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23/05/2014

Senhor, socorre-me.

Sinais inequívocos da verdadeira Cruz de Cristo: a serenidade, um profundo sentimento de paz, um amor disposto a qualquer sacrifício, uma eficácia grande, que dimana do próprio Lado de Jesus, e sempre – de modo evidente – a alegria: uma alegria que procede de saber que, quem se entrega de verdade, está junto da Cruz e, por conseguinte, junto de Nosso Senhor. (Forja, 772)

Aconselharei a quem quiser aprender com a experiência de um pobre sacerdote que não pretende falar senão de Deus, que, quando a carne tentar recobrar os seus foros perdidos, ou a soberba – que é pior – se revoltar e se encabritar, correr a abrigar-se nessas divinas fendas abertas no Corpo de Cristo pelos cravos que O seguraram à Cruz e pela lança que atravessou o Seu peito. Vamos como nos comover mais; derramemos nas Chagas de Nosso Senhor todo esse amor humano... e esse amor divino. Que isto é desejar a união, sentir-se irmão de Cristo, ser seu consanguíneo, filho da mesma Mãe, porque foi Ela que nos levou até Jesus.

Afã de adoração, ânsias de desagravo com sossegada suavidade e com sofrimento. Far-se-á vida na nossa vida a afirmação de Jesus: aquele que não toma a sua cruz para me seguir, não é digno de mim. E Nosso Senhor manifesta-se-nos cada vez mais exigente, pede-nos reparação e penitência, até nos fazer experimentar o fervoroso desejo de querer viver para Deus, pregado na cruz juntamente com Cristo. Mas guardamos este tesouro em vasos de barro frágil e quebradiço, para que se reconheça que a grandeza do poder que se vê em nós é de Deus e não nossa.

Vemo-nos acossados por toda a espécie de atribulações e nem por isso perdemos o ânimo; encontramo-nos em grandes apuros, mas não desesperados, ou sem recursos; somos perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não inteiramente perdidos: trazemos sempre no nosso corpo por toda a parte a mortificação de Jesus.


Parece-nos, além disso, que Nosso Senhor não nos escuta, que andamos enganados, que só se ouve o monólogo da nossa voz. Encontramo-nos como se não tivéssemos apoio na terra e fossemos abandonados pelo Céu. No entanto, é verdadeiro e prático o nosso horror ao pecado, mesmo ao pecado venial. Com a obstinação da Cananeia, prostramo-nos rendidamente como ela, que O adorou, implorando: Senhor, socorre-me. E desaparece a obscuridade, superada pela luz do Amor. (Amigos de Deus, nn. 303–304)

As sete palavras de Cristo na Cruz 23

Capítulo 4: Explicação textual da segunda palavra: “Amém, Eu te digo: Hoje estarás comigo no paraíso. 5

Entrementes — como seu Corpo sempre fora glorioso — imediatamente após a morte, entrou no gozo da Glória que lhe pertencia. A isso se referiu — após a Ressurreição — nestes termos: “não era necessário que o Cristo padecesse e entrasse deste modo em sua Glória?” Essa glória Ele chama sua própria — pois está em seu poder fazer outros partícipes dela, e por essa razão Ele é chamado “Rei da Glória” 17 e “Senhor da Glória” 18 e “Rei dos Reis” 19, dizendo Ele mesmo a seus apóstolos: “Eu, do que é meu, disponho um Reino para vós” 20. Ele, em verdade, pode receber glória e reino, mas nós não podemos alcançar nem um nem outro; fomos pois convidados a entrar “no gozo do teu Senhor” 21, e não no nosso próprio. Este é então o reino de que falou o bom ladrão quando disse: “quando retornardes com vosso Reino”.

