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28/08/2011

O tesouro

Navegando pela minha cidade
Ali jazia juntamente com mais dois, o Cristo que eu tanto procurara. Era uma fria e húmida manhã de nevoeiro de um Sábado na feira de velharias da Alameda das Fontainhas.

Há muito que o procurava, mas nunca pensei encontrá-lo tão destroçado. Tão despojado.

Um dos Cristos que ladeava o meu estava inteiro e o outro só não tinha um braço. Os três não tinham cruz.

Mas a isso já eu estou habituado. As cruzes estão a ser retiradas de toda a parte e por isso é natural que as tirem em primeiro lugar a quem a transformou num remédio de salvação.

O resto do cenário daquele calvário era todo um mundo de canecas velhas, chaves ferrugentas, ferraduras antigas, relógios parados, isqueiros, cinzeiros art deco, garrafas de pirolitos, pratos de faiança das caldas, molhos de canetas, uma máquina de escrever Underhood portátil, armadilhas para raposas, espadas, espingardas de ar comprimido, postais, selos, moedas, cartões, garrafas, discos de vinil, vídeos pornográficos e mil outras coisas que alguém usou um dia e que talvez alguém lhe vá dar outro uso.

Ali estava no meio do mundo e das coisas do mundo. Eu já devia saber que tinha de ser no meio do mundo e das coisas do mundo – as mais prosaicas e quotidianas – que encontraria o Cristo que tanto procurava. É que, paradoxalmente, é no meio do mundo que melhor se encontra quem disse que não era deste mundo.

Esse é a vinte e cinco, não tem cabeça. Disse a vendedora como que a desculpar-se de um valor tão baixo.

Envergonhado, ouvia dentro de mim: o Reino dos Céus é semelhante a um tesouro que, quando um homem o acha, esconde-o e, cheio de alegria pelo achado, vai e vende tudo o que tem e compra aquele campo[1]. Eu tinha encontrado o meu tesouro e negociava-o, ou melhor regateava-o.

Leve-o. Disse-me secamente a vendedora.

Nem me atrevia a tocar-lhe. Porque será que temos tanto medo de nos aproximar de Cristo?

É que era um destroço. O que os homens lhe fizeram! O que eu lhe fiz!

É que este Cristo não tinha cabeça. Tinha sido arrancada rente ao tronco com pescoço e tudo. Também não tinha braços. Tinha a perna direita cortada abaixo do joelho e não tinha o pé esquerdo. Era um autêntico destroço.

Das cinco chagas só se via uma. Só se via a que lhe foi feita pela lança que lhe perfurou o lado até ao coração e de onde jorrou sangue e água.

Como não tem braços não se lhe pode beijar as mãos: embora elas continuem a curar e a abençoar.

Também não pode ser nos pés: embora eles continuem a andar pelos caminhos insondáveis da alma humana como andou pelos da Palestina.

O pé direito foi cortado juntamente com a perna abaixo do joelho. O outro foi arrancado ao madeiro da cruz e ainda se pode ver o rasgo que lhe foi feito pelo cravo que o prendeu.

A este Cristo nem o beijo de Judas se lhe pode dar: toda a cabeça foi brutalmente arrancada. O último beijo que recebeu foi o de um traidor.

Se tivesse cara, o sítio desse beijo ainda devia queimar. E em cima desse, quantos iguais não lhe temos sobreposto?

Como um ladrão, sepultei no bolso do sobretudo aquele Cristo amortalhado em notícias de um jornal velho.

Antes de regressar a casa com o meu tesouro, ainda dei mais umas voltas por aquela feira onde em bancas desmontáveis ou simples panos estendidos no chão tudo se vende e tudo se compra, agarrando dentro do bolso um Cristo que – 
como há dois mil anos - por muito pouco foi comprado.

Afonso Cabral


[1] Mt 13, 44

1 comentário:

  1. Faltam-me as palavras!

    Apenas uma oração:
    Meu Senhor e meu Deus!

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