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05/09/2011

A Bandeirinha

Navegando pela minha cidade
“Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.”[1] Assim começa um dos maiores e mais poderosos romances da literatura mundial.
E foi esta frase que me ocorreu quando passei pela Rua da Bandeirinha porque foi numa casa dessa rua no nº 66, que viveu durante muitos anos uma família feliz: os meus primos da Bandeirinha.

A Tia Nini - madrinha do meu Pai - vivia a sua senilidade tratada com todo o respeito e carinho num dos vinte quartos daquela típica casa portuense que poderia ter servido de modelo para a descrição feita por um dos meus irmãos, num livro que escreveu durante o calvário vivido nos três anos que sofreu antes de morrer de cancro aos quarenta e seis anos e seis filhos.

“Essas famílias organizavam-se por estratos, andares e gerações, em volta do cone de luz que chegava ténue às assoalhadas por entre as portas estreitas e altas do patamar central. O ambiente é agradável nas horas de calor. No Inverno uma salamandra assente no rés-do-chão, no vão da escada, na base do cone de luz, deita ao longo dum comprido tubo calor e conforto. As partículas em suspensão, pó e fuligem, enchem o cone de luz que vem do alto desenhando-o muito bem. Neste ambiente de luz íntima que rasga as sombras com raios certeiros, entendia-se muito bem a catequese duma história indestrutível, com sentido”.[2]

A Tia-avó Bita – irmã do meu avô – muito surda e sempre vestida no preto da sua viuvez, passava sem nos ouvir nem sequer ver, num silêncio idêntico ao do piano vertical preto encostado à parede, arrumando sempre qualquer coisa que estava fora do lugar em que devia estar.

A tia Milu velava e olhava por tudo num sorriso permanente e numa alegria sem idade. Até os cães da serra a adoravam na sua imensa caridade por todos. Eu conheci bem o Douro, manso e majestoso como todos os serras de raça pura. Na minha família, normalmente os cães tinham o nome de um rio.

O tio Tomás, que era capaz de recitar de cor - incluindo Lorca e Rosalia de Castro – dezenas de poemas com uma viva e imensa paixão. Fez-se monge aos quarenta e tal anos, entrando para o Convento dos Beneditinos de Singeverga.

Do jardim nas traseiras, cheio de camélias até ao fim, via-se o rio Douro a correr para o mar como as nossas vidas corriam para o futuro.

A Rua da Bandeirinha começa no Largo do Viriato junto ao mais maravilhoso e grandioso jacarandá que havia no Porto e que – tal como todas as tias e tio que mencionei - morreu entretanto, tendo sido substituído por outro que não terá mais de dez ou quinze anos e vai descendo por ali abaixo, sinuosamente, até chegar à Alfândega.

Mas antes disso, ainda lá em cima, numa curva apertada junto á Casa das Sereias - que a brejeirice popular chama das “mamudas” porque a sua grande porta principal é ladeada por duas altas sereias de granito, cuja parte humana e feminina é bem generosa - existe um grande marco de granito encimado por uma bandeirinha em ferro por cima de uma esfera armilar.

Esta bandeirinha – a bandeirinha da saúde – fica alinhada com o edifício da alfândega junto ao rio e antigamente sinalizava o limite que não podia ser passado pelos barcos em caso de peste a bordo.

Nessa casa dos meus primos não havia limites, ao contrário da minha em que de vez em quando eu ouvia: há limites para tudo! O menino é uma peste, só está bem a fazer mal!

Conta um dos irmãos destes meus tios: “Meus Pais tiveram oito filhos, mas nós achávamos que tiveram nove, porque considerávamos a Flor Agreste como nossa irmã mais velha, devido às atenções que no dia-a-dia lhe eram dispensadas”[3]. Sim, exactamente essa, a Flor Agreste esculpida em mármore de Carrara pelo grande mestre Soares dos Reis e exposta pela primeira vez no Palácio de Cristal em 1881. O Palácio então, ainda era de cristal e a Flor Agreste foi comprada por uma avó destes meus tios que cresceram, brincaram com ela, e a amaram como de uma irmã se tratasse.

Antes que se cansasse de tanto amor e crescesse e morresse, foi vendida em 1932 e está agora exposta no Museu Soares dos Reis.

Não foi para muito longe, mas apesar das permanentes visitas, está muito mais sozinha.


Afonso Cabral


[1]  Lev Tolstoi – Anna Karénina - Relógio D’Água Editores , Dezembro de 2006 – Lisboa – pág. 11
[2]  José Maria Cabral – O Desafio da Normalidade (Impressões do fim da vida) – Rei dos Livros – Lisboa, 1993 – pág. 14 e 15
[3] José Archer de Carvalho – NA INTIMIDADE DA FLOR AGRESTE – Fólio Edições – Porto, 2005 – pág.33

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