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29/10/2014

Terceiro mistério luminoso: o anúncio do Reino de Deus

Textos do fundador do Opus Dei sobre o terceiro mistério da luz do Santo Rosário. 

Quando Cristo inicia a sua pregação na Terra, não oferece um programa político, mas diz: fazei penitência, porque está perto o reino dos Céus. Encarrega os seus discípulos de anunciar esta boa nova e ensina a pedir, na oração, a chegada do reino, isto é o reino dos Céus e a sua justiça, uma vida santa, aquilo que temos de procurar em primeiro lugar, a única coisa verdadeiramente necessária.

A salvação pregada por Nosso Senhor Jesus Cristo é um convite dirigido a todos: o reino dos céus é semelhante a um rei, que fez as núpcias de seu filho. E mandou os seus servos chamar convidados para as núpcias. Por isso, o Senhor revela que o reino dos Céus está no meio de vós.

Ninguém se encontra excluído da salvação se adere livremente às exigências amorosas de Cristo: nascer de novo fazer-se como menino, na simplicidade de espírito; afastar o coração de tudo aquilo que aparte de Deus. Jesus quer factos; não só palavras; e um esforço, denodado, porque apenas aqueles que lutam serão merecedores da herança eterna.

A perfeição do reino – o juízo definitivo de salvação ou de condenação – não se dará na Terra. Agora o reino é como uma semente, como o crescimento do grão de mostarda. O seu fim será como a rede que apanhava toda a espécie de peixes, donde – depois de trazida para a areia – serão extraídos, para destinos diferentes, os que praticaram a justiça e os que fizeram a iniquidade. Mas, enquanto aqui vivemos, o reino assemelha-se à levedura que uma mulher tomou e misturou com três medidas de farinha, até que toda a massa ficou fermentada.

Quem compreender o reino que Cristo propõe, reconhece que vale a pena jogar tudo para o conseguir: é a pérola que o mercador adquire à custa de vender tudo o que possui, é o tesoiro encontrado no campo. O reino dos céus é uma conquista difícil e ninguém tem a certeza de o alcançar, embora o clamor humilde do homem arrependido consiga que se abram as suas portas de par em par. Um dos ladrões que foram crucificados com Jesus suplica-Lhe: Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino. E Jesus disse-lhe: Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no paraíso. (Cristo que passa, 180)

O reino dos céus alcança-se com violência, e os violentos arrebatam-no. Essa força não se manifesta na violência contra os outros; é fortaleza para combater as próprias debilidades e misérias, valentia para não mascarar as nossas infidelidades, audácia para confessar a fé, mesmo quando o ambiente é contrário. (Cristo que passa, 82)

No meio das ocupações de cada jornada, no momento de vencer a tendência para o egoísmo, ao sentir a alegria da amizade com os outros homens, em todos esses instantes o cristão deve reencontrar Deus. Por Cristo e no Espírito Santo, o cristão tem acesso à intimidade de Deus Pai, e percorre o seu caminho buscando esse reino, que não é deste mundo, mas que neste mundo se inicia e prepara. (Cristo que passa, 116)

Enquanto esperamos o regresso do Senhor que voltará a tomar posse plena do seu Reino, não podemos estar de braços cruzados. A extensão do Reino de Deus não é só tarefa oficial dos membros da Igreja que representam Cristo, por d'Ele terem recebido os poderes sagrados. Vos autem estis corpus Christi, vós também sois Corpo de Cristo, ensina-nos o Apóstolo, com o mandato concreto de negociar até ao fim. (Cristo que passa, 121)

Desde a nossa primeira decisão consciente de viver integralmente a doutrina de Cristo, é certo que avançámos muito pelo caminho da fidelidade à sua Palavra. Mas não é verdade que restam ainda tantas coisas por fazer? Não é verdade que resta, sobretudo, tanta soberba? É precisa, sem dúvida, uma outra mudança, uma lealdade maior, uma humildade mais profunda, de modo, que, diminuindo o nosso egoísmo, cresça em nós Cristo, pois illum oportet crescere, me autem minui, é preciso que Ele cresça e que eu diminua.

