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20/09/2014

Precisas de um bom exame diário de consciência

Repara na tua conduta com vagar. Verás que estás cheio de erros, que te prejudicam a ti e talvez também aos que te rodeiam. – Lembra-te, filho, que não são menos importantes os micróbios do que as feras. E tu cultivas esses erros, esses enganos – como se cultivam os micróbios no laboratório –, com a tua falta de humildade, com a tua falta de oração, com a tua falta de cumprimento do dever, com a tua falta de conhecimento próprio... E, depois, esses focos infectam o ambiente. Precisas de um bom exame diário de consciência, que te conduza a propósitos concretos de melhora, por sentires verdadeira dor das tuas faltas, das tuas omissões e pecados. (Sulco, 481)

A conversão é coisa de um instante; a santificação é tarefa para toda a vida. A semente divina da caridade, que Deus pôs nas nossas almas, aspira a crescer, a manifestar-se em obras, a dar frutos que correspondam em cada momento ao que é agradável ao Senhor. Por isso, é indispensável estarmos dispostos a recomeçar, a reencontrar – nas novas situações da nossa vida – a luz, o impulso da primeira conversão. E essa é a razão pela qual havemos de nos preparar com um exame profundo, pedindo ajuda ao Senhor para podermos conhecê-Lo melhor e conhecer-nos melhor a nós mesmos. Não há outro caminho para nos convertermos de novo. (Cristo que passa, 58)


Temas para meditar - 242


Providência divina


Às vezes ocorre-nos o que ao leigo em medicina que vê o médico receitar água a um enfermo e a outro vinho, segundo lhe sugere a sua ciência: não sabendo medicina, pensa que o médico receita estes remédios à sorte. Assim acontece com respeito a Deus. Ele, com conhecimento de causa e segundo a Sua providência, dispõe as coisas que os homens necessitam: aflige uns que talvez sejam bons, e deixa viver em prosperidade outros que são maus.


(S. Tomás de aquinoSobre o Credo, 1)

Carta à Mãe do Céu no seu aniversário

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Minha querida Mãe do Céu

Deixa-me confessar-te que nem sempre te amei como Mãe.

Sabes Mãe, por vezes era tanta a insistência em impelirem-me para te amar, que humanamente me defendia para dar mais amor ao teu Filho.

E no fundo Mãe, é apenas e só isso tu queres, não é Mãe?
Mas como amar o Filho e não amar a Mãe que O gerou?

Que difícil é esta relação Mãe!
Pelo menos para mim, querida Mãe!

Olho para ti e vejo-te assim, humilde, silenciosa, cheia de graça e guardando no coração, não só o que o teu bendito Filho faz, mas tudo o que os teus filhos, aqui na terra vão fazendo, uns amando o teu Filho e n’Ele amando os outros, outros rejeitando-O, e ao rejeitá-lO, rejeitando os outros.

Sabes, Mãe, não sei o que é mais fácil, se é o amor que desponta no coração e é existência permanente, se é o amor de quem quer amar, exigindo-se, porque a vida tem sentido nesse amor?

Debato-me com o coração, que é todo do teu Filho, e é Ele mesmo que me diz, baixinho ao meu ouvido: Ama a minha Mãe, porque se a amas, ela toda se faz Mãe para ti, para te trazer a mim!

Oh, como eu queria, como tantos santos, ter esse amor acrisolado, rendido, inquestionável, por ti, Mãe!
E, no entanto, como me é tão difícil entender que tantos te amem tanto, e não queiram ver e amar ainda mais o teu Filho.

Eu sei, Mãe, que não é isso que tu queres, eu sei Mãe que tu apenas apontas ao teu Filho, ao Salvador, mas que queres Mãe, humanamente não consigo distanciar-me, e custa-me não conseguir atingir todo o amor que te devo ter, para amar ainda mais o teu Filho.

Ai, querida Mãe, que escrita tão confusa que agora aqui escrevo. Mas acredito que o teu Filho, e tu também, Mãe, percebem tudo o que me vai no coração, tudo o que me vai na alma.

Minha querida Mãe, parabéns!
Parabéns pelo teu aniversário, e peço-te Mãe, (que como todas as mães sabes ler o coração dos filhos), encontra no meu coração o amor imenso que tenho por ti, e diz ao teu Filho que o amo mais do que à sua Mãe, porque só amando-O assim, te posso amar Mãe.

