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18/08/2014

Tratado da lei 88

Questão 108: Do conteúdo da lei nova.

Art. 2 — Se a lei nova ordenou suficientemente os actos externos.

O segundo discute-se assim. — Parece que a lei nova ordenou insuficientemente os actos externos.

1. — Pois, parece que à lei nova pertence principalmente a fé que obra por caridade, conforme a Escritura (Gl 5, 6): Em Jesus Cristo nem a circuncisão vale alguma coisa, nem o prepúcio, mas, a fé que obra por caridade. Ora, a lei nova explicitou algumas verdades de fé, que não estavam explícitas na lei antiga, como p. ex., a fé na Trindade. Logo, também devia ter acrescentado certas obras morais externas, não determinadas pela antiga lei.

2. Demais. — A lei antiga instituiu não somente sacramentos, mas também algumas coisas sagradas, como já se disse (q. 101, a. 4, a. 102, a. 4). Ora, na lei nova embora tenha instituído certos sacramentos, não se vê que Deus tivesse determinado coisas sagradas, como as que respeitam à santificação de um templo, ou de vasos, ou mesmo relativas à celebração de alguma solenidade. Logo, a lei nova ordenou insuficientemente as obras externas.

3. Demais. — A antiga lei continha certas observâncias relativas aos ministros de Deus, e também algumas outras relativas ao povo, como já se disse (q. 101, a. 4, q. 102, a. 6), ao tratar dos cerimoniais da lei antiga. Ora, vemos que a lei nova estabeleceu algumas observâncias para os ministros de Deus (Mt 10, 9): Não possuas ouro nem prata, nem tragas dinheiro nas vossas cintas, e o mais que nesse lugar se segue e ainda em outro (Lc 9, 10). Logo, a lei nova também devia ter instituído outras observâncias, relativas ao povo fiel.

4. Demais. — Na lei antiga havia, além dos preceitos morais e cerimoniais, alguns, judiciais. Ora, a lei nova não deu nenhum preceito judicial. Logo, ordenou insuficientemente as obras externas.

Mas, em contrário, diz o Senhor (Mt 7, 24): Todo aquele que ouve estas minhas palavras, e as observa, será comparado ao homem sábio, que edificou a sua casa sobre rocha. Ora, o edificador sábio não omite nada de necessário ao edifício. Logo, nas palavras de Cristo, está suficientemente estabelecido tudo quanto pertencer à salvação humana.

Como já dissemos (a. 1), a lei nova devia ordenar ou proibir só os actos externos, que nos levam à graça, ou que respeitam necessariamente ao recto uso da mesma. Ora, a graça não podemos segui-la por nós mesmos, mas só por Cristo. Donde, os sacramentos, pelos quais conseguimos a graça, o Senhor, Ele próprio, os instituiu. São eles: o batismo, a eucaristia, a ordem dos ministros da lei nova, quando instituiu os Apóstolos e os setenta e dois discípulos, a penitência, o matrimónio indissolúvel, enfim, a confirmação, prometida pela missão do Espírito Santo. Lê-se também no Evangelho, que, por sua instituição, os Apóstolos curavam os enfermos, ungindo-os com óleo. São esses os sacramentos da lei nova.

Quanto ao bom uso da graça, ele é obra da caridade. E as obras da caridade, enquanto necessárias à virtude, pertencem aos preceitos morais, que também a lei antiga estabeleceu. Por onde, neste ponto, a lei nova não devia acrescentar nada à antiga, quanto a tais obras externas. E quanto à determinação delas, quando ordenadas ao culto de Deus, ela pertence aos preceitos cerimoniais da lei, quando ordenadas ao próximo, aos judiciais, como dissemos (q. 99, a. 4). Ora, essas determinações não são em si mesmas necessárias à graça interior, no que consiste a lei nova. Donde, não se incluem nos preceitos desta, mas são deixadas ao arbítrio humano. Delas, umas respeitam os súditos, e são relativas a cada um em particular, outras, aos superiores temporais ou espirituais, e são relativas à utilidade comum.