Entrementes, não devemos pôr de lado as muitas excelentes virtudes que se manifestam na oração do santo ladrão. Um breve bosquejo delas nos preparará para a resposta do Cristo à petição: “senhor, lembrai-vos de mim quando retornardes com vosso reino”. Em primeiro lugar, chama-o Senhor, para mostrar que se considera a si como servo, ou melhor, como um escravo redimido, reconhecendo que o Cristo é seu Redentor. Logo acrescenta um pedido simples, mas cheio de fé, esperança, amor, devoção e humildade: “lembrai-vos de mim”. Não disse: “se puderes, lembrai-vos de mim”, pois acredita firmemente que o Cristo pode de fato fazê-lo. Não disse: “por favor, Senhor, lembrai-vos de mim”, pois tem inteira confiança em sua caridade e compaixão. Não disse: “desejo, Senhor, reinar convosco em vosso Reino”, pois a humildade o proibia. Enfim, não pede nenhum favor especial, mas tão simplesmente reza: “lembrai-vos de mim”, como se dissesse: “tudo que desejo, Senhor, é que vos dignais recordar-me, inclinando vossos benignos olhos sobre mim, pois sei que sois Todo-Poderoso e sabeis tudo; por isso, ponho minha confiança em vossa bondade e vosso amor”. Isso fica claro com as palavras conclusivas de sua oração: “quando retornardes com vosso reino”, que não buscam nada perecível e vão, senão que aspiram a algo eterno e sublime.

são roberto belarmino

(Tradução: Permanência, revisão ama).

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Notas:
17. Sl 24,8.
18. 1 Cor 2,8.
19. Ap 19,16.
20. Lc 22,29.
21. Mt 25,21.


Pequena agenda do cristão


Sexta-Feira

(Coisas muito simples, curtas, objectivas)

Propósito: Contenção; alguma privação; ser humilde.

Senhor: Ajuda-me a ser contido, a privar-me de algo por pouco que seja, a ser humilde. Sou formado por este barro duro e seco que é o meu carácter, mas não Te importes, Senhor, não Te importes com este barro que não vale nada. Parte-o, esfrangalha-o nas Tuas mãos amorosas e, estou certo, daí sairá algo que se possa - que Tu possas - aproveitar. Não dês importância à minha prosápia, à minha vaidade, ao meu desejo incontido de protagonismo e evidência. Não sei nada, não posso nada, não tenho nada, não valho nada, não sou absolutamente nada.

Lembrar-me: Filiação divina.

Ser Teu filho Senhor! De tal modo desejo que esta realidade tome posse de mim, que me entrego totalmente nas Tuas mãos amorosas de Pai misericordioso, e embora não saiba bem para que me queres, para que queres como filho a alguém como eu, entrego-me confiante que me conheces profundamente, com todos os meus defeitos e pequenas virtudes e é assim, e não de outro modo, que me queres ao pé de Ti. Não me afastes, Senhor. Eu sei que Tu não me afastarás nunca. Peço-Te que não permitas que alguma vez, nem por breves instantes, seja eu a afastar-me de Ti.

Pequeno exame: Cumpri o propósito que me propus ontem?


Temas para meditar 123

Dignidade humana

Pio XII falou de reanimação prolongada inutilmente. Isto não tem nada que ver com eutanásia. Não se trata de matar as pessoas mas sim de saber em que momento o uso das técnicas mais poderosas da medicina é desproporcionada com o estado do paciente.
Se entendi o que o Papa disse, a ideia era a seguinte: ante uma morte natural eminente e inevitável, o médico não tem nenhuma obrigação de pôr em funcionamento um ventilador, por exemplo, para prolongar a agonia por umas horas. Isto parece-me boa medicina, ou simplesmente sentido comum.
É confortável saber que também é teologia.


(Prof. Jerôme Lejeune, Catedrático de Genética Fundamental na Sorbone, “Paris Match”, 07 Nov. 1980)

Jesus Cristo e a Igreja 54 perguntas e repostas: 15

Como foram transmitidos os Evangelhos?

É sabido que não possuímos os manuscritos originais dos evangelhos, como de igual modo o de nenhum livro da antiguidade. Os escritos transmitiam-se mediante cópias manuscritas em papiro e mais tarde em pergaminho. Os evangelhos e os primeiros escritos cristãos não são alheios a este tipo de transmissão. O Novo Testamento deixa já perceber que algumas cartas de São Paulo se copiaram e se transmitem num corpo de escritos (2 Pe 3, 15-16), e o mesmo acontece com os evangelhos: as expressões de São Justino, Santo Ireneu, Orígenes etc., referidas numa pergunta anterior (Quem foram os Evangelistas?) dão a entender que os evangelhos canónicos foram copiados desde o primeiro momento e transmitidos em conjunto.

