do cristianismo, que é um encontro sempre novo, um acontecimento graças ao qual podemos encontrar o Deus que fala connosco, que se aproxima de nós, que se faz nosso amigo. [...] É decisivo chegar a este ponto fundamental de um encontro pessoal com Deus, que também hoje se faz presente e que é nosso contemporâneo. [...] Se encontrarmos este centro essencial, compreenderemos também o restante; mas se este acontecimento que toca o coração não se realizar, tudo o mais passará a ser como que um peso, quase que algo absurdo [xii].

(cont.)

(Revisão da versão portuguesa por ama)






[i]  Entrevista à Radio Vaticano, 23.11.2001
[ii] Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), teólogo e pastor luterano alemão que se opôs à ditadura nazi; foi condenado à morte e enforcado (N. do T.).
[iii] O sal da terra, págs. 55-56.
[iv] Dios y el mundo, repr. em Avvenire, 27.09.2001
[v] O sal da terra, pág. 55
[vi] Ibid., pág. 56
[vii] Entrevista à Radio Vaticana
[viii] A crise da Igreja: uma fé fraca, entrevista a Raymond Arroyo, canal de televisão EWTN, Irondale (Alabama), 23.08.2003; repr. por Zenit, 24.08.2003
[ix] O sal da terra, pág. 26
[x] El laicismo está poniendo en peligro la libertad religiosa, entrevista a La Reppublica, repr. por Zenit, 19.11.2004
[xi] 1Testigos de Ia luz de Dios, em La Razôn, 23.04.2001
[xii] Por qué el cristianismo no es visto como fuente de alegria, declarações ao semanário Vita Trentina, Zenit, 07.05.2004