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07/12/2011

Os homens também se abatem

Navegando pela minha cidade
“Morta por dentro, mas de pé, de pé, como as árvores”. Ouvi esta frase dita pela Palmira Bastos[1] há muitos anos no Teatro São João. Nunca mais me esqueci da energia que saía daquele corpo frágil e já muito envelhecido enquanto batia com a bengala no chão, com uma força e vitalidade imensas.

Esta afirmação categórica vincada – sincopadamente - com aquelas pancadas no chão do palco ficou-me gravada como uma absoluta lei da botânica e da ascética.

Essa eternidade vertical de obelisco que é morrer-se de pé e essa eternidade que é morrer-se para si próprio.

Mas as árvores no Porto não morrem de pé. Quando os cientistas e os técnicos da Câmara Municipal do Porto decretam que uma árvore está doente, abatem-na.

“Porém, com o desenvolver dos trabalhos de poda das restantes, os serviços de Ambiente constataram um sexto Liquidamber que mostrava extensas e abundantes cavidades interiores, com fortes sinais de podridões activas, claramente debilitadoras da resistência do lenho e consequente sustentação do peso global do exemplar”[2].

Esta era uma parte da notícia com o título: Câmara abateu seis árvores na Coronel Pacheco e vai plantar sete.
Claro que fui lá ver se era verdade. Era.

Naquela Praça há anos e anos transformada num miserável parque de estacionamento, mesmo em frente à PSP, vários troncos cortados e empilhados mostravam, na sua imensa beleza caída, o interior cheio de vazios.

E depois? Não podiam tratá-las? Não podiam preencher aquelas cavernas? Árvores cinquentenárias que todos as Primaveras renasciam de novo e que em todos os Outonos se transformavam em autênticas fogueiras vegetais num esplendor de folhas feitas chamas amarelas, laranjas, e encarnadas?

Árvores que durante tantos anos preencheram tantos vazios de tanta gente não mereciam ser abatidas por gente tão cheia de arrogância.

Só o nome desta execução faz lembrar um açougue. Abatem-se os frangos, os porcos e os cavalos, as árvores não.

Esta falta de respeito urbano-decadente é um sinal dos tempos. Em 1854 o Chefe índio Seattle escreveu ao Grande Chefe Branco de Washington o seguinte: “…A seiva que circula nas veias das árvores leva consigo a memória dos Peles Vermelhas“. Estas seis também levavam a minha, a nossa.

Triste e já sem força sequer para a revolta fui descendo, entrei pela Travessa de Cedofeita, vi um graffiti que gritava RAPE ME e outro que invectivava VOTA IDIOTA e entrei na Rua de Cedofeita ainda mais angustiado.

Eram cerca das três da tarde e as pessoas passavam em silêncio. Foi então que vi caminhando na minha direcção um homem de meia-idade. Este homem, cuja cara transmitia um absoluto vazio de esperança ou qualquer sombra de ânimo, trazia pendurado por uma espécie de suspensórios um placard à frente do peito e outro igual nas costas. Era um Homem/Placard.

O placard anunciava: PENHORES EMPRÉSTIMOS SOBRE VALORES – OURO PRATA JOIAS RELÓGIOS – Rua de Cedofeita, 516 – 1º (junto à PSP)

Nesta crise de valores há muitos a quererem emprestar sobre valores. Os abutres vêem a carniça a grande distância e a planície está juncada de troncos humanos com extensas e abundantes cavidades interiores e de especuladores financeiros com fortes sinais de podridão e todas as famílias estão com a resistência claramente debilitada.

Aquele homem também já tinha sido abatido e para maior escárnio, os Midas das crises pregaram-lhe no tronco um anúncio para roubar o ouro, a prata e as jóias a quem já tinha sido roubada a esperança, o futuro e a dignidade.


Afonso Cabral


[1] Actriz (1875 – 1967)
[2] Público – 30 de Novembro de 2011

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