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26/10/2014

Quem ama a Deus dá-se a si mesmo

O tempo é o nosso tesouro, o "dinheiro" para comprarmos a eternidade. (Sulco 882)

Que pena viver tendo como ocupação matar o tempo, que é um tesouro de Deus! Não há desculpas para justificar essa actuação. Que ninguém diga: só tenho um talento, não posso ganhar nada. Também com um só talento podes agir de modo meritório. Que tristeza não tirar partido, autêntico rendimento de todas as faculdades, poucas ou muitas, que Deus concede ao homem para que se dedique a servir as almas e a sociedade!


Quando o cristão mata o seu tempo na Terra, coloca-se em perigo de matar o seu Céu, se, pelo seu egoísmo, se retrai, se esconde, se despreocupa. Quem ama a Deus, não entrega só o que tem, o que é, ao serviço de Deus: dá-se a si mesmo. Não vê – em perspectiva rasteira – o seu eu na saúde, no nome, na carreira. (Amigos de Deus, 46)

Salvador



A chamada à salvação traz-no-la Cristo. Ele tem para o homem palavras de vida eterna (Jo 6,68); e dirige-se ao homem concreto que vive na terra. Dirige-se particularmente ao homem que sofre, no corpo ou na alma.


(São joão paulo ii, Homília em Lisboa 1982.05.14)

Tratado do verbo encarnado 11

Questão 2: Do modo da união do Verbo Encarnado

Art. 5 — Se em Cristo houve união de alma e de corpo.

O quinto discute-se assim — Parece que em Cristo não houve união de alma e de corpo.

1. — Pois, a união da nossa alma como o nosso corpo causa a pessoa ou a hipóstase do homem. Se pois, em Cristo, a alma estava unida ao corpo, resulta que constitui-se alguma hipóstase, da união de ambos. Ora, não a hipóstase do Verbo de Deus, que é eterna. Logo, haverá em Cristo alguma pessoa ou hipóstase, além da hipóstase do Verbo. O que vai contra o dito antes.

2. Demais. — Da união da alma e do corpo constitui-se a natureza da espécie humana. Ora, Damasceno diz, que em Nosso Senhor Jesus Cristo não podemos admitir unia espécie comum, Logo, nele não houve composição de alma e de corpo.

3. Demais. — A alma não se une ao corpo senão para vivificá-lo. Ora, o corpo de Cristo por dia ser vivificado pelo Verbo mesmo de Deus fonte e princípio da vida. Logo, em Cristo não houve união da alma e do corpo.

Mas, em contrário, o corpo não se chama animado senão pela sua união com a alma. Ora, dizemos que o corpo de Cristo é animado, segundo o canta a Igreja: Assumindo um corpo animado, dignou-se nascer de uma Virgem. Logo, em Cristo houve união da alma e do corpo.

Cristo é chamado homem univocamente com os outros homens, como sendo da mesma espécie que eles, segundo aquilo do Apóstolo: Fazendo-se semelhante aos homens. Ora, é da essência da espécie humana que a alma seja unida ao corpo, pois a forma não especifica senão por ser o acto da matéria, sendo este o termo da geração, pelo qual a natureza tende a realizar a espécie. Donde, é necessário admitir-se que em Cristo a alma estava unida ao corpo, sendo o contrário herético porque contraria a verdade da humanidade de Cristo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — Foram levados por essa razão os que negaram a união da alma como o corpo, em Cristo, para não serem, assim, obrigados a admitir uma nova pessoa ou hipóstase em Cristo, pois, viam que no homem puro e simples a união da alma e do corpo constitui a pessoa. Mas isto dá-se no homem, que pura e simplesmente o é, porque nele a alma e o corpo estão unidos de modo a existirem por si. Mas em Cristo está um unido à outra corno adjuntos a um mais principal subsistente na natureza deles composta. E por isso, a união da alma e do corpo, em Cristo não constitui nova hipóstase ou pessoa, mas, esse conjunto advém à pessoa ou hipóstase preexistente. - Mas nem por isso daí se segue seja de menor eficácia a união da alma e do corpo em Cristo, do que em nós. Pois, em si mesma a união com o que é mais nobre não destrói a virtude ou a dignidade, mas as aumenta. Assim, a alma sensitiva, nos animais, constitui uma espécie, porque é considerada como forma última, não porém nos homens, embora em nós ela seja de maior poder e mais nobre, por causa da adjunção da ulterior e mais nobre perfeição da alma racional, como dissemos acima.