O material utilizado nos primeiros séculos da era cristã foi o papiro e a partir do século III começou a usar-se o pergaminho, mais resistente e duradouro. Só a partir do século XIV se começou a utilizar o papel.
Os manuscritos que conservamos dos evangelhos, com um estudo atento que se denomina crítica textual, mostram-nos que, em comparação com a maioria das obras da antiguidade, a fiabilidade que podemos dar ao texto que dispomos é muito grande.
Em primeiro lugar, pela quantidade de manuscritos.
Da Ilíada por exemplo, temos menos de 700 manuscritos, mas de outras obras, como os Anales de Tácito, só temos uns poucos – e dos seus primeiros seis livros só um. Pelo contrário, do Novo Testamento temos cerca de 5.400 manuscritos gregos, sem contar as versões antigas noutros idiomas e as citações do texto em obras de escritores antigos.
Além disso, existe a questão da distância entre a data de composição do livro e a data do manuscrito mais antigo. Enquanto que para muitíssimas obras clássicas da antiguidade essa distância é de quase dez séculos, o manuscrito mais antigo do Novo Testamento (o Papiro de Rylands) é trinta ou quarenta anos posterior ao momento de composição do evangelho de São João. Do século III temos papiros (os Papiros de Bodmer e Chester Beatty) que mostram que os evangelhos canónicos já coleccionados se transmitiam em códices; e desde o século IV os testemunhos são quase intermináveis.


Obviamente, ao comparar a multiplicidade de manuscritos, descobrem-se erros, más leituras, etc. A crítica textual dos evangelhos – e dos manuscritos antigos – examina as variantes que são significativas, tentando descobrir a sua origem – às vezes, um copista tenta harmonizar o texto de um evangelho com o de outro, outro tenta explicar o que lhe parece uma expressão incoerente, etc. – e procurando, dessa maneira, estabelecer como poderia ser o texto original. Os especialistas coincidem em afirmar que os evangelhos são os textos da antiguidade que melhor conhecemos. Baseiam-se para isso na evidência do que foi referido no parágrafo anterior e também no facto de que a comunidade que transmite os textos é uma comunidade crítica, de pessoas que comprometem a sua vida com o que é afirmado nos textos e que, obviamente, não comprometeriam a sua vida numas ideias criadas para a ocasião.


© www.opusdei.org - Textos elaborados por uma equipa de professores de Teologia da Universidade de Navarra, dirigida por Francisco Varo.

Evangelho diário, comentário, Leitura espiritual (Enc Mater et Magistra Introdução 1 a 35)

Tempo de Páscoa

V Semana 


Evangelho: Jo 15, 12-17

12 «O Meu preceito é este: Amai-vos uns aos outros, como Eu vos amei. 13 Não há maior amor do que dar a própria vida pelos seus amigos.14 Vós sois Meus amigos se fizerdes o que vos mando.15 Não mais vos chamarei servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas chamo-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de Meu Pai. 16 Não fostes vós que Me escolhestes, mas fui Eu que vos escolhi, e vos destinei para que vades e deis fruto, e para que o vosso fruto permaneça, a fim de que tudo o que pedirdes a Meu Pai em Meu nome, Ele vo-lo conceda. 17 Isto vos mando: Amai-vos uns aos outros.

Comentário

O preceito que Jesus nos deixa parece muito simples.
Não manda que observemos regras, normas ou rituais, que cumpramos uma série de obrigações, que tenhamos comportamentos específicos. Só quer que nos amemos uns aos outros.
A história humana atesta bem de quão difícil de cumprir é este 'mandamento novo'.

Por outro lado, nós cristãos, sabemos bem o poder extraordinário do amor.
Porque, no fim e ao cabo, amar é dar e receber fácil se torna perceber porque são tão felizes os que se amam.