Não é possível deixar-se ficar imóvel. É necessário avançar para a meta que S. Paulo apontava: não sou eu quem vive; é Cristo que vive em mim. A ambição é alta e nobilíssima: a identificação com Cristo, a santidade. Mas não há outro caminho, se se deseja ser coerente com a vida divina que, pelo Baptismo, Deus fez nascer nas nossas almas. O avanço é o progresso na santidade; o retrocesso é negar-se ao desenvolvimento normal da vida cristã. Porque o fogo do amor de Deus precisa de ser alimentado, de aumentar todos os dias arreigando-se na alma; e o fogo mantém-se vivo queimando novas coisas. Por isso, se não aumenta, está a caminho de se extinguir.

Recordai as palavras de Santo Agostinho: Se disseres basta, estás perdido. Procura sempre mais, caminha sempre, progride sempre. Não permaneças no mesmo sítio, não retrocedas, não te desvies.


A Quaresma coloca-nos agora perante estas perguntas fundamentais: Avanço na minha fidelidade a Cristo? Em desejos de santidade? Em generosidade apostólica na minha vida diária, no meu trabalho quotidiano entre os meus companheiros de profissão? (Cristo que passa, 58)

«Dou-vos a minha paz»

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Confesso que estou cansado! Mais do que cansado, estou farto!
Um Cardeal, um Bispo, o próprio Papa não podem emitir uma opinião, que não venha logo alguém, escalpelizar, interpretar, retorcer e distorcer a seu belo prazer o que o senhor em questão possa ter dito.

E depois as “notícias”, (conforme o que lhes interessa), lá vão rotulando e adjectivando os intervenientes, como progressistas, conservadores, tradicionalistas, liberais, procurando argumentar da veracidade da opinião de cada um, com coisas tão “palpáveis” e “verdadeiras” como: “muito próximo do Papa Francisco”, “colaborador de Bento XVI”, “teólogo mais importante”, “teólogo mais profundo”, “profundo conhecedor dos Evangelhos”, etc., etc.
E paulatinamente vai-se instalando a zizânia, a divisão, vão-se extremando campos, vão-se “comprando” guerras doutrinais, pastorais, etc., e a oração, (a meu ver), vai ficando cada vez mais para trás.

E então veio ao meu coração este versículo do Evangelho de São João: «Deixo-vos a paz; dou-vos a minha paz. Não é como a dá o mundo, que Eu vo-la dou. Não se perturbe o vosso coração nem se acobarde.» Jo 14, 27
Não andaremos nós à procura da paz do mundo?
Ou seja, não andaremos nós à procura de satisfazer o mundo em detrimento do que Jesus nos ensinou?

Nesse mesmo capítulo também Jesus nos diz: «Se me tendes amor, cumprireis os meus mandamentos» Jo 14, 15 e ainda «o Espírito da Verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece» Jo 14, 17
Mas andaremos nós à procura de cumprir os mandamentos, ou apenas à procura de fazer as nossas vontades e aquilo que achamos melhor para o mundo?

Curioso que este capítulo termina da seguinte forma: «Já não falarei muito convosco, pois está a chegar o dominador deste mundo; ele nada pode contra mim, mas o mundo tem de saber que Eu amo o Pai e actuo como o Pai me mandou. Levantai-vos, vamo-nos daqui!» Jo 14, 30-31

Cada vez mais … me interessam menos as notícias sobre a Igreja, o Sínodo, etc., veiculadas pela comunicação social em geral.

Cada vez mais … me interessa mais amar e rezar, rezar e amar, amar rezando e rezar amando!


Marinha Grande, 22 de Outubro de 2014
Joaquim Mexia Alves
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Obediência



A obediência torna meritórios os nossos actos e sofrimentos, de tal modo que, inúteis que estes últimos possam parecer, podem chegar a ser muito fecundos. Uma das maravilhas realizadas por Nosso Senhor é ter feito com que se tornasse proveitosa a coisa mais inútil, como é a dor. Ele glorificou-a mediante a obediência e o amor.


(R. GARRIGOU-LAGRANGE Las três edades de la vida interior vol. II nr. 683, trad ama)

Tratado do verbo encarnado 14

Questão 2: Do modo da união do Verbo Encarnado

Art. 8 — Se união e assunção se identificam.

O oitavo discute-se assim. — Parece que união e assunção se identificam.

1. — Pois, as relações, como os movimentos, especificam-se pelo termo. Ora, os termos da assunção e da união são idênticos, isto é, são a divina hipóstase. Logo, parece que não diferem a união e a assunção.

