Páginas

01/02/2011

Olhai que eu não vejo! (Afonso Cabral)


NAVEGANDO PELA MINHA CIDADE

Quando ia a começar a atravessar a Praça do Exército Libertador ouvi uma voz forte de homem a bradar muito alto: meus irmãos! Olhai que eu não vejo! Por amor de Deus dai-me qualquer coisa!
Fiquei como que paralisado e dentro e fora de mim fez-se um silêncio antiquíssimo. Bandos de pombas levantaram um voo de cinza azulada sem que se tivesse ouvido o assobiado clape-clape das suas asas que as levaram para cima dos postes dos semáforos e das árvores despidas de folhas daquela pequena praça do Carvalhido. E a voz voltou a gritar: olhai que eu não vejo! Virei-me e vi, encostado na esquina da antiga Igreja do Carvalhido, um homem com uma fina bengala de alumínio e uns óculos de massa com vidros de um verde muito escuro. Vi logo que se tratava de um homem que não via, de um cego.
Mas que extraordinário pregão ele gritava: olhai que eu não vejo! E eu olhava e via que ele não via. E alguém via porque é que em nós ele via irmãos?
Eu já não sabia o que ia fazer ou para onde ia. Só sei que continuava ali parado a olhar para quem não via e a sentir que qualquer coisa de maravilhoso estava a acontecer; parecia-me que tudo estava parado no tempo e no espaço e aquele homem não estava a pedir nada mas sim a dar.
E foi então – passado um tempo que não se regula pelos relógios – que ouvi na minha memória a voz de uma raposa a falar a um Principezinho: on ne voit bien qu’avec le coeur. L’essentiel est invisible pour les yeux[1]. Ah! É verdade! Quando esquecemos o essencial o coração deixa de ver, fica cego e inviabiliza a fraternidade. Pior ainda, deixamos de perceber que a fraternidade só o é porque somos todos filhos do mesmo Pai.
Meus irmãos! Olhai que eu não vejo! Por amor de Deus dai-me qualquer coisa! Repetiu o cego aos berros fazendo levantar novamente as pombas num voo errático. E eu acabei por sair daquela espécie de paralisia ou encantamento e atravessei a rua a ver melhor com o que aquele homem me tinha dado.

Afonso Cabral


[1] Antoine de Sant-Exupéry, Le Petit Prince – Éditions Gallimard , Paris -1946  - pág. 72 (só vemos bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos)

1 comentário:

  1. O único comentário possivel para mim é:
    Obrigado, também eu fiquei a ver melhor!

    Um abraço amigo em Cristo

    ResponderEliminar

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.