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03/09/2011

Deus pode fazer que coisas passadas não tenham existido?

Jan Metsys,
Santa Maria Madalena,
séc. XVI
Parece que Deus pode fazer que coisas passadas não tenham existido:
1. Com efeito, o que é impossível por si é mais impossível do que é impossível por acidente. Ora, Deus pode realizar o que é impossível por si; por exemplo, recuperar a vista a um cego ou ressuscitar um morto. Logo, com muito mais razão pode realizar o impossível por acidente. Ora, que as coisas passadas não tenham existido, isso é impossível por acidente, pelo fato de que já passou. Logo, Deus pode fazer que coisas passadas não tenham existido.
2. Além disso, tudo o que Deus pôde fazer, Ele o pode, pois sua potência não se encontra diminuída. Ora, Deus pôde fazer, antes que Sócrates corresse, que não corresse. Logo, depois que correu, Deus pode fazer que não tenha corrido.
3. Ademais, o amor é uma virtude maior do que a virgindade. Ora, Deus pode restabelecer o amor perdido. Logo, também a virgindade, e pode fazer com que aquela que foi violada não o tenha sido.
EM SENTIDO CONTRÁRIO, Jerónimo escreve: “Deus, que pode tudo, não pode fazer que uma mulher violada seja não-violada”. Logo, pela mesma razão, não pode fazer de algo passado que não tenha existido.

Como foi dito acima (no artigo anterior), o que implica contradição não está sob a omnipotência de Deus. Ora, que as coisas passadas não tenham existido implica contradição. Com efeito, assim como há contradição em dizer que Sócrates está e não está sentado, também há em dizer que esteve e não esteve sentado. Ora, dizer que ele esteve sentado é declarar uma coisa passada; dizer que não esteve é dizer que essa coisa passada não existiu. Então, que as coisas passadas não tenham existido, isto não está na dependência da potência divina. É o que assevera Agostinho: “Aquele que diz: ‘Se Deus é omnipotente, faça que o que foi feito não tenha sido feito’, não percebe o que está dizendo: ‘Se Deus é omnipotente que ele faça que o que é verdadeiro, enquanto tal, seja falso’.” E o Filósofo escreve no livro VI da Ética: “A Deus só lhe falta isso: tornar não feito o que foi feito”.
Suma Teológica, I, 25, 4.

Quanto aos argumentos iniciais, portanto, deve-se dizer que:
1. Embora seja impossível por acidente que o passado não tenha existido, se se considera o que já passou, por exemplo, a corrida de Sócrates, entretanto se se considera o passado como tal, é impossível que não tenha existido, não só por si, mas absolutamente, pois implica contradição. Assim, é mais impossível do que a ressurreição de um morto, o que não implica contradição e se diz impossível com relação a certa potência, a da natureza. Tais impossibilidades estão sujeitas à potência de Deus.
2. Deus pode tudo em razão da perfeição de sua potência; no entanto, existem coisas que não estão sujeitas à sua potência, porque lhes falta a razão do possível. Assim, ao considerarmos a imutabilidade da potência divina, Deus pode tudo o que pôde; certas coisas, porém, foram possíveis outrora, quando eram factíveis; e hoje não mais o são, porque já foram feitas. E assim, Deus não pode fazê-las, porque não podem ser feitas.
3. Deus pode retirar toda mancha da alma do corpo da mulher violada, mas não pode remover que tenha sido violada e assim também não pode retirar de um pecador que tenha pecado e perdido o amor.


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