2. Demais. — Parece que no mistério da Encarnação se identificam o que une e o que assume, o unido e o assumido. Ora, a união e a assunção resulta da acção e da paixão do que une e do unido, do que assume e do assumido. Logo, parece se identificarem a união e a assunção.

3. Demais. — Damasceno diz: Uma coisa é a união e outra, a encarnação, Pois, a união significa só a conjunção, mas não indica com o que é feita esta. Mas, a encarnação e a humanidade determinam com o que se faz a conjunção. Ora, semelhantemente, a assunção não determina com o que se faz a conjunção. Logo, parecem idênticos a união e a assunção.

Mas, em contrário, dizemos que a natureza divina foi unida e não, assumida.

Como dissemos, a união importa relação da natureza divina e da humana, enquanto convêm numa mesma pessoa. Ora, toda relação com um começo temporal é causada por alguma mudança. Ora, a mudança consiste na acção e na paixão. Donde devemos concluir, que a primeira e principal diferença entre a assunção e a união é que a união implica a relação em si mesma, ao passo que a assunção implica a acção que faz alguém assumir, ou a paixão que torna alguma coisa assumida. - E desta diferença se deduz, em segundo lugar, uma outra. Pois, a assunção significa um como vir-a-ser, ao passo que a união exprime o que já é como feito. Por isso, considera-se o que une como o unido, mas não dizemos ser o que assume, o assumido. Ora, a natureza humana é significada como o termo da assunção relativamente à hipóstase divina, pelo ser chamado homem, por isso verdadeiramente dizemos que o Filho de Deus, que se uniu a si a natureza humana, é homem. Mas, a natureza humana em si mesmo considerada, isto é, em abstrato, é significada como assumida, assim, não dizemos que o Filho de Deus seja a natureza humana. - E daí mesmo resulta uma terceira diferença a saber, a relação, sobretudo a de equiparação, não se relaciona mais com um extremo do que com outro, ao passo que a acção e a paixão se relacionam diversamente com o agente e o paciente e com os termos diversos. Por onde, a assunção determina o termo origem (a quo) e o de chegada (ad quem), pois, a assunção significa, em latim, quase ab alio ad se sumptio (acto de assumir outra coisa para si). Ao passo que a união nada disso determina, por isso dizemos indiferentemente que a natureza humana está unida à divina inversamente. Pois, não dizemos que a natureza divina foi assumida pela humana, mas ao inverso, que a natureza humana foi adjunta à personalidade divina, isto é, de modo que a pessoa divina subsista em a natureza humana.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — A união e a assunção não se relacionam do mesmo modo com o termo, mas diversamente, como dissemos.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O que une e o que assume não são absolutamente o mesmo. Assim, toda pessoa que assume, une, mas não inversamente. Pois, a pessoa do Pai uniu a natureza humana ao Filho, mas não a si, por isso dizemos que une, mas não que assume. E semelhantemente, não se identifica o unido com o assumido, assim, dizemos que a natureza divina é unida, mas não, assumida.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A assunção determina com o que foi feita a conjunção por parte de quem assumiu, pois, assunção em latim (assumptio) significa quase ad se sumptio, mas a encarnação e a humanidade determinam relativamente ao assumido, que é a carne ou a natureza humana. Por onde, a assunção difere, logicamente, da união e da encarnação ou humanidade,

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


Evangelho diário, coment., leit. espiritual (História de uma alma)

Tempo comum XXX Semana

Evangelho: Lc 13 22-30

22 Ia pelas cidades e aldeias ensinando, e caminhando para Jerusalém. 23 Alguém Lhe perguntou: «Senhor, são poucos os que se salvam?». Ele respondeu-lhes: 24 «Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, porque vos digo que muitos procurarão entrar e não conseguirão. 25 Quando o pai de família tiver entrado e fechado a porta, vós, estando fora, começareis a bater à porta, dizendo: Senhor, abre-nos. Ele vos responderá: Não sei donde sois. 26 Então começareis a dizer: Comemos e bebemos em tua presença, tu ensinaste nas nossas praças. 27 Ele vos dirá: Não sei donde sois; “afastai-vos de mim vós todos os que praticais a iniquidade”. 28 Ali haverá choro e ranger de dentes, quando virdes Abraão, Isaac, Jacob, e todos os profetas no reino de Deus, e vós serdes expulsos para fora. 29 Virão muitos do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul, e se sentarão à mesa do reino de Deus. 30 Então haverá últimos que serão os primeiros, e primeiros que serão os últimos».

