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27/04/2011

A metamorfose (Afonso Cabral)

Navegando pela minha cidade
Todas as civilizações começam da mesma maneira: substituindo outra, preenchendo um vazio, ocupando o espaço deixado pela que se desfez; que se arruinou ou se esgotou. E as suas quedas são sempre tão mais ruinosas quão mais grandiosas elas foram.

Kafka[1] escreveu um livro intitulado A Metamorfose em que relata como um homem, de um dia para o outro se vai transformando num insecto monstruoso. Esta metamorfose física acaba por a pouco e pouco lhe alterar também o comportamento, os sentimentos e o carácter. Não tem consciência da sua transformação e desespera perante o absurdo da vida.

Penso que a nossa civilização está em acelerado processo de metamorfose. Metamorfose dos principais valores que estiveram no fundamento da chamada civilização cristã ou ocidental.

A instituição social conhecida por família passou a chamar-se família tradicional. Assim sendo, quer dizer que há outras variantes de família. Isto é, há uma metamorfose da célula base da organização do tecido social para uma forma de organização semelhante à tribal.

A religião, ou seja, o sagrado e a consequência da fé, passou a ser intolerável e banida da civitas. Isto é, há uma metamorfose da transcendência para a experiência e da tolerância para o fundamentalismo laicista.

A democracia inclusiva e solidária, passou a ser uma ditadura da mediocridade e exclusiva. Isto é, há uma metamorfose do nós para o eu; do povo para a corporação.

Admito que estas metamorfoses sejam causa e efeito de uma cultura que, adormecida numa paz podre, vive à flor da vida e na superfície do sentimento. De uma cultura que tem em largura e comprimento o que lhe falta em profundidade, e por isso é plana. Arrasou tudo e nivelou-se pela metade. Deixando de sonhar com o cume rasteja na planície.

Não se trata de uma geração e por isso as consequências são mais graves; são civilizacionais.

Deixou de acreditar no amor e morre por falta dele.

Por preguiça, instalou-se na poltrona da dúvida sistemática, resultando que todos os valores passaram a ser subjectivos e por isso deixaram de o ser. Porque sem ordem, hierarquização e sistematização tudo se nivela e tudo se igualiza.

 E quando tudo é igual em absoluto nada tem valor relativo.

Tudo reporta à consciência, mas não se cuida de a formar. E assim a moralidade das coisas está na sua legalidade e nos seus fins que sempre justificam os meios.

O sentimento deixou de ser um efeito moral para ser uma necessidade existencial. E assim é-se sentimentaloide em vez de sentimental.
Dá-se todo o primado à razão, mas exigem-se os sentidos para o cumprimento de qualquer hipótese de realidade sobrenatural.

A consequência é uma imensa angústia e revolta existencial ou então a indiferença perante tudo e todos. E a indiferença é a essência da desumanidade. Sendo o Homem a medida de todas as coisas e o centro do universo, odeia tudo o que não se lhe sujeita.

Em plena metamorfose está-se no vazio; suspensos na vertigem do meio da ponte e do precipício. E tudo oscila e muitos se perdem.
Mas do outro lado do rio tormentoso há uma margem segura e certamente melhor.

Acredito na humanidade. A metamorfose pode ser dolorosa, mas desejo mais a possível verdade do futuro do que muitas falsidades do passado.

Afonso Cabral


[1] Franz Kafka (1883 – 1924)

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