Assim pois a lei nova não devia determinar, ordenado ou proibido, quaisquer obras externas, além dos sacramentos e preceitos morais, que de si mesmos constituem a essência da virtude. Tais são os preceitos de não matar, não furtar e outros semelhantes.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — As verdades da fé são superiores à razão humana, e por isso não podemos alcançá-las sem ser pela graça. Donde, com graça mais abundante podem-se explicitar mais verdades da fé. Ao passo que, na prática de actos virtuosos, nós nos dirigimos pela razão natural, que é uma determinada regra das acções humanas, com já dissemos (q. 19, a. 3, q. 63, a. 2. E por isso neste ponto não havia necessidade de se estabelecerem preceitos, além dos da lei moral, que são ditames da razão.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Os sacramentos da lei nova conferem a graça, que não é dada senão por Cristo, e por isso era necessário recebessem dele a instituição. Ao contrário, as coisas sagradas, como um templo ou um altar consagrado, ou coisas semelhantes, não conferem nenhuma graça, como também não a confere a própria celebração das solenidades. Donde, como essas coisas, em si mesmas, não, pertencem à necessidade interna da graça, o Senhor deixou ao arbítrio dos fiéis a instituição delas.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Os preceitos referidos o Senhor deu aos Apóstolos, não como observâncias cerimoniais, mas como instituições morais. E podem entender-se em duplo sentido. — Ou, conforme Agostinho, como concessões e não, como preceitos. Assim o Senhor concedeu-lhes que pudessem exercer o ofício da pregação sem alforje nem bordão nem coisas semelhantes, por terem como que o poder de receber o necessário à vida daqueles a quem pregavam, e por isso acrescentou: porque o trabalhador é digno do seu alimento. Mas também, não peca, antes, faz mais do que deve, quem leva consigo o de que vive, desempenhando o dever da pregação, sem receber paga daqueles a quem prega o Evangelho, como fez Paulo. — De outro, pode-se entender, conforme a exposição de outros Santos, que foram dados aos Apóstolos alguns preceitos temporais, no tempo em que foram mandados a pregar o Evangelho na Judeia, antes da paixão de Cristo. Pois, como que ainda pequenos e vivendo sob a protecção de Cristo, os discípulos precisavam de receber certas instituições especiais feitas pelo Mestre, como os súditos as recebem dos seus superiores. E principalmente, porque deviam exercitar-se aos poucos, para se deixarem do cuidado com as coisas temporais. E assim se tornavam idóneas para pregar o Evangelho por todo o mundo: Nem é para admirar se, ainda na vigência do regime da lei antiga, e sem terem os Apóstolos recebido a perfeita liberdade do Espírito, instituiu alguns modos determinados de viver, os quais, nas vésperas da paixão, aboliu, por os discípulos já estarem neles suficientemente exercitados. Donde o dizer o Evangelho (Lc 22, 35-36): Quando eu vos mandei caminhar sem bolsa e sem alforje e sem sapatos, faltou-vos porventura alguma coisa? E eles responderam: Nada. Prosseguiu logo Jesus: Pois agora quem tem bolsa tome-a, e também alforje. Porque já estava iminente o tempo da perfeita liberdade, em que seriam entregues totalmente ao próprio arbítrio, quanto às coisas que, em si mesmas, não são necessariamente exigidas pela virtude.

RESPOSTA À QUARTA. — Os preceitos judiciais, em si mesmos considerados, também não concernem necessariamente à virtude, de um modo determinado, senão só quanto à ideia geral de justiça. Por isso, a aplicação deles o Senhor a deixou aos directores dirigir os outros, espiritual ou temporalmente. Ao passo que fez certas explicações dos preceitos judiciais da lei antiga, por causa da má inteligência dos Fariseus, como a seguir se dirá (a. 3, ad 2).

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


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