(ama, comentário sobre Jo 15, 12-17, 2012.05.11


Leitura espiritual
Doc. do Conc. Vatic. II


CARTA ENCÍCLICA
MATER ET MAGISTRA
DE SUA SANTIDADE JOÃO XXIII
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS PATRIARCAS, PRIMAZES, ARCEBISPOS, BISPOS E OUTROS ORDINÁRIOS DO LUGAR, EM PAZ E COMUNHÃO COM A SÉ APOSTÓLICA, BEM COMO A TODO O CLERO E FIÉIS DO ORBE CATÓLICO

SOBRE A RECENTE EVOLUÇÃO DA QUESTÃO SOCIAL À LUZ DA DOUTRINA CRISTÃ

Introdução

1. Mãe e mestra de todos os povos, a Igreja Universal foi fundada por Jesus Cristo, a fim de que todos, vindo no seu seio e no seu amor, através dos séculos, encontrem plenitude de vida mais elevada e penhor seguro de salvação. A esta Igreja, "coluna e fundamento da verdade" (cf. 1 Tm 3, 15), o seu Fundador santíssimo confiou uma dupla missão: de gerar alhos, e de os educar e dirigir, orientando, com solicitude materna, a vida dos indivíduos e dos povos, cuja alta dignidade ela sempre desveladamente respeitou e defendeu.
2. O cristianismo é, de facto, a realidade da união da terra com o céu, uma vez que assume o homem, na sua realidade concreta de espírito e matéria, inteligência e vontade, e o convida a elevar o pensamento, das condições mutáveis da vida terrena, até às alturas da vida eterna, onde gozará sem limites da plenitude da felicidade e da paz.
3. De modo que a Santa Igreja, apesar de ter como principal missão santificar as almas e de as fazer participar dos bens da ordem sobrenatural, ao mesmo tempo não deixa de preocupar-se com as exigências da vida cotidiana dos homens, não só no que diz respeito ao sustento e às condições de vida, mas também no que se refere à prosperidade e à civilização em seus múltiplos aspectos, dentro do condicionalismo das várias épocas.
4. Ao realizar tudo isto, a Santa Igreja põe em prática o mandamento de Cristo, seu Fundador, que se refere sobretudo à salvação eterna do homem, quando diz: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" (Jo 14,6) e "Eu sou a luz do mundo" (Jo 8,12); mas noutro passo, ao contemplar a multidão faminta, exclamou, num lamento sentido: "Tenho pena de toda esta gente" (Mc 8,2); manifestando, assim, como se preocupa também com as exigências materiais dos povos. E não foi só com palavras que o Divino Redentor demonstrou esse cuidado: provou-o igualmente com os exemplos da sua vida, multiplicando, várias vezes, por milagres, o pão que havia de saciar a fome da multidão que o seguia.
5. E com este pão, dado para alimentar o corpo, quis anunciar e significar aquele pão celestial das almas, que iria deixar aos homens na véspera da sua Paixão.

6. Não é, pois, para admirar, que a Igreja católica, à imitação de Cristo e em cumprimento das suas disposições, tenha mantido sempre bem alto, através de dois mil anos, isto é, desde a instituição dos antigos diáconos, até aos nossos tempos, o facho da caridade, não menos com os preceitos do que com os numerosos exemplos que vem proporcionando. Caridade, que ao conjugar harmoniosamente os mandamentos do amor mútuo com a prática dos mesmos, realiza de modo admirável as exigências desta dupla doação que em si resume a doutrina e a acção social da Igreja.

7. Documento verdadeiramente insigne desta doutrina e desta acção desenvolvida pela Igreja ao longo dos séculos, deve considerar-se a imortal encíclica Rerum Novarum, [1] que o nosso predecessor de feliz memória, Leão XIII, há setenta anos promulgou para formular os princípios que haviam de resolver cristãmente a questão operária.

8. Poucas vezes a palavra de um papa teve ressonância tão universal, pela profundeza e vastidão da matéria tratada, bem como pelo vigor incisivo da expressão. A linha de rumo ali apontada e as advertências feitas revestiram-se de tal importância, que nunca poderão cair no esquecimento. Foi aberto um caminho novo à acção da Igreja. O Pastor supremo, fazendo próprios os sofrimentos, as queixas e as aspirações dos humildes e dos oprimidos, uma vez mais se ergueu como defensor dos seus direitos.

