Páginas

30/03/2011

O nascimento de um escritor (Afonso Cabral)


Navegando pela minha cidade

Há relativamente pouco tempo dei boleia a um amigo até à Rua do Padre Luís Cabral. Depois de o lá ter deixado segui para minha casa e lembrei-me então do menino grapiúna. A política de educação estava na ordem do dia: o essencial era o sucesso escolar; a diminuição das taxas de abandono; o aumento dos anos da escolaridade obrigatória; o estatuto dos alunos; os direitos dos professores; etc, etc . mais a geração rasca ou à rasca que tudo isto gerou. A geração do que parvo que eu sou; que mundo tão parvo onde para ser escravo é preciso estudar[1]. Mas o que é que o menino grapiúna tem a ver com isto tudo? Já lá vamos.
A Rua do Padre Luís Cabral é uma das ruas mais compridas e mais típicas da Foz velha. É uma rua de que me orgulho especialmente porque o Padre Luís Gonzaga Cabral foi meu tio-bisavô.” Foi padre da Companhia de Jesus, tendo feito com grande brilho o seu doutoramento em Filosofia, pelo Colégio Máximo de Uclés (em Espanha) e a formatura em Teologia pelo de Vals, no Puy (França) ”[2]. Em 1910 foi forçado a exilar-se no Brasil no seguimento da implantação da República e da expulsão das ordens religiosas. Dedicou toda a sua vida ao ensino tendo sido “Reitor dos Colégios de Campolide, de Nun’Álvares (em Alsemberg) e de António Vieira (na Baía), bem como reformador do primeiro e fundador dos outros dois. Educador insigne e escritor notável, tem sido considerado como o maior orador sagrado da língua portuguesa do seu tempo. Morreu na Baía (Brasil) a 28 de Janeiro de 1939”[3]. E era este padre com este curriculum que era professor de português a alunos do correspondente ao sexto ano actual, no Colégio António Vieira na Baía. O Colégio não exigia menos do que isto. E foi a ensinar que este padre cumpriu a sua vocação até ao fim. Como um semeador de florestas, sabendo que nunca iria ver as suas árvores a terem ninhos de pássaros. Viveu da esperança como padre e como educador. Mas, e o menino grapiúna onde é que entra aqui? Ele vai dizer: No colégio dos jesuítas, pela mão do padre Cabral, encontrei nas “Viagens de Gulliver” os caminhos da libertação, os livros abriram-me as portas cadeia … em lugar de nos fazer analisar “Os Lusíadas”, tentando descobrir o sujeito oculto e dividir as orações, reduzindo o poema a complicado texto para as questões gramaticais, fazendo-nos odiar Camões, o padre Cabral, para seu deleite e nosso encantamento, declamava para os alunos episódios da epopeia…. As aulas de português adquiriram outra dimensão. O primeiro dever passado pelo novo professor de português foi uma descrição tendo o mar como tema. A classe se inspirou toda ela, nos encapelados mares de Camões, aqueles nunca dantes navegados, o episódio do Adamastor foi reescrito pela meninada. Prisioneiro no internato, eu vivia nas saudades das praias do Pontal onde conhecera a liberdade e o sonho. O mar de Ilhéus foi o tema da minha descrição.
Padre Cabral levara os deveres para corrigir em sua cela. Na aula seguinte, entre risonho e solene, anunciou a existência de uma vocação autêntica de escritor naquela sala de aula. Pediu que escutassem com atenção o dever que ia ler. Tinha a certeza, afirmou, que o autor daquela página seria no futuro um escritor conhecido. Não regateou elogios. Eu acabara de completar onze anos”[4]. Pois é, quem escreveu isto foi Jorge Amado.


Quantas vocações de escritores, de poetas, de filósofos e de padres o nosso sistema de ensino e o desinteresse e alheamento dos pais não matará à nascença?
É extraordinário o provincianismo ignorante e basbaque dos deslumbrados pela ciência e pela técnica que não vêem que uma sociedade sem humanidades transformar-se-á numa sociedade desumanizada.

Afonso Cabral


[1] Excertos da letra da música Que parva que sou – da banda musical Deolinda
[2] A.C. de Sequeira Cabral – Resenha Genealógica e Biográfica duma Família Portuense – Porto - 1981 – pág. 18
[3] Ib.
[4] Jorge Amado – O menino grapiúna – Publicações Europa - América – págs.109,110,115,116. 

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.