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04/06/2014

Temas para meditar - 165

Nunc Coepi


Também o agricultor, quando caminha sulcando o campo com o arado ou espalhando a semente, padece frio, suporta os incómodos da chuva, olha o céu e vê-o triste, e, todavia, continua semeando. O que teme é deter-se considerando as tristezas da vida presente e que depois passe o tempo e não encontre nada para ceifar. Não o deixeis para mais tarde. Semeai agora.


(santo agostinhoComentário sobre sobre o Salmo 125, 5, Pl. 36, 164)

Não te apoquentes por verem as tuas faltas

Quanto mais me exaltarem, meu Jesus, humilha-me mais no meu coração, fazendo-me saber o que tenho sido e o que serei, se Tu me deixares. (Caminho, 591)

Não te esqueças de que és... o depósito do lixo. – Por isso, se porventura o Jardineiro – divino lança mão de ti, e te esfrega e te limpa... e te enche de magníficas flores..., nem o aroma nem a cor que embelezam a tua fealdade devem pôr-te orgulhoso.
– Humilha-te; não sabes que és o caixote do lixo? (Caminho, 592)

Quando te vires como és, há-de parecer-te natural que te desprezem. (Caminho, 593)

Não és humilde quando te humilhas, mas quando te humilham e o aceitas por Cristo. (Caminho, 594)

Não te apoquentes por verem as tuas faltas. A ofensa a Deus e a desedificação que podes ocasionar, isso é que te deve doer.

– De resto, que saibam como és e te desprezem. – Não tenhas pena de seres nada, porque assim Jesus tem que pôr tudo em ti. (Caminho, 596)

Pequena agenda do cristão


Quarta-Feira




(Coisas muito simples, curtas, objectivas)


Propósito:

Simplicidade e modéstia.


Senhor, ajuda-me a ser simples, a despir-me da minha “importância”, a ser contido no meu comportamento e nos meus desejos, deixando-me de quimeras e sonhos de grandeza e proeminência.


Lembrar-me:
Do meu Anjo da Guarda.


Senhor, ajuda-me a lembrar-me do meu Anjo da Guarda, que eu não despreze companhia tão excelente. Ele está sempre a meu lado, vela por mim, alegra-se com as minhas alegrias e entristece-se com as minhas faltas.

Anjo da minha Guarda, perdoa-me a falta de correspondência ao teu interesse e protecção, a tua disponibilidade permanente. Perdoa-me ser tão mesquinho na retribuição de tantos favores recebidos.

Pequeno exame:
Cumpri o propósito que me propus ontem?



Temas para meditar 135

Dignidade humana

Que sentido teria falar da dignidade do homem, do seus direitos fundamentais, se não se protege um inocente o se chega inclusive a facilitar os meios ou serviços, privados ou públicos, para destruir vidas humanas indefesas?


(S. JOÃO PAULO II, Homília da missa para as famílias cristãs em Madrid, 1982.11.02)

Tratado da lei 13

Questão 93: Da lei eterna.

Em seguida devemos tratar das leis, em particular. E primeiro, da lei eterna. Segundo, da lei natural. Terceiro, da lei humana. Quarto, da lei antiga. Quinto, da lei nova, que é a lei do Evangelho. E quanto à sexta lei, que é a do estímulo, basta o que já foi dito quando tratamos do pecado original.

Na primeira questão discutem-se seis artigos:

Art. 1 — Se a lei eterna é a razão suma existente em Deus.
Art. 2 — Se a lei eterna é conhecida de todos.
Art. 3 — Se toda lei deriva da lei eterna.
Art. 4 — Se o necessário e o eterno estão sujeitos à lei eterna.
Art. 5 — Se os contingentes naturais estão sujeitos à lei eterna.
Art. 6 — Se todas as coisas humanas estão sujeitas à lei eterna.

Art. 1 — Se a lei eterna é a razão suma existente em Deus.

(Supra, q. 91, a. 1).

O primeiro discute-se assim. — Parece que a lei eterna não é a razão suma existente em Deus.

1. — Pois, a lei eterna é uma só. Ora, as razões das coisas na mente divina são várias, assim, Agostinho diz, que Deus fez todas as coisas com razões próprias. Logo, parece que a lei eterna não é o mesmo que a razão existente na mente divina.

