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17/11/2011

Novíssimos - Juízo Particular 10

Julgamento de Carlos – médico [i]

Na Urgência do grande hospital reinava uma azáfama muito próxima do caos.
As ambulâncias com os feridos, quase todos com queimaduras extensas, não paravam de chegar. Os breves relatos eram aterradores, um incêndio no metro estava a mobilizar todas as capacidades de intervenção da grande cidade.

Carlos estava de "banco" nesse dia. A sua especialidade, obstetrícia, não era requisitada mas não podia deixar de secundar os colegas no esforço colectivo naquelas circunstâncias excepcionais.

Uma enfermeira agarrou-lhe no braço:

"Doutor Carlos, temos ali alguém para os seus serviços urgentes".

Seguiu a enfermeira através da confusão de macas, camas, suportes de soro, máquinas várias até uma maca onde se deteve.
Embora habituado a cenas dantescas sobretudo nas "urgências" teve dificuldade em conter uma reacção de horror. Na maca jazia uma jovem sem feições. O rosto estava inteiramente queimado, a própria carne solta aos bocados, o cabelo e sobrancelhas um emaranhado crestado pelo fogo, os olhos invisíveis sob as pálpebras tumefactas...
Uma barriga enorme avultava naquele destroço humano.
Carlos colocou o estetoscópio e começou, sem grande convicção, a procurar sinais de vida. Olhou a enfermeira com uma expressão de espanto:

“Está viva, a criança está viva!!!”

Procedendo a um rápido exame, acrescentou:

"Já está posicionada para nascer... Dado o estado crítico da mãe, não me arrisco a fazer o parto aqui..."

A rapariga pareceu ouvir o que dissera porque com uma mão quase descarnada tentou afastar a máscara que lhe fornecia oxigénio.Carlos impediu-a dizendo:

“Não se preocupe. Vai correr tudo bem.”

Rapidamente transportaram-na para o bloco cirúrgico de obstetrícia.
Carlos deitou a bata suja de sangue para a roupa suja, lavou-se com abundante água e sabão, esfregou mãos e braços com desinfectante, vestiu uma bata, calçou luvas esterilizadas e entrou no bloco.
Na balbúrdia da urgência não tinha reparado bem na rapariga, agora, livre dos trapos queimados que a cobriam pôde aperceber-se de quão jovem era. Teria uns dezoito anos... vinte no máximo. As extensas queimaduras por todo o corpo eram de gravidade semelhante às do rosto. De facto era um milagre estar ainda viva.
A enfermeira notando a sua reacção disse-lhe com voz calma:

"Então, doutor? Vamos lá... O senhor é capaz..."

Carlos "deitou mãos à obra" e passados pouquíssimos minutos sem quase nenhum esforço, o bebé nascia e, nesse preciso momento, a jovem mãe, dava o último suspiro.
A enfermeira seguiu os procedimentos habituais, Carlos saiu do bloco operatório, e deixou-se cair numa cadeira.

Pensou na ironia - trágica ironia - da sua vida de obstetra. De facto, nos últimos anos este fora o único parto em que tinha intervindo, até então só praticara abortos...

Mais de três horas depois destes acontecimentos, Carlos dirigia-se para o automóvel no parque de estacionamento parcamente iluminado. Absorto nos seus pensamentos sobressaltou-se com o aparecimento súbito do homem à sua frente apontando-lhe uma pistola.

"Carteira, rápido”, disse o sujeito.

Carlos deu dois passos para trás atrás.
O outro, não esperou um momento e desfechou-lhe dois tiros no peito.
A sua última percepção foi sentir a mão do homem a tirar-lhe a carteira do bolso interior do casaco.
Numa golfada de sangue expirou.

O Juiz falou:

"Quantos crimes cometeu este pobre homem que jurou salvar vidas e o que fez foi eliminar sem piedade seres humanos ainda por nascer". O tom de voz do Juiz era de profunda, inaudita pena.

O Ser esplendoroso ia recomeçar a falar quando uma voz suave e cálida se fez ouvir:

"Quero dizer algo:
As três horas que decorreram entre o parto da pobre jovem e a sua morte, passou-as o Carlos na capela do hospital em frente de uma Imagem minha. Por entre um choro convulsivo disse-me quanto estava arrependido de todos actos horríveis que tinha praticado. Assumiu o compromisso de nunca mais, em circunstância alguma praticar um aborto e, por fim, quando já mais calmo se ia embora, voltou para trás e disse-me que iria seguir de perto a criança que ajudara a vir ao mundo e, até que, se não tivesse família, iria adoptá-la."

O Juiz disse então:

"Como em Caná da Galileia fiz o que me pediu, faça-se agora como a Minha Mãe desejar".


[i] Levanta-se a questão da vida para além da morte. É uma das grandes interrogações que alguma vez durante a sua vida o homem se coloca.
É natural porque o ser humano é dotado de espírito, alma, que tem preocupações mais para além do imediatamente sensível.
Para os cristãos a segurança da Fé fá-los compreender que está destinado à eternidade, ou seja, embora o corpo pereça e acabe a vida terrena, a sua alma não morrerá jamais e, naturalmente, tende a voltar para o seu Criador, Deus.
Sim... a lógica propõe o que a fé garante, porque não se concebe o Criador abandonar a criatura a um desaparecimento puro e simples.
O restante do problema é o que se refere ao "destino" da alma e que é "marcado" na conclusão do juízo a que é sujeita pelo próprio Criador, logo que, após a separação do corpo, se apresenta perante Si.
No imaginário livro da vida, ao contrário do que que é mais comum, não existem colunas de "deve" e "haver" onde é feita uma espécie de contabilidade, não! O que existe é uma lista completa dos bens recebidos em vida, os dons, graças, auxílios, inspirações e meios com que o Senhor foi dotando cada um de forma especial e única.
Cada ser humano recebe um "pacote" específico, para si em exclusivo.
Deus Nosso Senhor não dispensa os Seus benefícios adrede ou de uma forma sistemática ou mecânica. Cada ser humano é objecto de atenção exclusiva e única por parte do Criador que lhe concede os Seus dons e benefícios conforme a Sua Soberana Vontade determina.
Esta misteriosa magnitude de Deus tem uma razão de ser.
O homem não é capaz por si mesmo de evoluir, de melhorar sem que um estímulo o leve a tal.
Este estímulo surge exactamente no estreitamento das suas relações com Deus.
Quanto mais se relaciona mais recebe e, quanto mais se recebe mais se deseja intimar com Deus.
Por isso no Evangelho consta «àquele que tem, lhe será dado; e ao que não tem, ainda aquilo mesmo que julga ter, lhe será tirado» Lc 8, 16-18.

Para chegar a Deus, o caminho seguro, é Maria Sua e nossa Mãe! 

Sancta Maria iter para tutum! (Santa Maria, prepara-me um caminho seguro)

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