Comentário

Com palavras minhas, retiro da pregação do P. Jesus Gomez Pablos, na recolecção de hoje, a ‘explicação’ do versículo 30:
Ser o ‘primeiro’ quer dizer servir como se fosse o último.
O serviço aos outros, empenhado, amigo, solidário, coloca-nos em primeiro lugar aos olhos de Deus.

(ama, comentário sobre Lc 13, 22-30, 2013.08.25)


Leitura espiritual

HISTÓRIA DE UMA ALMA


Santa Teresinha do Menino Jesus

Manuscrito "A" - Parte II

…/2

Tinha meus oito anos e meio, quando Leônia deixou o internato, e tomei o lugar dela na Abadia. Ouvi dizer, muitas vezes, que o tempo passado em colégio é o melhor e o mais doce da vida. Para mim, não foi assim. Os cinco anos que ali passei foram os mais tristonhos da minha vida. Não tivesse comigo minha querida Celina, ali não poderia ter ficado um mês sequer, sem cair doente... A pobre florzinha estava habituada a lançar suas débeis raízes em terra de escol, feita sob medida para ela. Parecia-lhe, também, muito desagradável viver entre flores de toda espécie, com raízes frequentemente pouco delicadas, e ver-se na obrigação de procurar em terra comum a seiva necessária para sua subsistência! ...

Vós, porém, me instruístes tão bem, minha querida Mãe, que chegando ao internato era a mais adiantada das crianças de minha idade. Entrei em classe de alunas todas superiores a mim em tamanho. Uma delas, com seus 13 a 14 anos, era pouco inteligente, mas sabia, contudo, impor-se às colegas e às próprias mestras. Vendo-me tão nova, quase sempre a primeira da classe e estimada de todas as religiosas, sentiu por certo inveja, cousa muito perdoável em aluna interna, e fez-me pagar de mil modos os meus pequenos bons êxitos...

Com minha índole tímida e delicada, não sabia como defender-me e limitava-me a chorar sem dizer nada, não me queixando, nem sequer a vós, daquilo que padecia. Não tinha, contudo, bastante virtude para me sobrepor a tais misérias da vida, e meu pobre coraçãozinho sofria deveras. ... Por sorte minha, todas as tardes retornava ao lar paterno, e então meu coração expandia-se. Pulava aos joelhos do meu Rei, a quem dizia as notas que tinha recebido, e o seu beijo fazia-me esquecer todas as minhas mágoas... Com que alvoroço não anunciei o resultado de minha primeira composição (composição de História Sagrada). Faltou-me um só ponto para a nota máxima, pois não soubera o nome do pai de Moisés. Era, portanto, a primeira e tirei uma bela condecoração de prata. Papai deu-me em recompensa uma linda moedinha de quatro soldos. Coloquei-a num estojo que ficou destinado a receber nova moeda, sempre da mesma importância, quase todas as quinta-feiras... (Do mesmo estojo ia tirar, quando em algumas festas queria contribuir do meu bolso na coleta de esmolas, quer para a propagação da fé, quer para outras obras congêneres). Encantada com o bom êxito de sua pupila, Paulina deu-lhe de presente um lindo arco de brincar, com o fito de encorajá-la a continuar bem estudiosa. A pobrezinha tinha real necessidade das alegrias de família, sem as quais a vida de colégio lhe seria árdua demais.

Quinta-feira de tarde, não havia aulas. Não era, porém, como as folgas dadas por Paulina. Não ficava no mirante com Papai. Tinha que brincar, não com minha Celina, o que me agradava, quando sozinha com ela, mas em companhia de minhas priminhas e das meninas Maudelonde. Era para mim verdadeira mortificação, pois não sabia brincar, como as demais crianças. Não era companheira agradável. No entanto, sem o conseguir, fazia todo o meu possível para imitar as outras. Sentia muito tédio, principalmente quando tinha que passar toda a tarde a dançar quadrilhas. A única cousa do meu gosto era ir ao Jardim da Estrela. Então, eu era a primeira em tudo, colhendo muitas flores, e, por saber encontrar as mais bonitas, provocava a inveja de minhas coleguinhas...