2. Demais. — É da natureza da lei ser promulgada verbalmente, como já se disse (q. 90, a. 4). Ora, em Deus o Verbo é considerado pessoalmente, como se estabeleceu na Primeira Parte (q. 34, a. 1), ao passo que a razão o é essencialmente. Logo, a lei eterna não é o mesmo que a razão divina.

3. Demais. — Agostinho diz: A lei, que é chamada verdade, aparece como estando acima da nossa mente. Ora, a lei existente como superior à nossa mente é a lei eterna. Logo, a verdade é a lei eterna. Mas a verdade e a razão não têm a mesma essência. Logo, a lei eterna não é o mesmo que a razão suma.

Mas, em contrário, Agostinho diz: A lei eterna é a razão suma, a que sempre devemos obedecer.

Assim como em todo artífice preexiste a razão do que ele faz, com a sua arte, assim também, em todo governante é necessário que preexista à razão da ordem daquilo que devem fazer os que lhe estão sujeitos ao governo. E como a razão das coisas, que devem ser feitas pela arte, chama-se arte ou exemplar das coisas artificiadas, assim a razão de quem governa os actos dos súbditos assume a natureza de lei, salvo tudo quanto já foi dito a respeito da essência da lei (q. 90). Ora, Deus, com a sua sabedoria, é o criador da universidade das coisas, para as quais está como o artífice, para as coisas artificiais, conforme na Primeira Parte foi estabelecido (q. 14, a. 8). Pois, também é o governador de todos os actos e moções de cada criatura, segundo também se estabeleceu na Primeira Parte (q. 103, a. 5). Donde, assim como a razão da sabedoria divina tem, como criadora de todas as coisas, natureza de arte, exemplar ou ideia, assim a razão dessa mesma sabedoria, que move todas as coisas para o fim devido, tem natureza de lei. E sendo assim, a lei eterna não é mais que a razão da sabedoria divina, enquanto directiva de todos os actos e moções.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — Agostinho refere-se, no passo aduzido, às razões ideais, que respeitam às naturezas próprias de cada coisa. Por isso há nelas uma certa distinção e pluralidade, conforme as diversas relações com as coisas, como se estabeleceu na Primeira Parte (q. 15, a. 2). Porém a lei é considerada como directiva dos actos em relação ao bem comum, como já se disse (q. 90, a. 2). Ora, coisas diversas entre si consideram-se como unificadas, quando se ordenam para algo de comum. Portanto, a lei eterna é uma, que é a razão da referida ordem.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Duas considerações podem ser feitas a propósito de qualquer palavra: sobre a própria palavra, e o que ela exprime. Ora, a palavra vocal é proferida pela boca humana, e por ela se exprimem as coisas significadas pelas palavras humanas. E a mesma é a essência do verbo mental humano, que não é senão um conceito da mente, pela qual o homem exprime mentalmente aquilo que pensa. Donde, em Deus, o Verbo, que é o conceito do intelecto paterno, significa uma pessoa, mas tudo o que está na ciência do Pai, seja o que é essencial, ou pessoal, ou ainda as obras de Deus, exprime-se por esse Verbo, como está claro em Agostinho. E entre outras expressões, por esse Verbo também se exprime a lei eterna. Mas daqui não se segue que a lei eterna seja considerada como algo de pessoal, em Deus. Pois ela é apropriada ao Filho, por causa da conveniência que a razão tem com o Verbo.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A razão do intelecto divino tem com as coisas uma relação diferente da que com elas tem a do intelecto humano. Pois, o intelecto humano é medido pelas coisas, de modo que um conceito humano não é verdadeiro em si mesmo, senão pela sua conformidade com as coisas. Porque segundo uma coisa é ou não, a nossa opinião é verdadeira ou falsa. Ao contrário, o intelecto divino é a medida das coisas, porque cada uma delas é verdadeira na medida em que imita o intelecto divino, como na Primeira Parte se disse (q. 16, a. 1). E portanto, o intelecto divino é verdadeiro em si mesmo. Donde, a sua razão é a própria verdade.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


Evangelho diário, comentário e leitura espiritual (Const. Past. Gaudium et spes)


