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13/06/2011

Pro Labore (Afonso Cabral)

Navegando pela minha cidade
Há muito que a capital do norte é conhecida como a cidade do trabalho. Admito que só posso compreender isto – não porque se trabalhe menos nas outras cidades – mas apenas por oposição à capital do sul onde pouco se trabalha.

Lisboa tem a corte, o poder e o capital. O Porto tem o trabalho, o engenho e a arte.

E digo isto, não por um bairrismo provinciano, mas porque é uma realidade que se impõe histórica e quotidianamente. É uma verdade mais do que axiomática, é um teorema demonstrável em qualquer sítio, em qualquer rua.

Se não, vejamos: entremos numa rua qualquer, por exemplo na Rua de Santa Catarina.

Entrei ontem nesta rua vindo da Praça da Batalha onde o velhinho cinema Águia D’Ouro, depois de anos e anos de solidão e de esquecimento de todos os filmes que projectou, está a ser restaurado e irá renascer em forma de hotel low cost.

Já tinha passado o alto da Rua 31de Janeiro quando começo a ouvir – naquela manhã azul e suave de princípios de Maio – as notas de um carrilhão numa melodia tão angelical que fez parar toda a gente que passava.

 Cada toque de sino atravessava a rua e sobrevoava-a como se fosse uma andorinha. E a essa seguiam-se outras e outras andorinhas que me passavam pela alma deslizando numa espécie de lamento mudo ou alegria mística.

E o céu ficou mais azul e mais perto, assim riscado pelas notas dos sinos, que em bando louvavam Maria. Era meio-dia em ponto. Era a hora do Angelus. Os sinos tocavam a Ave Maria de Shubert.
 Ali, na antiga Rua da Bela Princesa – na cidade da Virgem - louvava-se a Nossa Rainha.

Depois deste real encantamento procurei o relógio de carrilhão, procurei esse bando de sinos que voaram pela rua e pelo meu coração em louvor da Rainha do Meio Dia.

E encontrei-os, muito quietos e pousados em duas filas verticais e paralelas de 9 sinos cada, na fachada que dobra a esquina da Rua de Santa Catarina com a Rua Passos Manuel da antiga casa dos Grandes Armazéns Nascimento e que hoje pertence à C&A e à FNAC.

Esse extraordinário edifício foi construído pelo grande arquitecto portuense (os grandes arquitectos não são todos portuenses?) Marques da Silva.

Das inúmeras obras de arte com que este artista marcou o Porto, destaco o Teatro São João; a estação de São Bento; o Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular e a Casa e Jardins de Serralves. Só por estas emblemáticas quatro obras se pode dizer que moldou o Porto.

No alto, em cima de cada uma das fachadas impera o lema: PRO LABORE.

Este carrilhão foi mandado fazer pela firma holandesa C&A que teve a grandeza de o ter animado com quatro figuras portuenses em tamanho natural que – enquanto o carrilhão toca – saem de uma janela, acenam ao povo e voltam a entrar.

São elas: São João Baptista, o Infante Dom Henrique, Almeida Garrett e Camilo Castelo Branco.

A Rua é rica em memórias de poetas e escritores: no segundo andar do antigo nº 458 casou Camilo Castelo Branco com Ana Plácido; na casa com o nº 208 nasceu e morreu o romancista e poeta Arnaldo Gama e na casa com o nº 467 nasceu o autor de SÓ. Não é pouco.

Quando me vinha embora, e depois de ter passado por um palhaço que enchia balões com forma de salsicha; por dois tipos com ar de gigolos a venderem réplicas de óculos Ray Ban e de um pedinte que se arrastava apoiado em dois cajados, ouvi uns fracos e trémulos toques de uma Melódica e vi que a mulher que a tocava não tinha olhos. Literalmente. Onde eles deviam estar só havia pele lisa. A débil música que saía da Melódica era a Casa Portuguesa.

Se isto tudo não é trabalho, engenho e arte, então o que é?

Quod erat demonstrandum


Afonso Cabral

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