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09/05/2013

Um antigo papiro de interpretação incerta


A “mulher” de Jesus.


O fragmento de papiro que menciona Jesus dizendo "minha esposa" tem tão poucas linhas que não admite uma interpretação segura e, em qualquer caso, não prova nada sobre factos históricos, como adverte a própria descobridora.
Entre 17 e 22 de Setembro passados teve lugar em Roma o X Congresso Internacional de Estudos Coptas. Entre as mais de duzentas propostas e comunicações só uma foi difundida na imprensa: a apresentação de um novo fragmento de papiro de carácter evangélico no qual Jesus fala de "minha esposa". A autora da nova descoberta é a professora da Universidade de Harvard Karen L. King, reconhecida pelos seus estudos em história do cristianismo antigo. Ainda que não tenha formação estritamente papirológica, King contou com a ajuda de especialistas na matéria para a edição deste fragmento. O texto provisório da futura publicação está disponível na Net.
O fragmento chegou às mãos da professora King através de um colecionador privado que quis manter o anonimato. É de dimensões muito reduzidas (4 cm de altura, por 8 de largura) e está escrito em copta. Contém restos de oito linhas de um lado e seis muito danificadas e mal legíveis pelo outro lado. Como não se conserva nenhuma das margens, não sabemos quanto texto se perdeu entre uma linha e outra. A data proposta por King segundo critérios paleográficos é a de finais do século IV. Assinala também que a fotografia do papiro levantou certas dúvidas quanto à autenticidade em alguns especialistas que tiveram oportunidade de a ver. Outros, pelo contrário, mostraram-se a favor dela. À espera de alguns estudos técnicos por fazer, a professora de Harvard admite que a questão da autenticidade "não está absolutamente resolvida para lá de toda a dúvida".
Um texto gnóstico de carácter não histórico.

A própria autora da descoberta afirma que o papiro não constitui uma prova sobre a vida do Jesus histórico
O que despertou o interesse dos media são as palavras da quarta linha do lado melhor conservado do papiro. Ali lê-se: "Jesus disse-lhes: Minha esposa...". Em linhas anteriores o texto contém as seguintes frases: "minha mãe me deu a vida...os discípulos disseram a Jesus...Maria é digna [ou indigna, pois a leitura não é clara] dele..." Depois a referência à "mulher de Jesus", e de novo muito fragmentariamente , se lê "ela será capaz de ser meu discípulo...que os malvados presumam...no que a mim respeita, eu moro/existo com ela para...". No reverso, só se lê "minha mãe", "três" e "para a frente".
Dado o carácter fragmentário do texto, é muito difícil saber qual é o contexto destas frases e quem são as personagens concretas com as quais Jesus fala. Quase todas as expressões do papiro encontram paralelo em obras gnósticas como o Evangelho de Tomás, o Evangelho de Maria e o Evangelho de Filipe. Estes escritos, na sua maior parte conservados em manuscritos do século IV, ainda que provavelmente tenham sido escritos nos séculos II e III, foram denominados "evangelhos" pelos seus autores ou leitores mais antigos. Não obstante, não pertencem ao género dos quatro evangelhos canónicos. São com certeza escritos catequéticos gnósticos - cada um deles conforme a diferente corrente gnóstica em que se apoiam -, em que Jesus ressuscitado transmite aos seus discípulos um conjunto de ensinamentos diversos.
Nas controvérsias do século II tanto os defensores como os detractores do matrimónio partiam do facto de que Jesus foi celibatário
King apoia-se fundamentalmente nestas três obras para interpretar o papiro. Depois de um minucioso estudo, o mais importante que a professora de Harvard pode dizer com segurança é que este fragmento consiste num diálogo de Jesus com os seus discípulos, no qual Jesus fala da sua mãe e da sua mulher - uma das quais se chama Maria -, cuja dignidade para o discipulado está em discussão. Assinala também que o texto supõe "primeira referência conhecida e explícita de que Jesus foi casado"( afirmação pouco clara, porque o papiro só põe na boca de Jesus as palavras "minha esposa", e não sabemos se se está a referir a uma mulher concreta ou a falar alegoricamente).
É muito improvável que um texto gnóstico apresentasse a Jesus casado, já que na sua maioria os gnósticos desvalorizam o matrimónio
King apresenta também algumas possibilidades de leitura, que são discutíveis e dependem da interpretação das passagens concretas que se oferecem como paralelas. Em todo o caso, afirma expressamente que, ainda que o texto deste papiro fosse uma tradução de uma obra escrita em grego no século II - como ela supõe -, não constitui prova sobre a vida do Jesus histórico nem de que, em concreto, Jesus tivesse estado casado. Em todo o caso, a professora americana inclina-se a ver o fragmento no contexto das disputas sobre o valor e dignidade do matrimónio e o celibato que se deram sobretudo ao longo do século II, e se prolongaram vários séculos mais, e como uma prova de que "houve cristãos dessa época que acreditavam que Jesus esteve casado" (afirmação, contudo, não provada nem deduzida necessariamente do texto).
Demasiado bom para ser verdade?
É inevitável pensar que nesta nova descoberta possa haver algo de suspeito. Em todos os foros da Internet não faltam vozes daqueles que apontam que as três pessoas que se citam como conhecedoras do papiro antes de cair nas mãos anónimas do seu dono actual já morreram. Outros declaram abertamente que o texto do papiro está feito a partir da versão copta - e não grega - do Evangelho de Tomás e que, portanto, o mais provável é que seja moderno. E também estão os que acham "curioso" que apareça de repente um novo texto que ponha na boca de Jesus as palavras "minha esposa", precisamente quando, desde O Código da Vinci, este tema tem andado às voltas no ambiente. "Demasiado bom para ser verdade", disse Richard Bauckham, conhecido professor inglês do Novo Testamento, se bem que admita que às vezes se dão coincidências muito improváveis.
Em tudo isto, há uma coisa certa. Jesus não se casou. Assim se deduz dos evangelhos canónicos e assim o tem entendido sempre a tradição da Igreja. O texto mais antigo sobre o assunto é de Clemente de Alexandria (ca. 150-215), que a autora da edição do papiro também cita. Em Strómata III 6, 49, Clemente queixa-se de alguns que afirmam que o matrimónio é fornicação e obra do diabo baseando-se no facto de que o Senhor não se casou. Também Tertuliano (ca. 160-230) afirma que Jesus foi celibatário.
Por isso, independentemente da questão da autenticidade e assumindo que o papiro seja do século IV, é muito provável que um texto gnóstico apresentasse Jesus com mulher (Maria Madalena, por exemplo). As controvérsias do século II sobre o valor e a dignidade do matrimónio mostram precisamente que Jesus foi celibatário. Tanto os partidários como os detractores do matrimónio partiam deste facto. Daí que não encaixe historicamente que houvesse grupos gnósticos (que por outra parte na sua grande maioria desvalorizam e desprezam as relações sexuais) que tivessem como modelo da dignidade do matrimónio um Jesus casado com Maria Madalena ou qualquer outra mulher. E portanto, também não há base suficiente para dizer que alguns cristãos acreditem que o esteve. O carácter fragmentário do texto não permite afirmá-lo. À falta de outras provas, a "mulher de Jesus" deste texto copta actualmente continuará a ser uma alegoria ou uma frase difícil de entender, mas não uma realidade de carne e osso.

juan chapa [1], 2012.10.05



[1] Professor de Novo Testamento na Faculdade de Teologia da Universidade de Navarra

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