O que também me agradava, era ficar por acaso a sós com Mariazinha. Por já não contar com Celina Maudelonde que a levava a jogos comuns, deixava-me livre escolha, e eu escolhia então um jogo inteiramente novo. Maria e Teresa passam a ser duas solitárias, que não dispunham senão de uma mísera choupana, de um pequeno trigal, e de alguns legumes para cultivar. A vida delas corria numa contemplação contínua; quer dizer, uma das solitárias substituía a outra na oração quando era preciso cuidar da vida ativa. Tudo se fazia num acordo, num silêncio, em moldes tão religiosos, que raiava à perfeição. Quando titia vinha buscar-nos a passeio, nosso jogo continuava até na rua. As duas solitárias rezavam juntas o terço, valendo-se dos dedos, a fim de não exibir sua devoção ao público indiscreto. Um dia, entretanto, a mais jovem solitária distraiu-se. Tendo recebido um bolo para o lanche, antes de comer fez um grande sinal-da-cruz, o que provocou o riso de todos os profanos do século...

Maria e eu tínhamos sempre os mesmos palpites. Os próprios gostos afinavam-se tão harmoniosamente que, certa vez, nossa união de vontades passou da conta. Ao voltarmos uma tarde da Abadia, disse à Maria: "Conduze-me, que vou fechar os olhos". - "Eu também quero fechá-los", respondeu-me. Dito e feito. Sem discutir, cada qual pôs em obra sua vontade... Estávamos na calçada, não havíamos de temer os carros. Depois de passear assim por alguns minutos, tendo apreciado as delícias de andar sem ver, as duas tontinhas caíram juntas sobre umas caixas colocadas à porta de uma loja. Melhor, derrubaram-nas. Muito encolerizado, saiu o negociante para pegar sua mercadoria. As duas ceguinhas voluntárias se levantaram por si mesmas em boas condições, e corriam a passos largos, com olhos esbugalhados, enquanto ouviam as justas reprimendas de Joana, que ficara tão zangada quanto o negociante!... Por isso, para nos punir, resolveu separar-nos uma da outra. E daquele dia em diante Maria e Celina iam juntas, enquanto eu caminhava com Joana. Isto pôs fim à nossa grande união de vontade. Não foi um mal para as mais velhas, que nunca entravam em acordo e discutiam durante todo o trajeto do caminho. Desta forma a paz foi completa.

Nada disse ainda a respeito do meu relacionamento íntimo com Celina. Oh! se fosse preciso narrar tudo, não acabaria nunca...

Em Lisieux, inverteram-se os papéis. Celina tornara-se uma criança terrivelmente arteira e buliçosa, enquanto Teresa já não passava de uma menininha muito tratável, mas choramingas a mais não poder... Isto não impedia que Celina e Teresa crescessem cada vez mais em sua mútua afeição. De vez em quando, havia algumas pequenas discussões, sem maiores consequências, e no fundo elas sempre se entendiam. Posso afiançar que minha querida maninha jamais me causou desgosto, mas foi para comigo como que um raio de sol, sempre a alegrar-me e a consolar-me... Quem descreveria a intrepidez com que tomava minha defesa na Abadia, quando me acusavam?... Tão grande era seu cuidado pela minha saúde, que por vezes me importunava. O que não me enfadava era observá-la, quando brincava. Punha em certa ordem todo o magote de nossas bonequinhas, e dava-lhes aula como uma mestra competente. Só que dava um jeito de serem suas filhas sempre bem comportadas, enquanto que as minhas eram, muitas vezes, expulsas da classe, por mau comportamento... Falava-me de todas as cousas novas que vinha aprendendo na classe, o que muito me entretinha, considerando-a um poço de ciência.

Haviam-me apelidado "filhinha de Celina". Por isso, quando ela estava descontente comigo, seu maior sinal de aborrecimento era declarar-me: "Já não és minha filhinha. Acabou-se. Disso nunca esquecerei. . . " Então só me restava chorar como Madalena, suplicando-lhe ainda me considerasse sua filhinha. Logo me abraçava e prometia-me de já não se lembrar de nada... Para me consolar, tomava uma de suas bonecas e dizia-lhe: "Minha querida, dá um abraço em tua tia". Certa ocasião, a boneca foi tão ardorosa em abraçar-me com carinho, que me enfiou os dois bracinhos pelo nariz... Celina, que não o fizera de caso pensado, olhava espantada... para mim com a boneca suspensa ao nariz. A tia não levou muito tempo em se desfazer dos abraços por demais carinhosos de sua sobrinha, e desatou a rir, gostosamente, de tão singular aventura.