Tempo de Páscoa
VII Semana

Evangelho: 17, 11-19

11 Já não estou no mundo, mas eles estão no mundo, e Eu vou para Ti. Pai Santo, guarda em Teu nome aqueles que Me deste para que sejam um, assim como Nós. 12 Quando Eu estava com eles, os guardava em Teu nome. Conservei os que Me deste; nenhum deles se perdeu, excepto o filho da perdição, cumprindo-se a Escritura. 13 Mas agora vou para Ti e digo estas coisas, estando ainda no mundo, para que eles tenham em si mesmos a plenitude da Minha alegria. 14 Dei-lhes a Tua palavra, e o mundo odiou-os, porque não são do mundo, como também Eu não sou do mundo. 15 Não peço que os tires do mundo, mas que os guardes do mal. 16 Eles não são do mundo, como Eu também não sou do mundo. 17 Santifica-os na verdade. A Tua palavra é a verdade. 18 Assim como Tu Me enviaste ao mundo, também Eu os enviei ao mundo. 19 Por eles Eu santifico-Me a Mim mesmo, para que também sejam santificados na verdade.

Comentário:

A verdade santifica, é clara esta afirmação de Cristo.

Sendo Ele a Verdade é Ele quem nos santifica.

Para ser santo, o que todos devemos desejar ser, não há outro caminho, seguir Cristo, imitar Cristo, viver em Cristo.

(AMA, comentário sobre Jo 17, 11-19, 2013.05.15)

 Leitura espiritual



Documentos do Concílio Vaticano II

CONSTITUIÇÃO PASTORAL
GAUDIUM ET SPES
SOBRE A IGREJA NO MUNDO ACTUAL

CAPÍTULO I

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Constituição do homem: sua natureza

14. O homem, ser uno, composto de corpo e alma, sintetiza em si mesmo, pela sua natureza corporal, os elementos do mundo material, os quais, por meio dele, atingem a sua máxima elevação e louvam livremente o Criador 5. Não pode, portanto, desprezar a vida corporal; deve, pelo contrário, considerar o seu corpo como bom e digno de respeito, pois foi criado por Deus e há-de ressuscitar no último dia. Todavia, ferido pelo pecado, o homem experimenta as revoltas do corpo. É, pois, a própria dignidade humana que exige que o homem glorifique a Deus no seu corpo 6, não deixando que este se escravize às más inclinações do próprio coração. Não se engana o homem, quando se reconhece por superior às coisas materiais e se considera como algo mais do que simples parcela da natureza ou anónimo elemento da cidade dos homens. Pela sua interioridade, transcende o universo das coisas: tal é o conhecimento profundo que ele alcança quando reentra no seu interior, onde Deus, que perscruta os corações 7, o espera, e onde ele, sob o olhar do Senhor, decide da própria sorte. Ao reconhecer, pois, em si uma alma espiritual e imortal, não se ilude com uma enganosa criação imaginativa, mero resultado de condições físicas e sociais; atinge, pelo contrário, a verdade profunda das coisas.

Dignidade do entendimento

15. Participando da luz da inteligência divina, com razão pensa o homem que supera, pela inteligência, o universo. Exercitando incansavelmente, no decurso dos séculos, o próprio engenho, conseguiu ele grandes progressos nas ciências empíricas, nas técnicas e nas artes liberais. Nos nossos dias, alcançou notáveis sucessos, sobretudo na investigação e conquista do mundo material. Mas buscou sempre, e encontrou, uma verdade mais profunda. Porque a inteligência não se limita ao domínio dos fenómenos; embora, em consequência do pecado, esteja parcialmente obscurecida e debilitada, ela é capaz de atingir com certeza a realidade inteligível.

Finalmente, a natureza espiritual da pessoa humana encontra e deve encontrar a sua perfeição na sabedoria, que suavemente atrai o espírito do homem à busca e amor da verdade e do bem, e graças à qual ele é levado por meio das coisas visíveis até às invisíveis.

Mais do que os séculos passados, o nosso tempo precisa de uma tal sabedoria, para que se humanizem as novas descobertas dos homens. Está ameaçado, com efeito, o destino do mundo, se não surgirem homens cheios de sabedoria. E é de notar que muitas nações, pobres em bens económicos, mas ricas em sabedoria, podem trazer às outras inapreciável contribuição.

Pelo dom do Espírito Santo, o homem chega a contemplar e saborear, na fé, o mistério do plano divino 8.