RESPOSTA À SEGUNDA. — As palavras de Damasceno podem entender-se em sentido duplo. — Num, como referentes à natureza humana. A qual não tem a essência de espécie comum, segundo existe num só indivíduo, mas enquanto abstracta de todos os indivíduos, quando objecto de uma pura contemplação do espírito, ou enquanto existente em todos os indivíduos. Ora, o Filho de Deus não assumiu a natureza humana, enquanto objecto da pura contemplação do intelecto, porque, assim, não teria assumido a natureza humana em a sua realidade. A menos que se não dissesse que a natureza humana é uma das ideias separadas, como os Platónicos concebiam o homem sem a matéria. Mas então o Filho de Deus não teria assumido a carne, contra as palavras do Evangelho, um espírito não tem carne nem ossos, como vós vedes que eu tenho. Semelhantemente, também não se pode dizer que o Filho de Deus assumiu a natureza humana como ela existe em todos os indivíduos de uma mesma espécie, porque então teria assumido todos os homens. Resta, pois, como Damasceno diz em seguida, no mesmo livro, que assumiu a natureza humana em a sua indivisibilidade (in átomo), isto é, na sua individualidade, mas não em outro indivíduo — que seja o suposto ou a hipóstase da referida natureza — diferente da pessoa do Filho de Deus. — Noutro sentido pode entender-se o dito de Damasceno, não como referente à natureza humana, de modo que da união da alma e do corpo não resulte uma natureza comum, que é a humana, mas deve referir-se à união das duas naturezas — a divina e a humana — das quais não resulta nenhuma terceira composição, que seria uma determinada natureza comum, porque então esse terceiro composto seria naturalmente predicado de muitos indivíduos. E tal é o que Damasceno pretende dizer, sendo por isso que acrescenta, Pois, nunca foi gerado, nem nunca o será, outro Cristo, ao mesmo tempo sujeito da divindade e da humanidade, na divindade e na humanidade, Deus perfeito e simultaneamente homem perfeito.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O princípio da vida corporal é duplo. — Um, efectivo e, deste modo, o Verbo de Deus é o princípio de toda vida. De outro modo, um princípio de vida o é normalmente. Pois, sendo a vida a essência dos viventes, como diz o Filósofo, assim como cada ser é formalmente o que é pela sua forma, assim o corpo vive pela alma. E, deste modo, não é possível o corpo viver pelo Verbo, que não pode ser forma do corpo.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


Evangelho diário, coment., leit. espiritual (História de uma alma)

Tempo comum XXX Semana

Evangelho: Mt 22 34-40

34 Os fariseus, tendo sabido que Jesus reduzira ao silêncio os saduceus, reuniram-se. 35 E um deles, doutor da Lei, querendo pô-l'O à prova, perguntou-Lhe: 36 «Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?». 37 Jesus disse-lhe: «”Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento”. 38 Este é o maior e o primeiro mandamento. 39 O segundo é semelhante a este: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. 40 Destes dois mandamentos depende toda a Lei e os Profetas».
Comentário

O amor a Deus tem a ver com o Dom da Piedade.
O Espírito Santo inspira na nossa alma, no nosso coração essa necessidade, esse desejo de retribuir ao Senhor um pouco do amor que nos tem.

Que é imenso!
Pois é, deu a própria vida por nós!

Que não conseguiremos retribuir totalmente!
Pois não, mas, se nos empenharmos a sério Ele, na Sua Bondade Infinita, ficará tão agradecido que nos pagará com juros altíssimos e desproporcionados.

(ama, comentário sobre Mt 22, 34-40, 2013.08.23)


Leitura espiritual


 HISTÓRIA DE UMA ALMA


Santa Teresinha do Menino Jesus


Manuscrito "A" - Parte I

…/3

Eis aí mais uma passagem que deparo nas cartas de mamãe. Minha pobre Mãezinha já pressentia o fim do seu desterro: "As duas meninas não me preocupam, estão tão bem todas as duas, são temperamentos primorosos, serão por certo boas criaturas. Maria e tu estareis em perfeitas condições de educá-las. Celina não comete jamais a mínima falta voluntária. A pequerrucha será boa também. Por todo o ouro do mundo não diria uma mentira; é de uma finura de espírito como jamais a observei em nenhuma de vós".

