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07/01/2011

Observatório 7

Política a Sério   22 Janeiro 2010

Excesso de civilização

Autor: José António Saraiva, Director do Jornal  O Sol

A Civilização melhora-nos ou piora-nos? A Civilização educa-nos, lima-nos as arestas, refreia os nossos impulsos primários, dá-nos sofisticação, apura-nos, numa palavra, torna-nos seres sociáveis, passíveis de convivermos agradavelmente uns com os outros?
Ou, pelo contrário, a Civilização castra-nos, retira-nos autenticidade, torna-nos iguais uns aos outros, apaga as diferenças, mata o que é genuíno, dilui o individual, promove o cinismo, a falsidade, os comportamentos de conveniência? Nunca obteremos resposta a estas perguntas, pela simplicíssima razão de que ambas as ideias são verdadeiras. É óbvio que a Civilização nos torna menos genuínos; mas não é menos óbvio que, sem Civilização, a vida em sociedade se tornaria insuportável.


Entretanto, o ‘excesso de Civilização’, de que alguns sectores das sociedades europeias padecem (e que Eça tão bem retratou há mais de um século n’ A Cidade e as Serras), impede-nos por vezes de ver as coisas simples.  Assim, de vez em quando é necessário e refrescante regressar ao básico.
Por exemplo: por que é que as pessoas sentem fome – e esta, a partir de certos limites, se torna insuportável? Porque, se não comermos, morremos. Porque a alimentação é indispensável à vida. Se não sentissem fome, provavelmente os homens não se tinham aventurado na caça e na pesca, nem afadigado a cultivar a terra. E à míngua de alimentos tinham definhado e morrido.
E o mesmo se passa com a sede.

O nosso organismo está constantemente a emitir sinais. Quando nos dói um órgão, é sintoma de que algo ali não está bem. É um aviso. E qual a razão por que os doentes perdem o apetite? Porque os alimentos também ‘alimentam’ a doença, contribuindo para a propagação do mal. Perante uma doença, o organismo retrai-se, tem o mínimo de actividade possível – exactamente para se defender, para evitar que a doença se espalhe. O nosso corpo é, pois, superiormente inteligente – e por isso devemos aprender a escutar os seus sinais. Através deles perceberemos aquilo que nos faz mal e nos faz bem. O que necessitamos para manter o equilíbrio e o que nos desequilibra.
Devemos seguir os apetites – porque eles correspondem a necessidades: apetece-nos laranjas se precisamos de vitamina C ou queremos um bolo para repor o açúcar, do mesmo modo que rejeitamos o café quando estamos mal do fígado.

Sobre a inteligência do organismo humano, um médico disse-me um dia uma coisa muito curiosa. Estávamos em Bruges e fazia um frio de rachar. Ele perguntou-me:
– Sabe por que é que, quando está frio, as pessoas urinam mais vezes?
-- Talvez porque a bexiga está contraída… – respondi sem grande convicção.
-- Nada disso! É porque o organismo tem de manter a urina quente e isso representa dispêndio de energia. Ora, no tempo frio, o organismo quer gastar o mínimo de energia possível.
Outra prova curiosa da inteligência do organismo está no posicionamento dos testículos, dentro de um saco exterior. A explicação é que os espermatozóides morreriam à temperatura do interior do corpo.

Todas as manifestações de inteligência do organismo vão no sentido da sobrevivência do seu proprietário – e, por extensão, da sobrevivência da espécie. Neste quadro se integra a atracção sexual. Se a atracção sexual desaparecesse, a espécie humana extinguia-se. Se não houvesse desejo, a espécie humana não existiria. Portanto, a atracção entre homens e mulheres é normal, natural, indispensável. Inversamente, a atracção por indivíduos do mesmo sexo deve considerar-se um desvio da natureza. Não uma opção – porque ninguém opta por sentir desejo por um indivíduo do seu sexo. Ninguém diz: «Vou ser homossexual». Como não diz: «Vou ser heterossexual» ou «Vou ser bissexual». Ninguém ‘opta’ nessa matéria. A atracção sexual sente-se ou não se sente. Daí que a expressão ‘opção sexual’ seja um tremendo disparate.

Há um desejo básico que é responsável pela conservação da espécie – e depois há desvios a esse instinto, que vão da atracção sexual por indivíduos do mesmo sexo à atracção por crianças, por velhos, etc. É a isto que se chama ‘diferença’. Há um comportamento-padrão – e comportamentos que fogem ao padrão. Estou muito à vontade para falar disto porque sempre defendi a diferença – e o direito à diferença – nas mais diversas áreas. Mas atenção: o facto de defendermos o direito à diferença (que é uma conquista da Civilização) não significa que não entendamos o porquê do combate à diferença.  O combate à diferença está na matriz das sociedades humanas, porque é um meio de defesa. Por razões de sobrevivência, todos os grupos rejeitam instintivamente o que é diferente. Se, em qualquer meio, o que é diferente começasse a espalhar-se, o grupo ficaria em perigo. O mesmo se passa, de resto, no nosso organismo: ele combate as células diferentes. E quando isso deixa de acontecer, quando os organismos deixam de resistir à diferença, essas células multiplicam-se sem controlo, a doença alastra e o organismo fica ameaçado de morte.     
As sociedades estão sujeitas aos   mesmos perigos: quando perdem a capacidade de luta, também ficam entregues ao declínio e à morte.

É isso que caracteriza os períodos de decadência. Nessas alturas, a tolerância, potenciada pela Civilização, torna-se tão grande que a sociedade fica ameaçada. Todos os comportamentos são admissíveis, tudo é possível, tudo é aceitável, deixa de haver regras, a matriz dilui-se.
Daí que, sendo eu por natureza tolerante, percebo que a tolerância não pode ir além de certos limites.  A tolerância não pode ir ao ponto de destruir o instinto de sobrevivência.
A Civilização permite a vida em sociedade – mas o excesso de Civilização mata. E penso que podemos já ter atingido esse ponto. A tolerância em relação aos homossexuais é um sinal de Civilização. A repressão e a discriminação da homossexualidade não são aceitáveis. Mas a equiparação dos casamentos entre indivíduos do mesmo sexo ao casamento entre pessoas de sexos diferentes também não é nada saudável.

Há que ter noção do que é natural e do que é desviante. Ora, tendo o Estado a obrigação de dar à sociedade os sinais certos, ao legitimar o casamento entre pessoas do mesmo sexo está a dar aos cidadãos um sinal errado. Está a dizer que é ‘tudo a mesma coisa’. Que tanto faz um homem casar-se com uma mulher como com outro homem – e vice-versa. Ora isso não é verdade – como atrás ficou demonstrado.


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