9. E hoje, apesar de ter passado tanto tempo, ainda se mantém real a eficácia dessa mensagem, não só nos documentos dos papas sucessores de Leão XIII, os quais, quando ensinam em matéria social, continuamente se referem à encíclica leonina, ora para nela se inspirarem, ora para esclarecerem o seu alcance, e sempre para estimular a acção dos católicos; mas até na própria organização dos povos. Tudo isso mostra como os sólidos princípios, as directrizes históricas e as paternais advertências contidas na magistral encíclica do nosso predecessor conservam ainda hoje o seu valor e sugerem, mesmo, critérios novos e vitais, para os homens poderem avaliar o conteúdo e as proporções da questão social, tal como hoje se apresenta, e decidir-se a assumir as responsabilidades daí resultantes.

PRIMEIRA PARTE

ENSINAMENTOS DA ENCÍCLICA RERUM NOVARUM  E OPORTUNOS DESENVOLVIMENTOS NO MAGISTÉRIO DE PIO XI E PIO XII

A época da encíclica "Rerum Novarum"

10. Os tempos em que Leão XIII falou eram de transformações radicais, de fortes contrastes e amargas rebeliões. As sombras daqueles tempos fazem-nos apreciar melhor a luz que promana do seu ensinamento.

11. Como é sabido de todos, o conceito do mundo económico, então mais difundido e posto em prática, era um conceito naturalista, negador de toda a relação entre moral e economia. O motivo único da acção económica, dizia-se, é o interesse individual. Lei suprema reguladora das relações entre os operadores económicos é a livre concorrência sem limites. Juros dos capitais, preços das mercadorias e dos serviços, benefícios e salários, são determinados, de modo exclusivo e automático, pelas leis do mercado. O Estado deve abster-se de qualquer intervenção no campo económico. Os sindicatos, nalguns países, eram proibidos; noutros, tolerados ou considerados como de direito privado.

12. Num mundo económico assim concebido, a lei do mais forte encontrava plena justificação no plano teórico e dominava no das relações concretas entre os homens. E daí derivava uma ordem económica radicalmente perturbada.

13. Enquanto, em mãos de poucos, se acumulavam riquezas imensas, as classes trabalhadoras iam gradualmente caindo em condições de crescente mal-estar. Salários insuficientes ou de fome, condições de trabalho esgotadoras, que não tinham nenhuma consideração pela saúde física, pela moral e pela fé religiosa. Sobretudo inumanas as condições de trabalho a que eram frequentemente submetidas as crianças e as mulheres. Sempre ameaçador o espectro do desemprego. A família, sujeita a contínuo processo de desintegração.

14. Daí uma profunda insatisfação nas classes trabalhadoras, entre as quais se propagava e se consolidava o espírito de protesto e de rebelião. E assim se explica porque encontraram tanto aplauso, naqueles meios, as teorias extremistas, que propunham remédios piores que os próprios males.

Os caminhos da reconstrução

15. Coube a Leão XIII, nos momentos difíceis daquele conflito, publicar a sua mensagem social, baseada na consideração da natureza humana e informada pelas normas e o espírito do Evangelho; mensagem que, desde que foi conhecida, se bem que não faltassem oposições compreensíveis, suscitou admiração e entusiasmo universais. Certamente, não era a primeira vez que a Sé Apostólica descia à arena, em defesa dos interesses materiais dos menos favorecidos. Outros documentos do mesmo Leão XIII tinham já preparado o caminho; mas, desta vez, formulava-se uma síntese orgânica dos princípios e desenhava-se uma perspectiva histórica tão ampla que fizeram da encíclica Rerum Novarum um verdadeiro resumo do catolicismo no campo económico-social.

16. Nem careceu de audácia este gesto. Enquanto alguns ousavam acusar a Igreja católica de se limitar, perante a questão social, a pregar resignação aos pobres e a exortar os ricos à generosidade, Leão XIII não hesitou em proclamar e defender os legítimos direitos do operário. Ao encetar a exposição dos princípios da doutrina católica no campo social, declarava com solenidade: "Entramos confiadamente nesta matéria e fazemo-lo com pleno direito, já que se trata de uma questão para a qual não é possível encontrar solução eficaz, sem recorrer à religião e à Igreja".[2]

17. Bem conheceis, veneráveis irmãos, os princípios basilares expostos pelo imortal Pontífice, com tanta clareza como autoridade, segundo os quais deve ser reconstruído o sector económico e social da comunidade humana.