"Estava ela outro dia na mercearia com Celina e Luísa. Falava de suas práticas e discutia fortemente com Celina. A senhora disse à Luísa: "Mas então o que quer ela dizer? Quando brinca no jardim não se ouve falar senão de práticas. A Sra. Gaucherin mete a cabeça para fora da janela num esforço de entender o que significa essa altercação sobre práticas..." A coitada da pequena faz a nossa felicidade, vai ser boa, já se vê pelo indício. Só fala do Bom Deus, por nada no mundo deixaria de fazer suas orações. Gostaria que a visses recitar pequenas fábulas, nunca presenciei algo de tão gentil. Encontra por si mesma a interpretação e a tonalidade que é preciso dar, mas isto é sobretudo quando diz: - "Criancinha de cabeça loura, onde imaginas que está o Bom Deus?" Quando ela chega às palavras: - "Ele está lá no alto do Céu azul", volve o olhar para 'cima com uma expressão angélica. Tão belo é que a gente não se cansa de fazê-la recitar. Há em seu olhar algo de tão celestial que nos deixa encantados!..."

Ó minha Mãe! Quão feliz era eu nessa idade! Já começava a desfrutar a vida. A virtude tinha encantos para mim, e eu estava, parece-me, nas mesmas disposições em que me acho agora, já dispondo de grande domínio sobre meus atos. - Ah! como se foram rapidamente os ensolarados dias de minha meninice, mas que doce impressão me deixaram na alma! Com prazer recordo os dias em que Papai nos levava consigo ao Pavilhão. As mínimas particularidades gravaram-se em meu coração... Lembra-me, antes de tudo, os passeios de Domingo, nos quais Mamãe sempre nos acompanhava. Sinto ainda as profundas e poéticas impressões 'que me nasciam na alma à vista dos trigais esmaltados de centáureas e flores campestres. Já era aficionada pelos longes. O espaço e os agigantados abetos, cuja ramagem chegava até ao chão, deixavam-me na alma impressão semelhante à que ainda hoje sinto quando contemplo a natureza... Muitas vezes nestes longos passeios encontrávamos com pobres e era sempre a Teresinha incumbida de dar-lhes a esmola, o que a deixava toda venturosa. Mas, também outras vezes, achando Papai que a caminhada ficava longa demais para sua rainhazinha, levava-a mais cedo de volta para casa (com grande desgosto dela). Para a consolar Celma enchia então de margaridas seu lindo cestinho e dava-lho, quando chegava em casa. A boa da vovó-", ainda mal, achava que a netinha tinha flores demais, tomava-lhe grande parte para sua imagem da Santa Virgem... Isso não agradava à Teresinha, mas ela muito se precavia para que nada dissesse. Tinha adquirido o bom hábito de nunca se queixar, mesmo quando lhe tiravam o que era seu, ou então quando era acusada injustamente. Preferia calar e não escusar-se. Não era mérito seu, mas virtude natural... Que pena que esta boa disposição se tenha desvanecido!

Oh! realmente, tudo me sorria na terra. Deparava com flores a cada passo que desse, e minha boa índole contribuía também para me tornar a vida agradável. Ia, porém, começar um novo período para minha alma. Devia passar pelo cadinho da provação e sofrer desde a minha infância, a fim de que pudesse ser oferecida mais cedo a Jesus. Assim como as flores da primavera começam a germinar debaixo da neve e desabrocham nos primeiros raios do Sol, assim também a florzinha, cujas reminiscências estou a escrever, teve que passar pelo inverno da provação...

Todos os pormenores da doença de nossa querida Mãe estão ainda vivos em meu coração. Lembro-me, principalmente, das últimas semanas que passou na terra. Celina e eu vivíamos como pequeninas exiladas. Todas as manhãs, a Sra. Leriche vinha buscar-nos, e passávamos o dia em casa dela. Um dia não tivemos tempo de fazer nossa oração antes de sair, e no caminho disse-me Celina bem baixinho: "Convém dizer-lhe que não fizemos nossa oração?..." - "Oh! sim", respondi-lhe. Então, com bastante timidez, disse-o à Sra. Leriche. Respondeu-nos ela: - "Está certo, minhas filhinhas, ireis fazê-la". E depois, largando-nos ambas num quarto grande, foi-se embora... Então Celina olhou para mim, e dissemos: "Ah! não é como a Mamãe... Sempre nos fazia recitar nossa oração!" ... Quando brincávamos com as crianças, o pensamento de nossa querida Mãe sempre nos acompanhava. Certa vez, tendo ganhado um lindo damasco, Celina abaixou-se e cochichou-me: "Não vamos comê-lo, dá-lo-ei à Mamãe". Que lástima! a coitada de nossa Mãezinha já estava doente demais para comer as frutas da terra. Já não se saciaria senão no Céu com a glória de Deus e não beberia senão com Jesus o misterioso vinho, do qual Ele falara em sua última Ceia, quando disse que o tomaria connosco no reino de seu Pai'.

