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04/03/2011

MESTRE DE BOM HUMOR


Entrevista ao Pe. José Luís Soria

O Pe. José Luís Soria conheceu São Josemaria no ano de 1953. Médico, ordenou-se sacerdote em 1956 e, desde esse momento até ao último dia que São Josemaria passou na terra, viveu a seu lado, em Roma. Actualmente desenvolve o seu trabalho sacerdotal no Canadá.

Considera que um dos traços mais característicos da personalidade de São Josemaria é o seu bom humor, até ao ponto de ter escrito um livro com esse título: Mestre do bom humor. Como se manifestava esta característica?

Efectivamente, no livro explico o que – em meu entender – foi uma característica da personalidade de São Josemaria. Por um lado, a sua atitude optimista e sorridente perante a vida, que dava um tom tão atractivo e positivo à convivência com ele. É o que se pode chamar, com propriedade, o seu bom humor, a sua alegria. Era uma consequência do seu temperamento, reforçado pelo modo sincero e radical como se sabia filho de Deus.

Por outro lado, a rapidez com que costumava responder a um interlocutor, com um comentário engraçado ou espirituoso, também indica um sentido de humor especial e desenvolvido, que é mais do que simples alegria. Parece-se ao que os ingleses chamam wit, ou seja a capacidade de perceber rapidamente o incongruente, o ambíguo ou o indelicado, e de reagir perante essa realidade de um modo - frase ou gesto - inesperado e divertido. São Josemaria era também um mestre neste sentido. Quando o víamos num ambiente familiar e à vontade era fácil sorrir ou mesmo rir francamente perante as suas saídas cheias de humor inteligente e carinhoso.

Contudo, São Josemaria possuía uma personalidade forte e um carácter vigoroso, dizia as coisas com muita clareza. Isto não poderia criar, em certas ocasiões, situações mais tensas? Como era a sua maneira de corrigir?

É verdade, o seu carácter era vigoroso, e o seu temperamento muito aragonês. Costumava dizer que essa era uma das razões pelas quais Deus o tinha escolhido para Fundador do Opus Dei, tendo em conta os obstáculos de toda a espécie que iria encontrar na sua tarefa de fazer a Obra. Isso podia originar às vezes situações mais tensas, principalmente se a pessoa não conhecia bem São Josemaria ou tinha um temperamento tímido. Toda a correcção dói, porque o nosso amor-próprio se sente sempre ferido. Mas ao longo de vinte e dois anos, recordo unicamente uma ocasião em que São Josemaria me corrigiu sem motivo. E quando se deu conta, pediu-me desculpa e manifestou-me com obras o seu carinho de sempre.

Diria que, qualquer correcção que fizesse, ia logo acompanhada de um detalhe especial de afecto, embora fosse insignificante para um observador externo. Recordo, por exemplo, o que costumava fazer se algum dos que trabalhavam com ele tinha sofrido alguma repreensão durante a manhã de trabalho. Às vezes, quando São Josemaria chegava à tertúlia que tínhamos com ele depois do almoço, fazia-o sorrindo e mostrando um rebuçado – só um – entre o polegar e o indicador da mão direita. Quando o víamos chegar assim, já sabíamos que o destinatário da guloseima ia ser alguém que tinha recebido nessa manhã uma repreensão. A entrega ia sempre acompanhada de algum dos carinhosos epítetos que São Josemaria usava em família: toma, meu malandro.

A vida a seu lado era agradável? Por vezes podemos pensar que não é fácil viver perto de um santo. Que nos diz a este respeito?

O próprio São Josemaria costumava repetir a mesma ideia com palavras diferentes, quando nos dizia, incluindo-se a si próprio, que devíamos evitar aquela noção de que “para aguentar um santo, são necessários dois santos”. Sempre interpretei essa ideia como expressão de quão difícil deve ser viver com alguém que se acha santo, porque então, aquilo que na realidade são manias ou opiniões pessoais podem quase converter-se em dogmas de fé. Mas isso não sucedia com São Josemaria, por duas razões principais. Primeiro, porque a sua santidade – e portanto a sua humildade e a sua caridade – era genuína. O Magistério da Igreja é agora o testemunho supremo e definitivo desse facto, embora São Josemaria se definisse como um pecador que ama Jesus Cristo. E segundo, porque tinha um grande amor à liberdade pessoal, sem impor dogmas, rectificando quando se dava conta que se tinha enganado e defendendo ardentemente a liberdade de cada um na Obra.

De facto, o bom humor não só é compatível com a caridade, pode ser até uma das suas formas mais delicadas. Entre os carismas que Deus concedeu ao Fundador do Opus Dei, há um que – para quem não o conheceu – poderia passar quase despercebido: o de aproximar as pessoas de Deus pelo plano inclinado do bom humor. Em Caminho escreveu que: a verdadeira virtude não é triste e antipática, mas amavelmente alegre, e assim procurou sempre viver. Por isso, era um prazer estar perto dele, embora não faltassem momentos em que o cansaço ou a doença se fizessem notar na vida em família. Talvez pudessem ser duros, mas todos sabíamos que eram como escolhos isolados num imenso oceano de carinho, paz e alegria.

