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19/07/2011

Elogio da Loucura (Afonso Cabral)

Navegando pela minha cidade
Foi pela Rua Sampaio Bruno feita rio em que navegava, que aportei na liberdade 
feita Praça onde, dezenas de embarcações ancoradas faziam a Feira do Livro. Era toda uma frota cheia de livros por ali acima até à Praça Humberto Delgado.
Se estivermos atentos a vida é muito mais aventura.
Acontece que exactamente no dia anterior encontrei um amigo de infância que me disse - por razões que agora não têm interesse - que tinha um livro que era do meu bisavô e que mo queria dar. Acompanhei-o até casa dele e entregou-me um livro excelentemente encadernado em carneira e com o ex-líbris do meu antepassado. O livro era Tartarin sur les Alpes.

Do Tartarin de Tarascon só conhecia a referência que lhe foi feita pelo Padre Escrivá [1] no seu livro Amigos de Deus e que cito: “Pensando naqueles que, à medida que o tempo passa, ainda se dedicam a sonhar - em sonhos vãos e pueris, como Tartarin de Tarascon - com caçar leões nos corredores de casa, onde se calhar só há ratos e pouco mais, pensando neles, insisto, lembro a grandeza de actuar com espírito divino no cumprimento fiel das obrigações habituais de cada dia…”

Procurando numa prateleira de um alfarrabista que oferecia livros a três e cinco euros, e nem sabendo que o Tartarin era do meu homónimo Afonso Daudet os meu dedos catam o Tartarin nos Alpes numa edição portuguesa. Que coincidência! Mas logo mais à frente, o que me interessou foi o Elogio da Loucura de Erasmo de Roterdão que logo agarrei por cinco euros.

E segui para outra editora. Estava eu muito concentrado a ler as lombadas de vários livros em saldo quando - de repente – um berro soprado como se fosse uma vuvuzela soou a vinte centímetros do meu ouvido, vindo por trás de mim: SOPA!

Com o susto, dei um salto para o lado com coração em arritmia e levantei o braço direito para me defender do ataque. O Elogio da Loucura era o meu escudo.

Os olhos pretos nas órbitas brancas de uma mulher louca fixavam-me com um brilho de animal selvagem e a boca desdentada e escura como um buraco voltou a berrar: SOPA! UMA SOPA!

As mãos da doida agarraram-me os braços como se ela se estivesse a afogar. Eu recuava e defendia-me com o Elogio da Loucura e perguntei: quanto custa uma sopa? A louca gritou: um euro e cinquenta!

Recuei mais um passo daquele oceano de demência com a náufraga agarrada ao caixão do meu corpo a berrar: O DOUTOR É TÃO BOM, TÃO BOM, DÊ-ME QUALQUER COISA!

Segurei o Elogio da Loucura com os dentes e sacando a carteira do bolso detrás das calças, tirei um euro e comprei o silêncio da louca.

Depois dela se afastar, fiquei a pensar que dentro da louca estava uma pessoa – um ser humano – cujo silêncio me custou menos quatro euros do que o Elogio da Loucura. E que isto tudo era de doidos.


“Tudo isto aponta certamente para a mesma direcção: que todos os mortais são loucos, mesmo os devotos. Também Cristo, apesar de ele ser a sabedoria do Pai, se fez passar de certa maneira por louco, para socorrer a loucura da humanidade, quando assumiu a natureza de homem e foi visto na forma humana, tal como se fez passar por pecado para redimir os pecadores. Nem desejou que fossem redimidos por qualquer outra forma que não fosse pela loucura da cruz e através dos seus apóstolos simples e ignorantes, a quem infalivelmente pregou a loucura” [2].

E assim sendo – nesta linha de registo de Erasmo - só desejo ser cada vez mais louco. Porque ao louco tudo se lhe perdoa; porque é inimputável e por isso nunca é condenado.

Afonso Cabral


[1] São Josemaria Escrivá de Balaguer
[2] Erasmo de Roterdão – Elogio da Loucura – SPORPRESS – 2003 – pág.118

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