O mais divertido era ver-nos comprar juntas os nossos presentes de boas-festas no bazar. Cuidávamos de ficar escondidas uma da outra. Dispondo de 10 soldos para gastar, precisávamos pelo menos de 5 ou 6 objetos diferentes, e tratava-se de ver quem compraria as cousas mais bonitas. Encantadas com nossas aquisições, aguardávamos com impaciência o primeiro dia do ano, a fim de oferecermos, uma à outra, nossos grandiosos presentes. Quem acordasse antes da outra, apressava-se em lhe desejar feliz ano novo, e logo nos dávamos uma à outra os presentes de boas-festas. Cada qual de nós ficava extasiada com as preciosidades, que se vendiam por 10 soldos!...

Estes mimos nos causavam quase tanto prazer quanto os lindos presentes de boas-festas que vinham de Titio. Isto, aliás, era apenas o começo das alegrias.. Naquele dia, vestíamo-nos num instante, e cada qual se punha à espreita para saltar ao pescoço de Papai. Logo que ele saísse do quarto, eram gritos de alegria por toda a casa, e nosso bom Paizinho mostrava-se feliz por nos ver tão contentes ... Os presentes de boas festas que Maria e Paulina davam às suas filhinhas, não eram de grande valor, mas também lhes proporcionavam grande alegria... Oh! naquela idade não éramos enfaradas. Nossa alma expandia-se em toda a sua frescura, como uma flor que é feliz por receber o orvalho da manhã... a mesma aragem balouçava nossas corolas, e o que para uma fosse motivo de alegria ou de mágoa, sê-lo-ia ao mesmo tempo também para a outra. Com efeito, nossas alegrias eram em comum. Bem o percebi no belo dia da primeira Comunhão de minha querida Celina. Só tendo sete anos, ainda não frequentava a Abadia, mas conservei no coração a gratíssima lembrança da preparação que vós, minha querida Mãe, ministrastes à Celina. Todas as tardes, vós a tomáveis aos joelhos, e com ela conversáveis sobre o grande ato que ia praticar. Eu cá escutava, muito desejosa de preparar-me também, mas frequentemente me dizíeis que fosse embora, por ser ainda muito pequena. Sentia então um desgosto muito grande, pensando comigo que quatro anos não eram demais como preparação para receber o Bom Deus...

Uma noite, escutei-vos falar que, feita a primeira Comunhão, se devia começar vida nova. Resolvi, imediatamente, a não esperar por esse dia, mas começá-la ao mesmo tempo que Celina... Nunca sentira tanto que a amava, como vim a senti-lo durante seu retiro de três dias. Pela primeira vez na vida, estava longe dela e não dormia em sua cama... No primeiro dia, esquecida de que não ia voltar, guardei uma mão-cheia de cerejas para as comer com ela. Quando percebi que não chegava, fiquei muito pesarosa. Papai consolou-me com a declaração de que no dia seguinte me levaria até a Abadia para visitar minha Celina, e que eu lhe daria outra mão-cheia de cerejas! ... O dia da Primeira Comunhão de Celina deixou-me uma impressão semelhante à que tive na minha própria. Ao despertar de manhã, sozinha, na cama grande, senti-me inundada de alegria. "É hoje! ... Chegou o grande dia..." Não me cansava de repetir estas palavras. Parecia-me que era eu quem ia fazer minha Primeira Comunhão. Creio ter recebido grandes graças nesse dia, e considero-o como um dos mais belos de minha vida...

Voltei um pouco a fim de recordar essa deliciosa e suave passagem. Devo, agora, falar da dolorosa provação que veio partir o coração de Teresinha, quando Jesus lhe arrebatou a querida mamãe, a sua Paulina, tão afectuosamente amada! ...