Como reagia perante os acontecimentos objectivamente maus: calúnias, falta de fidelidade a Jesus Cristo, ou a doença grave ou morte de alguma pessoa querida?

Sempre o vi reagir com um grande sentido sobrenatural, como um homem de grande coração e de uma fé autêntica. Conforme a natureza da contradição, podia reagir com tristeza, se o acontecimento envolvesse uma falta de fidelidade a Jesus Cristo, quer fosse uma calúnia ou uma falta de generosidade com Deus. Mas aplicava a fórmula que sempre nos aconselhava: rezar, calar, sorrir, perdoar. Recordo a sua dor e, ao mesmo tempo, a sua paz, quando recebeu a informação médica acerca da doença que sofria (e de que veio a falecer) o Pe. José Maria Hernández Garnica, um dos três primeiros sacerdotes do Opus Dei. Pediu-me que lhe explicasse detalhadamente a informação, que estava redigida com termos técnicos. Estávamos só os dois numa sala, e quando comecei a explicar o significado do diagnóstico e do grave prognóstico clínico, São Josemaria começou a chorar desconsoladamente. Quando acabei de ler, disse-me: perdoa, filho, pelo mau exemplo que te dei, mas assim também viste que o Padre tem coração. E seguidamente recitou, muito devagar, como saboreando-a, a oração que tinha incluído no ponto 691 de Caminho: Faça-se, cumpra-se, seja louvada e eternamente glorificada a justíssima e amabilíssima Vontade de Deus sobre todas as coisas. -Amen.- Amen.

E perante as pequenas coisas da vida normal, que podem ser difíceis e incómodas?

Nesse aspecto, a minha experiência é que habitualmente não se notava que essas pequenas coisas o afectassem, se se tratava de pequenas avarias mecânicas, faltas de luz, incómodos de saúde pessoais, etc. Penso que essa – digamos – aparente falta de reacção, era na realidade o resultado de um processo sobrenatural, em que entravam a aceitação da vontade de Deus, a fortaleza perante a incomodidade e o desprendimento de elementos de conforto pessoal, entre outras coisas. Estava consciente de que se encontrava perante uma mortificação passiva, e recebia-a de bom grado, com o desejo de santificar as coisas pequenas e habituais, que são tão próprias da espiritualidade do Opus Dei.

As coisas eram um bocado diferentes quando na contradição havia algum elemento humano que implicava falta de responsabilidade, negligência, preguiça, etc. A maior parte das vezes reagia, e, em algumas ocasiões energicamente, para corrigir e assim ajudar a pessoa em causa, mas fazia-o não porque o sucedido o incomodasse a ele, mas porque isso implicava uma ofensa ao Senhor ou, pelo menos, uma falta de amor a Deus.

Que gostaria de transmitir da sua experiência pessoal no Opus Dei, àqueles que chegaram depois?

Gostaria de lhes dizer que entendam bem a insistência com que São Josemaria exortava a cumprir as normas de piedade 1, que fazem parte do plano de vida espiritual dos fiéis da Prelatura: cumpri-me as Normas, dizia sem cessar. Mas é necessário, como também ensinou D. Álvaro del Portillo, seu sucessor imediato à frente do Opus Dei, que não seja meramente cumprir. Com um jogo de palavras, D. Álvaro explicava que “cumplimiento” (= cumprimento) não deve ser "cumplo-y-miento" (=cumpro e minto): faço-as como tarefas que têm de ser feitas, fazê-las com exactidão em quantidade, mas talvez sem cuidar tanto da sua qualidade. São Josemaria dizia que cada norma de piedade tem de ser um verdadeiro encontro com Jesus Cristo, quer dizer, não um simples acto piedoso, que se cumpre por obrigação, como quem se livra de uma tarefa para poder dedicar-se a outras coisas. Essa é a minha experiência: que descubram o valor santificador de cada uma das normas, fazendo-as com fidelidade e grande amor de Deus e com a maior atenção possível. Diria que as façam de tal modo que o seu nível de presença de Deus aumente depois de terem cumprido uma das normas. Assim, e só assim, chegarão a ser almas contemplativas no meio do mundo, como foi São Josemaria.

P. josé luís soria, Canadá 2009

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1 Estas normas de piedade, que os fiéis do Opus Dei praticam, têm como finalidade conhecer, ganhar intimidade e amar mais Jesus Cristo. Por exemplo, participar na Santa Missa, comungar, confessar-se com frequência, ler a Sagrada Escritura e outros textos espirituais, rezar o Terço, dedicar um tempo à oração, etc.

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