Do teu filho pobre, confundido por vezes, fraco, mas teu filho, porque irmão do teu Filho Jesus

Joaquim


Natividade da Virgem Santa Maria
Marinha Grande, 8 de Setembro de 2014 
Joaquim Mexia Alves
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Evang., Coment. Leit. Espiritual (Sermão do Espírito Santo)

Tempo comum XXIV Semana

Evangelho: Lc 8, 4-15

4 Tendo-se juntado uma grande multidão de povo e, tendo ido ter com Ele de diversas cidades, disse Jesus esta parábola: 5 «Saiu o semeador a semear a sua semente; ao semeá-la, uma parte caiu ao longo do caminho; foi calcada e as aves do céu comeram-na. 6 Outra parte caiu sobre pedregulho; quando nasceu, secou, porque não tinha humidade. 7 A outra parte caiu entre espinhos; logo os espinhos, que nasceram com ela, a sufocaram. 8 Outra parte caiu em terra boa; depois de nascer, deu fruto centuplicado». Dito isto, exclamou: «Quem tem ouvidos para ouvir, oiça!». 9 Os Seus discípulos perguntaram-Lhe o que significava esta parábola. 10 Ele respondeu-lhes: «A vós é concedido conhecer o mistério do reino de Deus, mas aos outros ele é anunciado por parábolas; para que “vendo não vejam, e ouvindo não entendam”. 11 Eis o sentido da parábola: A semente é a palavra de Deus. 12 Os que estão ao longo do caminho, são aqueles que a ouvem, mas depois vem o demónio e tira a palavra do seu coração para que não se salvem crendo. 13 Os que estão sobre pedregulho, são os que, quando a ouvem, recebem com gosto a palavra, mas não têm raízes; por algum tempo acreditam, mas no tempo da tentação voltam atrás. 14 A que caiu entre espinhos, representa aqueles que ouviram a palavra, porém, indo por diante, ficam sufocados pelos cuidados, pelas riquezas e pelos prazeres desta vida, e não dão fruto. 15 Enfim, a que caiu em terra boa, representa aqueles que, ouvindo a palavra com o coração recto e bom, a conservam e dão fruto com a sua perseverança.

Comentário:

«12 Os que estão ao longo do caminho, são aqueles que a ouvem, mas depois vem o demónio e tira a palavra do seu coração para que não se salvem crendo.»

Estas palavras de Jesus dão-nos que pensar. O demónio, sempre à espreita, tudo fará para que não retenhamos a palavra e, tendo-a, sigamos o que nos sugere. Se o fizermos, como Cristo espera, salvar-nos-emos e, isto, o demónio não quer.
A vitória do demónio conclui-se quando a salvação se perde ou seja, a derrota do homem é o seu objectivo, a única razão pela qual se move.

Como que roubando um filho ao seu Pai, o demónio satisfaz-se tornando-nos órfãos definitivamente afastados daquele que nos oferece a redenção eterna.

(ama, comentário a Lc 8, 4-15, V. Moura, 2012.09.22)

Leitura espiritual


Documentos do Magistério

Sermão do Espírito Santo
Padre António Vieira

IV

A segunda circunstância que pede grande cabedal de amor de Deus é a dificuldade das línguas. Se o Espírito Santo descera hoje em línguas milagrosas, como antigamente, não tinha tanta dificuldade o pregar aos gentios; mas haverem de aprender-se essas línguas com estudo e com trabalho é uma empresa muito dificultosa, e que só um grande amor de Deus a pode vencer. Apareceu Deus em uma visão ao profeta Ezequiel, e, dando-lhe um livro, disse-lhe que o comesse, e que fosse pregar aos filhos de Israel tudo o que nele estava escrito: Comede volumen istud, et vadens loquere ad filios Israel (Ez. 3,1). Abriu a boca o profeta, não se atrevendo a tocar no livro por reverência, comeu-o, e diz que lhe soube bem, e que o achou muito doce: Comedi illud, et factum est in ore meo sicut mel dulce (Ez 3,3). Se os homens pudessem comer os livros de um bocado, que facilmente se aprenderiam as ciências, e se tomaram as línguas? Oh! que fácil modo de aprender! Oh! que doce modo de estudar!