Dignidade da consciência moral

16. No fundo da própria consciência, o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa voz, que sempre o está a chamar ao amor do bem e fuga do mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração: faze isto, evita aquilo. O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus; a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado 9. A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser 10. Graças à consciência, revela-se de modo admirável aquela lei que se realiza no amor de Deus e do próximo 11. Pela fidelidade à voz da consciência, os cristãos estão unidos aos demais homens, no dever de buscar a verdade e de nela resolver tantos problemas morais que surgem na vida individual e social. Quanto mais, portanto, prevalecer a recta consciência, tanto mais as pessoas e os grupos estarão longe da arbitrariedade cega e procurarão conformar-se com as normas objectivas da moralidade. Não raro, porém, acontece que a consciência erra, por ignorância invencível, sem por isso perder a própria dignidade. Outro tanto não se pode dizer quando o homem se descuida de procurar a verdade e o bem e quando a consciência se vai progressivamente cegando, com o hábito do pecado.

Grandeza da liberdade

17. Mas é só na liberdade que o homem se pode converter ao bem. Os homens de hoje apreciam grandemente e procuram com ardor esta liberdade; e com toda a razão. Muitas vezes, porém, fomentam-na dum modo condenável, como se ela consistisse na licença de fazer seja o que for, mesmo o mal, contanto que agrade. A liberdade verdadeira é um sinal privilegiado da imagem divina no homem. Pois Deus quis «deixar o homem entregue à sua própria decisão» 12, para que busque por si mesmo o seu Criador e livremente chegue à total e beatífica perfeição, aderindo a Ele. Exige, portanto, a dignidade do homem que ele proceda segundo a própria consciência e por livre adesão, ou seja movido e induzido pessoalmente desde dentro e não levado por cegos impulsos interiores ou por mera coacção externa. O homem atinge esta dignidade quando, libertando-se da escravidão das paixões, tende para o fim pela livre escolha do bem e procura a sério e com diligente iniciativa os meios convenientes. A liberdade do homem, ferida pelo pecado, só com a ajuda da graça divina pode tornar plenamente efectiva esta orientação para Deus. E cada um deve dar conta da própria vida perante o tribunal de Deus, segundo o bem ou o mal que tiver praticado 13.

A imortalidade e o enigma da morte

18. É em face da morte que o enigma da condição humana mais se adensa. Não é só a dor e a progressiva dissolução do corpo que atormentam o homem, mas também, e ainda mais, o temor de que tudo acabe para sempre. Mas a intuição do próprio coração fá-lo acertar, quando o leva a aborrecer e a recusar a ruína total e o desaparecimento definitivo da sua pessoa. O germe de eternidade que nele existe, irredutível à pura matéria, insurge-se contra a morte. Todas as tentativas da técnica, por muito úteis que sejam, não conseguem acalmar a ansiedade do homem: o prolongamento da longevidade biológica não pode satisfazer aquele desejo duma vida ulterior, invencivelmente radicado no seu coração.

Enquanto, diante da morte, qualquer imaginação se revela impotente, a Igreja, ensinada pela revelação divina, afirma que o homem foi criado por Deus para um fim feliz, para além dos limites da miséria terrena. A fé cristã ensina que a própria morte corporal, de que o homem seria isento se não tivesse pecado 14 - acabará por ser vencida, quando o homem for pelo omnipotente e misericordioso Salvador restituído à salvação que por sua culpa perdera. Com efeito, Deus chamou e chama o homem a unir-se a Ele com todo o seu ser na perpétua comunhão da incorruptível vida divina. Esta vitória, alcançou-a Cristo ressuscitado, libertando o homem da morte com a própria morte 15. Portanto, a fé, que se apresenta à reflexão do homem apoiada em sólidos argumentos, dá uma resposta à sua ansiedade acerca do seu destino futuro; e ao mesmo tempo oferece a possibilidade de comunicar em Cristo com os irmãos queridos que a morte já levou, fazendo esperar que eles alcançaram a verdadeira vida junto de Deus.

Formas e raízes do ateísmo

19. A razão mais sublime da dignidade do homem consiste na sua vocação à união com Deus. É desde o começo da sua existência que o homem é convidado a dialogar com Deus: pois, se existe, é só porque, criado por Deus por amor, é por Ele por amor constantemente conservado; nem pode viver plenamente segundo a verdade, se não reconhecer livremente esse amor e se entregar ao seu Criador. Porém, muitos dos nossos contemporâneos não atendem a esta íntima e vital ligação a Deus, ou até a rejeitam explicitamente; de tal maneira que o ateísmo deve ser considerado entre os factos mais graves do tempo actual e submetido a atento exame.