Um dia dissera à Paulina que queria ser solitária, partir com ela para um deserto longínquo. Deu-me por resposta que meu desejo era também o seu, e que esperaria até que eu fosse bastante grande para a partida. Isto, sem dúvida, não fora dito seriamente, mas Teresinha tinha-o levado a sério. Por conseguinte, qual não foi sua dor ao ouvir, um dia, sua querida Paulina falar com Maria de sua próxima entrada no Carmelo... Não sabia o que era Carmelo, mas entendia que Paulina me deixaria para entrar em convento. Entendia que não esperaria por mim, e que eu perderia minha segunda Mãe! ... Oh! Como descrever a angústia do meu coração?... Compreendi num instante o que era a vida. Até ali não a tinha visto tão tristonha, mas então se me deparou em toda a sua realidade. Vi que não era senão sofrimento e separação contínua. Bem amargas as lágrimas que derramei, pois ainda não compreendia o gozo do sacrifício. Era fraca, tão fraca, que tomo por grande graça ter podido suportar uma provação que parecia colocar-se muito acima de minhas forças... Se ficasse sabendo, aos poucos, da partida de minha querida Paulina, talvez meu sofrimento não fora tanto. Mas, tê-lo sabido de surpresa foi como se uma espada se me cravasse no coração.

Sempre me lembrarei, minha querida Mãe, com que ternura me consolastes. Depois, explicastes-me a vida do Carmelo, que me pareceu muito bonita! Rememorando tudo o que me dissestes, senti dentro de mim ser o Carmelo o deserto onde o Bom Deus queria que fosse também esconder-me... Senti-o com tanta veemência que não tive a mínima dúvida no coração. Não era um devaneio de criança que se deixa levar, mas a certeza de um chamado divino. Queria eu ir para o Carmelo, não por causa de Paulina, mas por Jesus tão-somente... Pensei muitas coisas que se não podem exprimir por palavras, mas que me deixaram grande paz na alma...

No dia seguinte, confiei meu segredo à Paulina. Tomando meus desejos como vontade do Céu, disse-me que eu iria logo com ela visitar a Madre Priora do Carmelo, e precisava dizer-lhe o que o Bom Deus me fazia sentir ... Escolheu-se um domingo para a solene visita. Grande foi meu acanhamento, ao saber que Maria G. ficaria junto a mim, por ser eu muito pequena para visitar as Carmelitas. Entretanto, precisava descobrir um meio de estar sozinha. Eis a ideia que me ocorreu. Disse à Maria que, tendo o privilégio de visitar a Madre Priora, devíamos ser muito atenciosas e delicadas. Por isso, tínhamos de confiar-lhe nossos segredos. Portanto, cada qual, por sua vez, sairia um instante e deixaria a outra sozinha. Maria acreditou no que eu dizia, e a despeito de sua relutância em confiar segredos que não possuía, permanecemos, uma após outra, sozinha junto à nossa Madre. Tendo ouvido minhas grandes confidências, essa boa Madre acreditou em minha vocação. Declarou-me, todavia, que não eram recebidas postulantes de nove anos, e seria preciso aguardar meus dezasseis anos... Resignei-me, não obstante meu vivo desejo de entrar o mais cedo possível, e de fazer minha Primeira Comunhão no dia que Paulina tomasse o hábito... No mesmo dia, pela segunda vez, recebi louvores. Tinha vindo ver-me a Irmã Teresa de Santo Agostinho e não cansava de repetir que eu era engraçadinha... Minha intenção não era ir ao Carmelo para receber elogios, por isso, depois de sair, não parava de repetir ao Bom Deus que era única e exclusivamente por Ele que queria ser carmelita.

Procurei aproveitar bastante da minha Paulina querida durante as poucas semanas que ainda ficou no mundo. Todos os dias, Celina e eu comprávamos para ela, bolo e bombons, pensando que dentro em pouco já não os comeria. Estávamos sempre ao seu lado, e não lhe dávamos um minuto de sossego. Chegou, afinal, o dia 2 de Outubro, dia de lágrimas e de bênçãos, quando Jesus colheu a primeira de suas flores, que devia ser a mãe daquelas que poucos anos depois viriam unir-se de novo a ela.

Vejo ainda o lugar, onde recebi o derradeiro beijo de Paulina. Em seguida, Titia levou-nos todas para a missa, enquanto Papai subia a montanha do Carmelo para oferecer seu primeiro sacrifício... Toda a família se debulhava em lágrimas, de sorte que as pessoas, vendo-nos entrar na igreja, olhavam-nos com espanto. Mas isto importava-me pouco e não me impedia de chorar. Creio que, se tudo desmoronasse em redor de mim, não teria tomado nenhum conhecimento. Contemplava o belo céu azul, e ficava surpresa de que o Sol luzisse com tanto esplendor, enquanto minha alma submergia em tristeza!...

(cont.)