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27/06/2011

Estrutura Afonso Cabral)

Navegando pela minha cidade
Se um quadrado tem quatro lados um quarteirão tem quatro ruas. É assim que as ruas Sá da Bandeira, Formosa, Fernandes Tomás e Alexandre Braga fazem o Mercado do Bolhão que ocupa um quarteirão inteiro.

Numa arquitectura neoclássica o Mercado do Bolhão é um autêntico Riad marroquino em pleno Porto. Ou seja, virado para dentro como as ínsulas da Roma antiga. O que se passa lá dentro é do domínio privado. 


Porque o público também tem direito à privacidade. O público quando franqueia as portas do Mercado de Bolhão deixa de ser gente da rua para ser pessoa e depois, mais à frente - junto à fruta – freguês; e ainda mais lá para dentro – nas bancas das peixeiras – môr. [1]

Há toda uma metamorfose de intimidades naquele mercado.

Quando ainda mal entrados nos perguntam:” Oh freguês então o que vai levar hoje? ou “Oh môr olhe que rica sardinha do nosso mar!” até parece que ainda na véspera lá fomos. E assim somos fidelizados mesmo se não tivermos sido fiéis.

Ali, Portugal inteiro é um pomar e o mar é todo nosso.

É que nos oferecem muito mais do que uma peça de fruta, oferecem-nos o fruto da primavera; oferecem muito mais do que um peixe, oferecem-nos um raio de prata roubado ao azul-marinho; oferecem muito mais do que uma concha de azeitonas, oferecem-nos um olival sem fim.

É todo um serviço personalizado com a autenticidade de não terem sido precisos cursos de formação profissional sobre atendimento público.

Aqui não há novas oportunidades para fazer uma venda.

Por no próximo dia 31 de Maio [2] o Mercado do Bom Sucesso ir fechar definitivamente as portas, decidi ir despedir-me dele indo ao Mercado do Bolhão.

Sim, um sentido de urgência ou de eminência levou-me ao que - embora muito ferido e doente - ainda não tem a sentença de morte lavrada. Fui lá talvez com a mesma lógica que manda tratar dos feridos primeiro e só depois enterrar os mortos.

É que se deixarem (deixarmos) morrer este mercado, ofendemos grave e irremediavelmente a própria autenticidade da vida da cidade.

Com medo e inquietação, olhava para os canos e andaimes a enfiarem-se pelas paredes; segurando tetos e andares como se fossem sondas, cateteres, algálias; tubos de frascos de soro e antibiótico num doente numa Unidade de Cuidados Intensivos.

Não me morras! Não me morras! Supliquei interiormente para toda a memória de uma vida feita mercado.

É que tudo isto é tão verdadeiro; tão autêntico e tão frágil. E tudo o que é verdadeiro e puro é também inocente. E a inocência é a essência da fragilidade.

Em nome do progresso têm-se perpetrado as maiores barbaridades. Tantas como em nome da Paz ou em nome de Deus. Na verdade, o progresso - entendido como melhoria ou evolução - nunca se cumpre destruindo valores; nunca acontece fracturando; nunca tem futuro destruindo o passado; nunca pode fazer-se negando a vida.

Chegando ao pé da vendedora de plantas (quantos canteiros de zínias e séssias lhe comprei!) que estava desanimadamente assentada num banquinho de madeira perguntei-lhe: “Acha que vão fazer ao Bolhão o mesmo que ao Bom Sucesso?”. 

Ela olhou para mim cheia de serenidade e respondeu: “Não. Isto tem outra estrutura”.

E ali estava quem – com a confiança de uma fé inabalável – acreditava que uma boa estrutura vence sempre uma má conjuntura.

Certamente esta mulher construiu a sua casa sobre rocha sólida.


Afonso Cabral


[1] Abreviatura de amor no pregão: Oh môr o que vai levar hoje?
[2] 31 de Maio de 2011

1 comentário:

  1. Era tão bom se os nossos governantes entendem-se esta simples, (mas de um alcance inestimável), frase:
    «Na verdade, o progresso - entendido como melhoria ou evolução - nunca se cumpre destruindo valores; nunca acontece fracturando; nunca tem futuro destruindo o passado; nunca pode fazer-se negando a vida.»

    Gostei!

    Um abraço

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