Com a palavra «ateísmo», designam-se fenómenos muito diversos entre si. Com efeito, enquanto alguns negam expressamente Deus, outros pensam que o homem não pode afirmar seja o que for a seu respeito; outros ainda, tratam o problema de Deus de tal maneira que ele parece não ter significado. Muitos, ultrapassando indevidamente os limites das ciências positivas, ou pretendem explicar todas as coisas só com os recursos da ciência, ou, pelo contrário, já não admitem nenhuma verdade absoluta. Alguns, exaltam de tal modo o homem, que a fé em Deus perde toda a força, e parecem mais inclinados a afirmar o homem do que a negar Deus. Outros, concebem Deus de uma tal maneira, que aquilo que rejeitam não é de modo algum o Deus do Evangelho. Outros há que nem sequer abordam o problema de Deus: parecem alheios a qualquer inquietação religiosa e não percebem por que se devem ainda preocupar com a religião. Além disso, o ateísmo nasce muitas vezes dum protesto violento contra o mal que existe no mundo, ou de se ter atribuído indevidamente o carácter de absoluto a certos valores humanos que passam a ocupar o lugar de Deus. A própria civilização actual, não por si mesma mas pelo facto de estar muito ligada com as realidades terrestres, torna muitas vezes mais difícil o acesso a Deus.

Sem dúvida que não estão imunes de culpa todos aqueles que procuram voluntariamente expulsar Deus do seu coração e evitar os problemas religiosos, não seguindo o ditame da própria consciência; mas os próprios crentes, muitas vezes, têm responsabilidade neste ponto. Com efeito, o ateísmo, considerado no seu conjunto, não é um fenómeno originário, antes resulta de várias causas, entre as quais se conta também a reacção crítica contra as religiões e, nalguns países, principalmente contra a religião cristã. Pelo que os crentes podem ter tido parte não pequena na génese do ateísmo, na medida em que, pela negligência na educação da sua fé, ou por exposições falaciosas da doutrina, ou ainda pelas deficiências da sua vida religiosa, moral e social, se pode dizer que antes esconderam do que revelaram o autêntico rosto de Deus e da religião.

O ateísmo sistemático

20. O ateísmo moderno apresenta muitas vezes uma forma sistemática, a qual, prescindindo de outros motivos, leva o desejo de autonomia do homem a um tal grau que constitui um obstáculo a qualquer dependência com relação a Deus. Os que professam tal ateísmo, pretendem que a liberdade consiste em ser o homem o seu próprio fim, autor único e demiurgo da sua história; e pensam que isso é incompatível com o reconhecimento de um Senhor, autor e fim de todas as coisas; ou que, pelo menos, torna tal afirmação plenamente supérflua. O sentimento de poder que os progressos técnicos hodiernos deram ao homem pode favorecer esta doutrina.

Não se deve passar em silêncio, entre as formas actuais de ateísmo, aquela que espera a libertação do homem sobretudo da sua libertação económica. A esta, dizem, opõe-se por sua natureza a religião, na medida em que, dando ao homem a esperança duma enganosa vida futura, o afasta da construção da cidade terrena. Por isso, os que professam esta doutrina, quando alcançam o poder, atacam violentamente a religião, difundindo o ateísmo também por aqueles meios de pressão de que dispõe o poder público, sobretudo na educação da juventude.

Atitude da Igreja perante o ateísmo

21. A Igreja, fiel a Deus e aos homens, não pode deixar de reprovar com dor e com toda a firmeza, como já o fez no passado 16, essas doutrinas e actividades perniciosas, contrárias à razão e à experiência comum dos homens, e que destronam o homem da sua inata dignidade.

Procura, no entanto, descobrir no espírito dos ateus as causas da sua negação de Deus, e, consciente da gravidade dos problemas levantados pelo ateísmo, e, levada pelo amor dos homens, entende que elas devem ser objecto de um exame sério e profundo.

A Igreja defende que o reconhecimento de Deus de modo algum se opõe à dignidade do homem, uma vez que esta dignidade se funda e se realiza no próprio Deus. Com efeito, o homem inteligente e livre, foi constituído em sociedade por Deus Criador; mas é sobretudo chamado a unir-se, como filho, a Deus e a participar na sua felicidade. Ensina, além disso, a Igreja que a importância das tarefas terrenas não é diminuída pela esperança escatológica, mas que esta antes reforça com novos motivos a sua execução. Pelo contrário, se faltam o fundamento divino e a esperança da vida eterna, a dignidade humana é gravemente lesada, como tantas vezes se verifica nos nossos dias, e os enigmas da vida e da morte, do pecado e da dor, ficam sem solução, o que frequentemente leva os homens ao desespero.