A comovente cerimónia da Extrema-Unção também me ficou gravada na alma. Vejo ainda o lugar onde me achava ao lado de Celina. Todas as cinco estávamos pela ordem de idade, e nosso pobre Paizinho estava ali também e soluçava...

No próprio dia ou no dia imediato à partida da Mamãe, tomou-me nos braços, dizendo-me: "Vem beijar pela última vez tua pobre Mãezinha". E sem dizer nada cheguei os lábios à fronte de minha Mãe querida... Não me lembra ter chorado muito. Não dizia a ninguém os profundos sentimentos que experimentava... Olhava e escutava em silêncio... Ninguém tinha tempo de ocupar-se comigo. Por causa disso via muitas cousas que teriam a intenção de ocultar-me. Primeiramente, dei comigo diante da tampa do esquife... Fiquei longo tempo parada a contemplá-lo. Nunca tinha visto nenhum, e, no entanto, compreendia... Era tão pequena que, apesar de estar pouco alto o corpo da Mamãe, precisava erguer a cabeça para o avistar de cima, e parecia-me muito grande... muito triste... Quinze anos mais tarde, estive diante de outro esquife, o da Madre Genoveva 4. Tinha a mesma medida que o da Mamãe, e julguei estar ainda nos dias de minha infância!... Todas ás minhas reminiscências retornaram a tropel. Era por certo a mesma Teresinha que estava a olhar, mas havia crescido e o esquife parecia-lhe pequeno. Já não precisava erguer a cabeça para o enxergar. Já não a erguia senão para contemplar o Céu que lhe parecia bem alegre, pois todas as suas provações tinham tomado um fim e o inverno de sua alma passara para sempre...

No dia que a Igreja lançou a bênção sobre os despojos mortais de nossa Mãezinha do Céu, nosso Deus quis dar-me outra na terra, e quis que a escolhesse livremente. Está vamos juntas, todas as cinco, a olhar umas às outras, Luísa também estava ali. Quando viu Celina e a mim disse: "Pobres pequenas, já não tendes Mãe!..." Então Celina lançou-se aos braços de Maria e disse: "Pois bem! Mamãe serás tu". Eu, habituada a fazer igual a ela, voltei-me, no entanto, para vós, minha Mãe, e como se o porvir já tivesse rompido seu véu, atirei-me aos vossos braços, exclamando "Pois, sim, para mim Paulina será Mamãe!"

Como o disse mais acima, foi a partir dessa época de minha vida que tive de iniciar o segundo período de minha existência, o mais doloroso dos três, mormente desde a entrada no Carmelo daquela que tinha escolhido como minha segunda "Mamãe". Este período vai da idade de quatro anos e meio até a data de catorze anos, época em que recuperei minha índole de criança, bem justamente quando entrava no lado sério da vida.

Devo dizer-vos, minha Mãe, que depois da morte da Mamãe minha boa índole mudou por completo. Tão viva; tão expansiva, que era, fiquei tímida e frouxa, sensível a mais não poder. Bastava um olhar para me desfazer em lágrimas. Era preciso que ninguém me desse maior atenção para me sentir contente. Não podia tolerar a companhia de pessoas estranhas, e só recuperava minha alegre disposição na intimidade da família... Continuava, entretanto, a ser cercada do mais sensível carinho. Ao amor que já possuía, o tão meigo coração do Papai teve por acréscimo um amor verdadeiramente maternal! Minha Mãe, vós e Maria não éreis para mim as mais carinhosas e mais abnegadas das mães? Ah! se o Bom Deus não tivesse prodigalizado à sua florzinha seus raios benfazejos, ela nunca teria podido aclimar-se na terra. Era ainda débil demais para suportar chuvas e tempestades. Precisava de calor, de um orvalho suave, de um bafejo primaveril. Nunca careceu de todos estes benefícios. Jesus lhos fez encontrar até debaixo da neve da provação!