18. Dizem respeito, primeiramente, ao trabalho que deve ser considerado, em teoria e na prática, não mercadoria, mas um modo de expressão directa da pessoa humana. Para a grande maioria dos homens, o trabalho é a única fonte dos meios de subsistência. Por isso, a sua remuneração não pode deixar-se à mercê do jogo automático das leis do mercado; pelo contrário, deve ser estabelecida segundo as normas da justiça e da equidade, que, em caso contrário, ficariam profundamente lesadas, ainda mesmo que o contrato de trabalho fosse livremente ajustado por ambas as partes.

19. A propriedade privada, mesmo dos bens produtivos, é um direito natural que o Estado não pode suprimir. Consigo, intrinsecamente, comporta uma função social, mas é igualmente um direito, que se exerce em proveito próprio e para bem dos outros.

20. O Estado, cuja razão de ser é a realização do bem comum na ordem temporal, não pode manter-se ausente do mundo económico; deve intervir com o fim de promover a produção de uma abundância suficiente de bens materiais, "cujo uso é necessário para o exercício da virtude"; [3] e também para proteger os direitos de todos os cidadãos, sobretudo dos mais fracos, como são os operários, as mulheres e as crianças. De igual modo, é dever seu indeclinável contribuir ativamente para melhorar as condições de vida dos operários.

21. Compete ainda ao Estado velar para que as relações de trabalho sejam reguladas segundo a justiça e a equidade, e para que nos ambientes de trabalho não seja lesada, nem no corpo nem na alma, a dignidade de pessoa humana. A este propósito, a encíclica leonina aponta as linhas que vieram a inspirar a legislação social dos estados contemporâneos: linhas, como já observava Pio XI na encíclica Quadragesimo Anno, [4] que eficazmente contribuíram para o aparecimento e a evolução de um novo e nobilíssimo ramo do direito, o "direito do trabalho".

22. E aos trabalhadores, afirma ainda a encíclica, reconhece-se o direito natural de constituírem associações, ou só de operários, ou mistas de operários e patrões; como também o direito de darem às mesmas a estrutura orgânica que julgarem mais conveniente para assegurarem a obtenção dos seus legítimos interesses económico-profissionais, e o direito de agirem, no interior delas, de modo autônomo e por própria iniciativa, para a consecução dos mesmos interesses.

23. Operários e empresários devem regular as relações mútuas, inspirando-se no princípio da solidariedade humana e da fraternidade cristã; uma vez que, tanto a concorrência de tipo liberal, como a luta de classes no sentido marxista, são contrárias à natureza e à concepção cristã da vida.

24. Eis, veneráveis irmãos, os princípios fundamentais em que deve basear-se, para ser sã, a ordem económica e social.

25. Não devemos, pois, admirar-nos, se os católicos mais eminentes, atendendo aos apelos da encíclica, empreenderam iniciativas múltiplas, para traduzirem em prática aqueles princípios. De facto, nessa tarefa se empenharam, sob o impulso de exigências objectivas da natureza, homens de boa vontade de todos os países do mundo.

26. Por isso, a encíclica, com razão, foi e continua a ser considerada como a Magna Carta [5] da reconstrução económica e social da época moderna.

A encíclica "Quadragesimo Anno"

27. Pio XI, nosso predecessor de santa memória, comemorou o quadragésimo aniversário da encíclica Rerum Novarum, com um novo documento solene: a encíclica Quadragesimo Anno. [6]

28. Nesta, o sumo-pontífice insiste no direito e dever da Igreja de prestar a sua contribuição insubstituível para a feliz solução dos problemas sociais mais urgentes e mais graves, que angustiam a família humana; confirma os princípios fundamentais e as directrizes históricas da encíclica leonina; e aproveita a ocasião para precisar alguns pontos de doutrina sobre os quais tinham surgido dúvidas, mesmo entre católicos, e para desenvolver o pensamento social cristão, atendendo às novas condições dos tempos.

29. As dúvidas, levantadas diziam respeito, de modo especial, à propriedade privada, ao regime dos salários, e à atitude dos católicos perante uma forma de socialismo moderado.