Entretanto, cada homem permanece para si mesmo um problema insolúvel, apenas confusamente pressentido. Ninguém pode, na verdade, evitar inteiramente esta questão em certos momentos, e sobretudo nos acontecimentos mais importantes da vida. Só Deus pode responder plenamente e com toda a certeza, Ele que chama o homem a uma reflexão mais profunda e a uma busca mais humilde.

Quanto ao remédio para o ateísmo, ele há-de vir da conveniente exposição da doutrina e da vida íntegra da Igreja e dos seus membros. Pois a Igreja deve tornar presente e como que visível a Deus Pai e a seu Filho encarnado, renovando-se e purificando-se continuamente sob a direcção do Espírito Santo 17. Isto há-de alcançar-se, antes de mais, com o testemunho duma fé viva e adulta, educada de modo a poder perceber claramente e superar as dificuldades. Magnífico testemunho desta fé, deram e continuam a dar inúmeros mártires. Ela deve manifestar a sua fecundidade, penetrando toda a vida dos fiéis, mesmo a profana, levando-os à justiça e ao amor, sobretudo para com os necessitados. Finalmente, o que contribui mais que tudo para manifestar a presença de Deus é a caridade fraterna dos fiéis que unânimemente colaboram com a fé do Evangelho 18 e se apresentam como sinal de unidade.

Ainda que rejeite inteiramente o ateísmo, todavia a Igreja proclama sinceramente que todos os homens, crentes e não-crentes, devem contribuir para a recta construção do mundo no qual vivem em comum. O que não é possível sem um prudente e sincero diálogo. Deplora, por isso, a discriminação que certos governantes introduzem entre crentes e não-crentes, com desconhecimento dos direitos fundamentais da pessoa humana. Para os crentes, reclama a liberdade efectiva, que lhes permita edificar neste mundo também o templo de Deus. Quanto aos ateus, convida-os cortêsmente a considerar com espírito aberto o Evangelho de Cristo.

Pois a Igreja sabe perfeitamente que, ao defender a dignidade da vocação do homem, restituindo a esperança àqueles que já desesperam do seu destino sublime, a sua mensagem está de acordo com os desejos mais profundos do coração humano. Longe de diminuir o homem, a sua mensagem contribui para o seu bem, difundindo luz, vida e liberdade; e, fora dela, nada pode satisfazer o coração humano: «fizeste-nos para Ti», Senhor, e o nosso coração está inquieto, enquanto não repousa em Ti» 19.
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Notas:
5. Cfr. Dan. 3, 57-90.
6. Cfr. 1 Cor. 6, 13-20.
7. Cfr. 1 Reis 16,7; Jer. 17.10.
8. Cfr. Ecli. 17, 7-8.
9. Cfr. Rom. 2, 14-16.
10. Cfr. Pio XII, radiomensagem acerca da formação da consciência cristã nos jovens, 23 março 1952: AAS 44 (1952), p. 271.
11. Cfr. Mt. 22, 37-40; Gál. 5,14.
12 Cfr. Ecli. 15,14.
13. Cfr. 2 Cor. 5,10.
14. Cfr. Sab. 1,13; 2, 23-24; Rom. 5,21; 6,23; Tg. 1,15.
15. Cfr. 1 Cor. 15, 56-57.
16. Cfr. Pio XI, Enc. Divini Redemptoris, 19 março 1937: AAS 29 (1937), p. 65-106; Pio XII, Enc. Ad Apostolorum Principis, 29 junho 1958: AAS 50 (1958), p. 601-614; João XXIII, Enc. Mater et Magistra, 15 maio 1961: AAS 53 (1961) p. 451-453; Paulo VI, Enc. Ecclesiam Suam, 6 agosto 1964: AAS 56 (1964), p. 651-653.
17. Cfr. Conc. Vat. II, Const. dogm. De Ecclesia, Lumen gentium, cap. I, n. 8: AAS 57 (1965), p. 12.
18. Cfr. Fil. 1,27.

19. S. Agostinho, Confissões, I, 1: PL 32, 661.