Tal foi o modo com que Deus, em um momento, antigamente ensinava os profetas, e com que hoje o Espírito Santo, em outro momento, ensinou os apóstolos, achando-se de repente doutos nas ciências, eruditos nas Escrituras, prontos nas línguas, que tudo isto se lhes infundiu naquele repente em que desceu sobre eles o Espírito Santo: Factus est repente de caelo sonus, tanquam advenientis Spiritus [1]. Mas haver de comer os livros folha a folha, haver de levar as ciências bocado a bocado, e às vezes com muito fastio, haver de mastigar as línguas nome por nome, verbo por verbo, sílaba por sílaba, e ainda letra por letra, por certo que é coisa muito dura e muito desabrida, e muito para amargar, e que só o muito amor de Deus a pode fazer doce. Assim o aludiu Deus ao mesmo profeta Ezequiel neste mesmo lugar, com termos bem particulares e bem notáveis.

Vade ad domum Israel, et loqueris verba mea ad eos, non enim ad populum profundi sermonis et ignotae linguae tu mitteris, neque ad populos multos profundi sermonis et ignotae linguae, quorum non possis audire sermones (Ez. 3,4 ss): Ide, Ezequiel, pregai o que vos tenho dito aos filhos de Israel, e, para que não repugneis a missão, nem vos pareça que vos mando a uma empresa muito dificultosa, adverti aonde ides e aonde não ides. Adverti que ides pregar a um povo da vossa própria nação e de vossa própria língua, que o entendeis e vos entende: Ad domum Israel; e adverti que não ides pregar a gente de diferente nação e diferente língua, nem menos a gentes de muitas e diferentes nações, e muitas e diferentes línguas, o que nem vós as entendais, nem elas vos entendam: Non enim ad populum profundis sermonis et ignotae linguae tu mitteris, neque ad populos multos profundi sermonis et ignotae linguae, quorum non possis audire sermones. De sorte — se bem advertis — que distingue Deus no ofício de pregar três gêneros de empresas: uma fácil, outra dificultosa, outra dificultosíssima. A fácil é pregar à gente da própria nação e da própria língua: Vade ad filios Israel; a dificultosa é pregar a uma gente de diferente língua e diferente nação: Ad populum projundi sermonis et ignotae linguae; a dificultosíssima é pregar a gentes não de uma só nação e uma só língua diferente, senão de muitas e diferentes nações, e muitas e diferentes línguas, desconhecidas, escuras, bárbaras, e que se não podem entender: Ad populos multos profundi sermonis et ignotae linguae, quorum non possis audire sermones.

À primeira destas três empresas mandou Deus ao profeta Ezequiel, e a todos os outros profetas antigos, os quais todos — exceto quando muito Jonas e Jeremias — pregaram a gente da sua nação e da sua língua. A segunda e a terceira empresa ficaram guardadas para os apóstolos e pregadores da lei da graça, e entre eles particularmente para os portugueses, e entre os portugueses, mais em particular ainda, para os desta conquista, em que são tantas, tão estranhas, tão bárbaras e tão nunca ouvidas, nem conhecidas, nem imaginadas as línguas. Manda Portugal missionários ao Japão, onde há cinquenta e três reinos, ou sessenta, como outros escrevem; mas a língua, ainda que desconhecida, é uma só: Ad populum profundi sermonis et ignotae linguae. Manda Portugal missionários à China, império vastíssimo, dividido em quinze províncias, cada uma capaz de muitos reinos; mas a língua, ainda que desconhecida, é também uma: Ad populum profundi sermonis et ignotae linguae. Manda Portugal missionários ao Mogor, à Pérsia, ao Preste João, impérios grandes, poderosos, dilatados, e dos maiores do mundo; mas cada um de uma só língua: Ad populum profundi sermonis et ignotae linguae.

Porém os missionários que Portugal manda ao Maranhão, posto que não tenha nome de império nem de reino, são verdadeiramente aqueles que Deus reservou para a terceira, última e dificultosíssima empresa, porque vem pregar a gentes de tantas, tão diversas e tão incógnitas línguas, que só uma coisa se sabe delas, que é não terem número: Ad populos multos profundi sermonis et ignotae linguae, quorum non possis audire sermones.