30. Quanto à propriedade privada, o nosso predecessor torna a afirmar o seu carácter de direito natural, e acentua o seu aspecto e a sua função social.

31. Com relação ao regime de salários, nega a tese que o declara injusto por natureza; mas reprova ao mesmo tempo as formas inumanas e injustas que, não poucas vezes, se praticou; inculca e desenvolve os critérios em que se deve inspirar e as condições a que é preciso satisfazer para não se lesar a justiça nem a equidade.

32. Nesta matéria, o nosso predecessor indica claramente ser vantajoso, nas condições atuais, suavizar o contrato de trabalho com elementos tomados do contrato de sociedade, de modo que "os operários se tornem participantes ou na propriedade ou na gestão, ou, em certa medida, nos lucros obtidos". [7]

33. Deve considerar-se da mais alta importância doutrinal e prática a afirmação de Pio XI que o trabalho não se pode "avaliar justamente nem retribuir adequadamente, quando não se tem em conta a sua natureza social e individual". [8] Por conseguinte, para determinar a remuneração, declara o papa, a justiça exige que se tenham em conta, além das necessidades de cada trabalhador e a sua responsabilidade familiar, a situação da empresa a que os operários prestam o seu trabalho, e ainda as exigências da economia geral. [9]

34. Entre comunismo e cristianismo, o pontífice declara novamente que a oposição é radical, e acrescenta não se poder admitir de maneira alguma que os católicos adiram ao socialismo moderado: quer porque ele foi construído sobre uma concepção da vida fechada no temporal, com o bem-estar como objectivo supremo da sociedade; quer porque fomenta uma organização social da vida comum tendo a produção como fim único, não sem grave prejuízo da liberdade humana; quer ainda porque lhe falta todo o princípio de verdadeira autoridade social.

35. Nem deixa Pio XI de notar que, nos quarenta anos passados desde a promulgação da encíclica leonina, a situação histórica mudara profundamente. A livre concorrência, em virtude da dialéctica que lhe é própria, tinha acabado por destruir-se a si mesma ou pouco menos; levara a uma grande concentração da riqueza e além disso à acumulação de um poder económico desmedido nas mãos de poucos, "os quais, muitas vezes nem sequer eram proprietários, mas simples depositários e administradores do capital, de que dispunham a seu bel-prazer". [10]

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Notas:
[1] Acta Leonis XIII, 11(1891), pp, 97-144.
[2] Cf. ibid. p.107.
[3] S. Tomás, De Regimine Principum, I,15.
[4] Cf. AAS, 23 (1931), p.185.
[5] Cf. ibid. p.189.
[6] Cf. ibid. pp.177-228.
[7] Cf. ibid. p.199.
[8] Cf. ibid, p. 200.
[9] Cf. ibid, p. 201.
[10] Cf. ibid. p. 210-211.







Tratado da lei 01

Devemos, consequentemente, tratar dos princípios exteriores dos actos. Ora, o princípio externo, que inclina para o mal, é o diabo, de cuja tentação já tratamos na Primeira Parte. E o princípio externo, que move para o bem, é Deus, que nos instrui pela lei e nos ajuda pela graça.

Por onde, devemos tratar, primeiro, da lei e, segundo, da graça.

Ora, quanto à lei, devemos considerá-la, primeiro, em geral. Segundo, nas suas partes.

E, sobre a lei, em geral, há tríplice consideração a fazer. A primeira é sobre a sua essência. A segunda, sobre a diferença entre as leis. A terceira, sobre os efeitos da lei.

Questão 90: Da essência da lei.
Questão 91: Da diversidade das leis.
Questão 92: Dos efeitos da lei.
Questão 93: Da lei eterna.
Questão 94: Da lei natural.
Questão 95: Da Lei humana
Questão 96: Do poder da lei humana.
Questão 97: Da mudança das leis.
Questão 98: Da lei antiga.
Questão 99: Dos preceitos da lei antiga.
Questão 100: Dos preceitos morais da lei antiga.
Questão 101: Dos preceitos cerimoniais em si mesmos.
Questão 102: Das causas dos preceitos cerimoniais.
Questão 103: Da duração dos preceitos cerimoniais.
Questão 104: Dos preceitos judiciais.
Questão 105: Da razão de ser dos preceitos judiciais.
Questão 106: Da lei do Evangelho, chamada nova, em si mesma considerada.
Questão 107: Da comparação entre a lei nova e a antiga.
Questão 108: Do conteúdo da lei nova.

