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20/10/2013

Tratado das paixões da alma 116




Questão 46: Da ira em si mesma


Art. 6 — Se a ira é mais grave que o ódio.



(IIª-IIªº, q. 158, a . 4, De Malo, q. 12, a . 4).

O sexto discute-se assim. — Parece que a ira é mais grave que o ódio.

1. — Pois, como diz a Escritura (Pr 27, 4), a ira não tem misericórdia, nem o furor que rompe. Ora, o ódio às vezes tem misericórdia. Logo, a ira é mais grave que o ódio.

2. Demais — Sofrer um mal e padecer dor por causa disso é mais que sofrer apenas. Ora, a quem odeia basta-lhe que a pessoa odiada sofra um mal, ao passo que o irado quer, além disso, que ela o saiba e padeça com isso, como diz o Filósofo 1. Logo, a ira é mais grave que o ódio.

3. Demais — Quanto mais elementos concorrem para a estabilidade de uma coisa tanto mais estável ela é, assim, o hábito mais permanente é o causado por muitos actos. Ora, a ira é causada pelo concurso de várias paixões, como já se disse 2, o que se não dá com o ódio. Logo, é mais grave e mais estável que este.

Mas, em contrário, Agostinho compara o ódio a uma trave, e a ira a uma palha 3.

A espécie e a natureza de uma paixão deduzem-se do seu objecto. Ora, a ira e o ódio, de um mesmo sujeito, têm o mesmo objecto, pois, como quem odeia deseja o mal ao odiado, assim o irado àquele contra quem dirige a sua ira. Mas, não pela mesma razão, pois o primeiro deseja o mal do inimigo, enquanto mal, ao passo que o segundo o deseja para aquele contra o qual está encolerizado, não enquanto mal, mas enquanto tem um certo carácter de bem, i. é, enquanto o considera como justo, por ser uma vingança. Donde, como também antes já dissemos 4, o ódio consiste na aplicação do mal ao mal, ao passo que a ira, na do bem ao mal. Ora, é manifesto que desejar o mal a alguém, sob o pretexto de justiça, encerra menos da essência do mal, do que, pura e simplesmente, lhe querer, o mal. Pois, no primeiro caso pode estar-se de acordo com a virtude da justiça, se for por obediência a uma prescrição da razão. Ao passo que a ira só é má porque, no vingar-se, não obedece ao preceito da razão. Donde, é manifesto que o ódio é muito pior e mais grave que a ira.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — Podemos levar em conta, na ira e no ódio, dois elementos a saber: aquilo mesmo que desejamos e a intensidade do desejo. — Quanto ao primeiro, a ira tem mais misericórdia que o ódio. Pois, como o ódio deseja o mal de outrem, em si mesmo, não há medida de mal que o sacie, porque, no dizer do Filósofo, as coisas desejadas em si mesmas são-no sem medida 5, assim o avarento deseja as riquezas. Donde o dito da Escritura (Ecle 12, 16): O inimigo, se achar ocasião, não se fartará de sangue. Ao passo que a ira não deseja o mal senão sob as aparências de justa vingança, donde, o irado se compadece quando o mal que lhe foi feito excede, na sua apreciação, a medida da justiça. E, por isso, o Filósofo diz que o irado se compadece à vista dos muitos males sofridos pelo seu adversário, ao passo que quem odeia de nenhum modo se compadece 6. — Por outro lado, quanto à intensidade do desejo, a ira exclui a misericórdia, mais que o ódio porque o seu movimento é mais impetuoso, por causa da inflamação da cólera. Por isso, a Escritura logo acrescenta (Pr 27, 4): quem poderá suportar o ímpeto de um espírito concitado?

RESPOSTA À SEGUNDA. — Como já dissemos, o irado deseja o mal de alguém enquanto este se reveste das aparências de uma vingança justa. Ora, a vingança realiza-se pela aplicação de uma pena, e da natureza desta é ser contrária à vontade, ser aflitiva e aplicada em expiação de alguma culpa. Por isso, o irado deseja que aquele a quem castigou o sinta e o sofra e conheça que esse castigo lhe é aplicado por causa da injúria assacada a outrem. Quem odeia porém nada disso lhe importa, porque deseja o mal de outrem como tal. Ora, não é verdade que aquilo que nos causa pena seja pior. Pois, a injustiça e a imprudência, sendo males não causam pena àqueles em quem existem 7, por serem voluntários, como diz o Filósofo.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O causado por muitas causas é mais estável quando as causas estão compreendidas numa mesma noção, mas, uma causa pode prevalecer sobre muitas outras. Ora, o ódio provém de causa mais permanente que a ira. Pois esta provém de uma comoção do ânimo, por causa de um mal que nos foi feito, ao passo que o ódio, de uma disposição pela qual reputamos como nos sendo contrário e nocivo o que odiamos. Donde, como a paixão passa mais depressa que a disposição ou o hábito, assim a ira se desvanece mais rapidamente que o ódio, embora também o ódio seja paixão proveniente de uma determinada disposição. Por isso o Filósofo diz, que o ódio é mais incurável que a ira 8.

Nota: Revisão da tradução portuguesa por ama.
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Notas:
1. II Rhetoric. (cap. IV).
2. Q. 46, a. 1.
3. Regula.
4. Q. 46, a. 2.
5. I Polit. (lect. VIII).
6. II Rhetoric. (cap. IV).
7. II Rhetoric. (cap. IV).
8. II Rhetoric. (cap. IV).


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