Não senti nenhum desgosto por deixar Alençon. Crianças gostam de mudança e com prazer vim para Lisieux. Tenho lembrança da viagem, da chegada pela tarde à casa de minha tia. Vejo ainda Joana e Maria que nos aguardavam à porta... Estava muito satisfeita de ter umas priminhas tão amáveis. Gostava tanto delas como de minha tia, e sobretudo de meu tio; somente que ele me fazia medo e não me sentia tão à vontade em sua casa como nos Buissonnets, onde minha vida era realmente feliz... Logo de manhã vínheis para junto de mim a perguntar-me se já entregara meu coração ao Bom Deus. Em seguida me púnheis a roupa, enquanto me faláveis Dele e depois ao vosso lado fazia minha oração. Depois, vinha a lição de leitura. A primeira palavra que consegui soletrar sozinha foi esta: "Céus". Minha querida madrinha encarregava-se das aulas de caligrafia, e vós, minha Mãe, de todas as outras. Não tinha muita facilidade de aprender, mas dispunha de bastante memória. O catecismo e antes de tudo a história sagrada eram as minhas preferências, estudava-os com alegria. Mas a gramática fazia-me às vezes derramar lágrimas... Estais lembrada do masculino e do feminino?

Logo que terminava a aula, subia ao mirante e levava a papai minha caderneta e minha classificação. Como ficava radiante, quando lhe podia dizer: "Tenho 5 com louvor, foi Paulina a primeira que o declarou!..." Pois, quando vos perguntava se tinha 5 com louvor e vós me dizíeis que sim, aos meus olhos era uma nota a menos. Vós também me dáveis bons pontos, e quando tinha alcançado certo número deles, ganhava um prêmio e uma folga. Lembro-me de 14 que os dias de folga se me afiguravam mais longos do que os demais, o que vos dava prazer, por demonstrar que não apreciava ficar sem nenhuma ocupação.

Todas as tardes ia a pequeno passeio com papai. Fazíamos juntos a nossa visita ao Santíssimo Sacramento, e cada dia visitávamos uma nova igreja. Assim entrei pela primeira vez na capela do Carmelo. Papai mostrou-me as grades do coro, dizendo-me que atrás delas havia religiosas. Muito longe estava de pensar que, nove anos mais adiante, me encontraria entre elas! ...

Depois do passeio (durante o qual papai me comprava sempre um presentinho de um ou dois soldos), recolhia-me em casa. Fazia então minhas lições. A seguir, ficava todo o resto do tempo a saltitar no jardim em volta do papai, pois não sabia brincar com boneca. Para mim era grande alegria preparar chás com grãozinhos e com cascas de árvores que encontrava pelo chão. Levava-os depois ao papai numa linda xícara pequena. O coitado do paizinho largava sua ocupação e depois sorridente fazia de conta que tomava. Antes de me devolver a xícara perguntava-me (como que em segredo) se era para jogar fora o conteúdo. As vezes, dizia que sim, mas o mais frequente era levar de volta meu precioso chá, com a intenção de tornar a servi-lo várias vezes... Gostava de cultivar minhas florzinhas no jardim que papai me tinha dado. Entretinha-me em armar altarzinhos no vão que havia ao centro do muro. Quando terminava a obra, corria a papai e, levando-o comigo, dizia-lhe que fechasse bem os olhos e só os abrisse no momento que lho mandasse. Fazia tudo o que eu queria, e deixava-se conduzir até a frente do meu jardinzinho. Então eu gritava: "Papai, abre os olhos!" Ele abria-os e extasiava-se para me dar prazer, admirando o que eu julgava ser uma obra-prima!... Seria um nunca acabar se quisera contar mil pequenos episódios desse género, que me acodem profusamente à memória... Ah! como poderia enumerar todos os carinhos que "Papai" prodigalizava à sua rainhazinha? Há cousas que o coração sente, mas que a palavra e a própria idéia não conseguem formular...

