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31/08/2014

Tratado da Graça 11

Questão 110: Da graça de Deus quanto à sua essência.

Em seguida devemos tratar da graça de Deus, quanto à sua essência.

E nesta questão, discutem-se quatro artigos:
Art. 1 — Se a graça produz algum efeito na alma.
Art. 2 — Se a graça é uma qualidade da alma.
Art. 3 — Se a graça é o mesmo que a virtude.
Art. 4 — Se a graça está na essência da alma como no sujeito, ou em alguma das duas potências.

Art. 1 — Se a graça produz algum efeito na alma.

[II Sent., dist. XXVI, a. 1, III Cont. Gent., cap. CL, De Verit., q. XXVII, a. 1].

O primeiro discute-se assim. — Parece que a graça não produz nenhum efeito na alma.

1. — Pois, no mesmo sentido em que se diz que temos a graça de Deus, também se diz que temos a de uma pessoa qualquer, donde o dizer a Escritura (Gn 39, 21): O Senhor deu a José a graça na presença do carcereiro mor. Ora, quando se diz que alguém recebeu graça de outrem, isso nenhum efeito produz em quem a recebeu, mas, significa, que há uma certa aceitação em quem a dispensou. Logo, quando se diz, que o homem recebeu graça de Deus, isso nenhum efeito lhe produz na alma, significando apenas a aceitação divina.

2. Demais. — Como a alma vivifica o corpo, assim Deus, a alma, por isso, diz a Escritura (Dt 30, 20): Deus é a tua vida. Ora, a alma vivifica o corpo imediatamente. Logo, não há nenhum meio-termo entre Deus e a alma, e portanto, a graça não produz na alma nenhum efeito.

3. Demais. — Ao lugar da Escritura (Rm 1, 7) — Graça vos seja dada e paz — diz a Glosa: Graça, i. é, remissão dos pecados. Ora, a remissão dos pecados não produz nenhum efeito na alma, só fazendo com que Deus não impute o pecado, conforme a Escritura (Sl 31, 2): Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não imputou pecado. Logo, também a graça nada produz na alma.

Mas, em contrário. — A luz não produz nenhum efeito no objecto iluminado. Ora, a graça é uma luz da alma, e por isso diz Agostinho: A luz da verdade abandona o que prevaricou contra a lei, o qual, abandonado, se torna cego. Logo, a graça produz algum efeito na alma.

Conforme o modo comum de falar, a graça pode ser tomada em tríplice acepção. Primeiro, como amor de outrem, assim, costuma dizer-se que um soldado tem a graça do rei, para significar que o rei o tem na sua graça. Segundo, na acepção de um dom gratuitamente dado, e assim costumamos dizer: Faço-te esta graça. Terceiro, como recompensa de um benefício gratuitamente feito, e assim quando se diz que damos graças pelos benefícios. Ora, destas três acepções, a segunda depende da primeira, pois, do amor com que temos alguém em nossa graça, procede o que gratuitamente lhe fazemos. E da segunda procede a terceira, porque dos benefícios gratuitamente feitos procede a acção de graças.

Ora, quanto às duas últimas acepções, é manifesto, que a graça produz em quem a recebeu, primeiro, o próprio dom, gratuitamente feito, e segundo, reconhecimento desse dom. Mas na primeira acepção, é preciso fazer-se uma diferença entre a graça de Deus e a humana. Pois, como o bem da criatura procede da vontade divina, do amor de Deus, pelo qual quer o bem da criatura, há-de decorrer algum bem para esta. Ao passo que a vontade do homem se move pelo bem preexistente nas coisas, e por isso o seu amor não produz totalmente o bem do seu objecto, mas, ao contrário, o pressupõe, parcial ou totalmente. Donde é claro, que todo bem da criatura resulta de algum amor de Deus, sendo esse bem entretanto produzido e não, coexistente com o amor eterno. Ora, nessa diferença de bens se funda a do amor de Deus pela criatura. Assim, um é o amor comum, com que ama todas as coisas, que existem, no dizer da Escritura (Sb 11, 25), e, pelo qual, dá o ser natural às coisas criadas. Outro é o amor especial, pelo qual eleva a criatura racional a participar do bem divino, condição essa que lhe excede a natureza. E por esse amor dizemos que ela ama a Deus, absolutamente falando, porque por ele, Deus quer, absolutamente, o bem eterno da criatura, que é Ele próprio.

Assim, pois, quando se diz que o homem tem a graça de Deus, significa isso um dom sobrenatural, procedente de Deus para o homem. — Mas às vezes também se chama graça de Deus ao próprio e eterno amor divino, e nessa acepção é que se considera a graça da predestinação, pela qual Deus escolheu alguns, ou os predestinou, gratuitamente e não, por méritos deles. Tal é o que diz a Escritura (Ef 1, 5): Predestinou-nos para sermos seus filhos adoptivos em louvor e glória da sua graça.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — Quando se diz, que alguém tem a graça de outrem, ou a de Deus, entende-se que há, no primeiro, algo de agradável ao segundo, ou a Deus, mas diferentemente. Pois, o que em alguém é agradável a outrem é pressuposto ao amor deste. Ao contrário, o que há no homem de agradável a Deus, já é causado pelo amor divino.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Deus é a vida da alma, a modo de causa eficiente, ao passo que a alma é a vida do corpo, a modo de causa formal. Ora, entre a matéria e a forma não há nenhum meio-termo, pois esta, por si mesma, informa a matéria ou o sujeito. Ao passo que o agente informa o sujeito, não pela sua substância, mas pela forma, que causa na matéria.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Agostinho diz: Quando disse que a graça consiste na remissão dos pecados e a paz, na reconciliação com Deus, isso não significa que a paz e a reconciliação não pertençam à graça geral, mas que, especialmente, a graça significa a remissão dos pecados. Logo, nem só a remissão dos pecados pertence à graça, mas também, muitos outros dons de Deus. Donde, a remissão dos pecados não se opera sem algum efeito divinamente causado em nós, como a seguir se demonstrará (q. 113, a. 2).

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


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