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02/05/2012

Nunc Coepi


Navegando pela minha cidade


Nunc Coepi[1]

Agora que acabo agora começo. Porque a vida é um permanente recomeçar; e porque quando assim não é vive-se na escuridão. Na mesma escuridão da noite sem lua e sem estrelas se um dia o Sol não voltasse a nascer depois do último ocaso. E quanto maior a escuridão maior é a necessidade de luz.

Luz para vermos a terra dos homens; luz para vermos os homens: os que vivem na luz e os que não a conseguem ver. Luz que ilumine as cavernas escuras do meu coração onde – quando o consinto – rastejam vermes pegajosos; cheios de peçonha e sem olhos porque odeiam a luz.

Agora que acabo agora começo. Levanto ferro e voltarei a navegar pelas ruas da minha cidade melhor iluminada. Mar adentro com rumo certo porque a estrela da manhã será o meu sextante; a minha bússola; o meu GPS.

Das tormentas farei boas esperanças e nas calmarias estarei mais atento ao vento que sopra invisível sobre a superfície das águas. Porque não há tempestade que não se acalme nem bonança que sempre dure.

Agora que acabo agora começo. Renasço do cansaço porque só descansarei quando morrer. O contrário seria viver morto. Morto vivo na escuridão de sepulcro por fora caiado de branco e por dentro cheio de imundície.

Naveguei por mais de cinquenta mares feitos ruas da minha cidade durante quase um ano e meio neste oceano imenso da blogosfera. Oceano de milhares e milhares de vozes que querem ser ouvidas, simplesmente porque existem. Porque é esse o nosso drama, o de não nos ouvirmos uns aos outros; o de procurarmos desesperadamente alguém que nos oiça.

Começo porque quero ouvir melhor apesar da escuridão e do ruído imenso de tantas vozes a zunir; a murmurar; a gritar; a rir e a chorar na fria e cósmica imensidão do world wide wireless onde - é meu intimo convencimento - quase todos lêem, vêem e ouvem numa corrida desenfreada em busca de qualquer coisa que não está lá. Como se fosse uma corrida louca ao ouro enterrado no fim do arco-íris ou a medieval e obsessiva demanda do Santo Graal.

Agora que acabo agora começo. Não numa inutilidade de trabalho supliciante de Sísifo, mas na construção permanente de uma ponte para a outra margem. Ponte sólida e transcendente onde os outros tenham o direito de passar em primeiro lugar. De passar à minha frente.

Ponte de sentido único onde cabem todos os silêncios porque tudo tem sentido à luz da Luz. Ponte farol; ponte porto; ponte cais; ponte ancora; ponte amarra; ponte estiva; ponte cidade.

Ponte de romana solidez feita do invisível quotidiano e da liturgia das horas; ponte pedonal em que todos os passos contam uma história de amor; ponte suspensa feita de cordas sobre o precipício do mistério da vida; ponte veneziana de desejos e suspiros impossíveis de dizer; ponte de carne humana e de silêncios divinos oferecida em holocausto perpétuo.

“Silêncio, porto do navio. Silêncio em Deus, porto de todos os navios.”[2]

Agora que acabo agora começo.


Afonso Cabral

Nota de ama:

Meu caro Afonso:

Já fechei a boca que tinha aberta desde a primeira frase!

Excedeste-te a ti próprio, meu caro Afonso, na beleza e profundidade do teu escrito.

Filosofia pura? Sim porque a filosofia é a correcta avaliação do que se é e do que se faz e, claro, do que existe.

Donde, descobri, és um Filósofo!

Como te parece que posso aceitar esta 'despedida'?

Dir-te-ei simplesmente: Muito mal... aceito muito mal mas, ao mesmo tempo, com uma enormíssima esperança que 'revejas' o 'caso' e, filosoficamente decidas que não é definitiva a decisão.

Para bem de todos: meu, evidentemente, de NUNC COEPI e os seus fiéis leitores, e de ti próprio que te privas de um gozo legítimo que te dá escrever e privas outros do gozo de lerem o que escreves.

Por isso, e com a grafia do restaurante de Santo Tirso, te digo: 'Ká Te Espero'!

Um abraço amigo e grato

2015.04.30




[1] Lat.: Agora começo
[2]  Antoine De Saint- Exupéry – Cidadela, Editorial Presença, 3ª Edição – Lisboa Dezembro 1996, pág. 40

1 comentário:

  1. É realmente muita pena que escrita tão profunda e bela, deixe de aparecer neste espaço.

    Era uma companhia que sempre desfrutava com muito prazer.

    Espero bem voltar a "lê-lo".

    Um abraço amigo

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