Bonitos para mim eram os dias em que meu "rei querido" me levava à pescaria consigo. Tinha tanto amor ao campo, às flores e às aves! Tentava às vezes pescar com minha varinha, mas de preferência ia sentar sozinha na relva florida. Meus pensamentos aprofundavam-se bastante e, sem saber o que era meditar, minha alma mergulhava em autêntica oração... Ouvia ruídos ao longe... O murmúrio do vento e até a música indecisa de soldados, cuja sonoridade me chegavam aos ouvidos, melancolizavam suavemente meu coração... A terra parecia-me lugar de degredo, e eu sonhava com o Céu... A tarde passava rápida, e dentro em pouco era hora de regressar aos Buissonnets, Antes de partir, porém, tomava o lanche trazido no meu cestinho. Mudara de aspecto, a linda merenda com geleia de fruta que me tínheis preparado. Em lugar da cor ativa, já não via senão uma ligeira mancha cor de rosa, toda ressequida e amarfanhada... Então a terra se me apresentava mais tristonha ainda, e compenetrava-me de que só no Céu haverá alegria sem anuviamento.. .

A propósito de nuvens, lembro-me de que um dia o formoso Céu azul campestre se anuviou e logo começou a zunir a tempestade. Os coriscos sulcavam as nuvens carregadas, e vi cair um raio a pouca distância. Longe de ficar com medo, extasiava-me, tendo a impressão de que o Bom Deus estava tão perto de mim!...

Papai não estava, de modo algum, tão contente como sua rainhazinha. Não que a tempestade lhe incutisse medo, mas porque o capim e os malmequeres (mais altos do que eu) brilhavam como pedrarias preciosas, tendo nós de atravessar vários vergéis antes de chegar a um caminho. E meu querido paizinho, temeroso que os aljôfares molhassem sua filhinha, tomou-a às costas, apesar da carga dos apetrechos de pesca.

Nos passeios que fazia com ele, o papai gostava de me mandar entregar a esmola aos pobres que encontrássemos. Certo dia vimos um que se arrastava com dificuldade em muletas. Acerquei-me para lhe dar um óbolo. Mas, não se julgando bastante pobre a ponto de aceitar esmola, ele olhou-me com triste sorriso e não quis pegar o que lhe oferecia. Não consigo descrever o que se passou em meu coração. Quisera consolá-lo e reconfortá-lo. Em lugar disso, porém, julguei que o tinha magoado. O pobre doente adivinhou por certo meu pensamento, pois que o vi virar-se para trás e envolver-me num sorriso. Papai acabava de comprar um doce para mim. Bem me veio a vontade de lho dar, mas não tive coragem. Ainda assim queria dar-lhe alguma cousa que não me pudesse refugar, pois sentia por ele uma simpatia muito grande. Ocorreu-me então ter ouvido falar que, no dia da primeira comunhão, a gente obteria tudo o que pedisse. Este pensamento foi um consolo para mim, e disse comigo mesma, embora só tivesse seis anos ainda: "Rezarei pelo meu pobre no dia da minha primeira comunhão". Cumpri a promessa cinco anos mais tarde, e espero que o Bom Deus tenha atendido a oração que me inspirara a fazer-lhe por um de seus membros sofredores...

Tinha muito amor ao Bom Deus, e amiúde lhe oferecia meu coração, valendo-me da breve fórmula que mamãe me ensinara. No entanto, certo dia, ou melhor, certa noite do lindo mês de Maio, cometi uma falta que bem merece referência. Deu-me grande motivo de humilhar-me, e a respeito dela creio ter tido contrição perfeita. Sendo muito pequena para frequentar o mês de Maria, ficava com Vitória' e fazia com ela minhas devoções diante do meu altarzinho do mês de Maria, adornado de acordo com minha capacidade. -Tudo era tão miudinho: castiçais e vasos de flores, de sorte que dois fósforos, à guisa de velas, clareavam tudo perfeitamente. As vezes, Vitória fazia-me a surpresa de dar-me uns pedacinhos de torcida, mas era caso raro. Uma noite, estando tudo prestes para nos pormos em oração, digo-lhe: "Vitória, queres começar com o "Lembrai-vos", que vou acender". Ela fez menção de começar, mas não disse palavra, e olhava-me rindo. Eu que via meus preciosos fósforos consumirem-se rapidamente, supliquei-lhe fizesse a oração, e ela continuou calada. Levantei-me então e pus-me a dizer-lhe, com voz gritada, que era maldosa, e, abandonando minha habitual brandura batia o pé com toda a minha força... A pobre da Vitória já não tinha vontade de rir. Olhou para mim com estranheza, e mostrou-me as torcidas que me havia trazido... Depois de verter lágrimas coléricas, derramei lágrimas de sincero arrependimento, com o firme propósito de não tornar a fazê-lo!...

(cont.)