Questão 90: Da essência da lei.

Na primeira questão discutem-se quatro artigos:
Art. 1 — Se a lei é algo de racional.
Art. 2 — Se a lei se ordena sempre para o bem comum, como para o fim.
Art. 3 — Se a razão particular pode legislar.
Art. 4 — Se a promulgação é da essência da lei.

Art. 1 — Se a lei é algo de racional.

O primeiro discute-se assim. — Parece que a lei não tem nada de racional.

1. — Pois, diz o Apóstolo (Rm 7, 23): Sinto nos meus membros outra lei, etc. Ora, o racional não está nos membros, porque a razão não se serve de órgãos corpóreos. Logo, a lei não tem nada de racional.

2. Demais. — A razão só inclui a potência, o hábito e o acto. Ora, a lei não é nenhuma potência da razão. E nem um hábito qualquer dela, porque os seus hábitos são as virtudes intelectuais, de que já se tratou (a. 57). Nem um acto, pois, se o fosse, cessando ele, como se dá com os adormecidos, cessaria a lei. Logo, a lei não tem nada de racional.

3. Demais. — A lei move os que se lhe submetem, a agir rectamente. Ora, mover à acção pertence propriamente à vontade, como resulta claro do que já foi dito (q. 9, a. 1). Logo, a lei não depende da razão, mas, antes, da vontade, conc­forme ao que também diz o Jurisperito: O que apraz ao príncipe tem força de lei.

Mas, em contrário, à lei pertence ordenar e proibir. Ora, ordenar é acto da razão, como já se demonstrou (q. 17, a. 1). Logo, a lei é algo de racional.

A lei é uma regra e medida dos actos, pela qual somos levados à acção ou dela impedidos. Pois, lei vem de ligar, porque obriga a agir. Ora, a regra e a medida dos actos humanos é a razão, pois é deles o princípio primeiro, como do sobredito resulta (q. 1, a. 1 ad 3). Porque é próprio da razão ordenar para o fim, princípio primeiro do agir, segundo o Filósofo. Ora, o que, em cada género, constitui o princípio é a medida e a regra desse género. Como a unidade, no género dos números, e o primeiro movimento, no dos movimentos. Donde se conclui que a lei é algo pertencente à razão.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — Sendo a lei regra e medida, pode ser aplicada de dois modos. De um, como o que mede e regula. Ora, como isto é próprio da razão, deste modo, a lei só existe na razão. — De outro, como o que é regulado e medido. E, então existe em tudo o que em virtude dela tem alguma inclinação. De sorte que qualquer inclinação proveniente de uma lei pode ser considerada lei, não essencial, mas, participativamente. E deste modo, também a inclinação dos membros para a concupiscência se chama lei dos membros.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Podemos considerar, nos actos exteriores, a obra e o obrado, como, p. ex., a edificação e o edifício. Assim também podemos distinguir, nas obras da razão, o acto próprio dela, que é inteligir e raciocinar; e algo de constituído por esse acto. E isto, no concernente à razão especulativa, é, primeiramente, a definição; depois, o enunciado; e, em terceiro lugar, o silogismo ou argumentação. Ora, mesmo a razão prática emprega no agir um certo silogismo, conforme já demonstramos (q. 13, a. 3; q. 76, a. 1), de acordo com o que ensina o Filósofo. Donde, deve haver, na razão prática, o que esteja para as obras, como, na razão especulativa, está a proposição para as conclusões. Ora, tais proposições universais da razão prática, ordenadas para o acto, têm natureza de lei. E elas são, umas vezes, consideradas actualmente, e, outras possuídas habitualmente pela razão.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A razão tira o seu poder motor da vontade, como já se disse (q. 17, a. 1). Pois, é por querermos o fim que a razão ordena os meios. Mas para a vontade do que é ordenado vir a constituir lei é preciso seja regulada pela razão. E deste modo compreende-se que a vontade do príncipe tenha força de lei; de contrário seria antes iniquidade que lei.


Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.