Pela muita variedade das línguas, houve quem chamou ao Rio das Almazonas rio Babel; mas vem-lhe tão curto o nome de Babel, como o de rio. Vem-lhe curto o nome de rio, porque verdadeiramente é um mar doce, maior que o Mar Mediterrâneo no comprimento e na boca. O Mar Mediterrâneo no mais largo da boca tem sete léguas, e o Rio das Almazonas oitenta; o Mar Mediterrâneo, do Estreito de Gilbraltar até as praias da Síria, que é a maior longitude, tem mil léguas de comprido, e o Rio das Almazonas, da cidade de Belém para cima, já se lhe tem contado mais de três mil, e ainda se lhe não sabe princípio. Por isso os naturais lhe chamam Pará, e os portugueses Maranhão, que tudo quer dizer mar, e mar grande. E vem-lhe curto também o nome de Babel, porque na Torre de Babel, como diz S. Jerônimo, houve somente setenta e duas línguas, e as que se falam no Rio das Almazonas são tantas e tão diversas, que se lhes não sabe o nome nem o número. As conhecidas até o ano de 639, no descobrimento do Rio de Quito, eram cento e cinquenta. Depois se descobriram muitas mais, e a menor parte do rio, de seus imensos braços, e das nações que os habitam, é o que está descoberto.

Tantos são os povos, tantas e tão ocultas as línguas, e de tão nova e nunca ouvida inteligência: Ad populos multos profundi sermonis et ignotae linguae, quorum non possis audire sermones.

Nesta última cláusula do profeta: Quorum non possis audire sermones, a palavra ouvir significa entender, porque o que se não entende é como se não se ouvira. Mas em muitas das nações desta conquista se verifica a mesma palavra no sentido natural, assim como soa, porque há línguas entre elas de tão escura e cerrada pronunciação, que verdadeiramente se pode afirmar que se não ouvem: Quorum non possis audire sermones. Por vezes me aconteceu estar com o ouvido aplicado à boca do bárbaro, e ainda do intérprete, sem poder distinguir as sílabas, nem perceber as vogais ou consoantes de que se formavam, equivocando-se a mesma letra com duas e três semelhantes, ou compondo-se — o que é mais certo — com mistura de todas elas: umas tão delgadas e sutis, outras tão duras e escabrosas, outras tão interiores e escuras, e mais afogadas na garganta que pronunciadas na língua; outras tão curtas e subidas, outras tão estendidas e multiplicadas, que não percebem os ouvidos mais que a confusão, sendo certo, em todo rigor, que as tais línguas não se ouvem, pois se não ouve delas mais que o sonido, e não palavras desarticuladas e humanas, como diz o profeta: Quorum non possis audire sermones.

De José, ou do povo de Israel no Egito, diz Davi por grande encarecimento de trabalho: Linguam, quam non noverat, audivit: que ouvia a língua que não entendia. — Se é trabalho ouvir a língua que não entendeis, quanto maior trabalho será haver de entender a língua que não ouvis? O primeiro trabalho é ouvi-la; o segundo, percebê-la; o terceiro, reduzi-la a gramática e a preceitos; o quarto, estudá-la: o quinto — e não o menor, e que obrigou a S. Jerónimo a limar os dentes — o pronunciá-la.

E depois de todos estes trabalhos, ainda não começastes a trabalhar, porque são disposições somente para o trabalho. Santo Agostinho intentou aprender a língua grega, e, chegando à segunda declinação, em que se declina ophis, que quer dizer serpente, não foi mais por diante, e disse com galantaria: Ophis me terruit: a serpente me meteu tal medo, que me fez tornar atrás. - Pois se a Santo Agostinho, sendo Santo Agostinho, se à águia dos entendimentos humanos se lhe fez tão dificultoso aprender a língua grega, que está tão vulgarizada entre os latinos, e tão facilitada com mestres, com livros, com artes, com vocabulários, e com todos os outros instrumentos de aprender, que serão as línguas bárbaras e barbaríssimas de umas gentes, onde nunca houve quem soubesse ler nem escrever? Que será aprender o nheengaiba, o juruuna, o tapajó, o teremembé, o mamaiana, que só os nomes parece que fazem horror?

As letras dos chinas e dos japões muita dificuldade têm, porque são letras hieroglíficas, como as dos egípcios; mas, enfim, é aprender língua de gente política, e estudar por letra e por papel. Mas, haver de arrostar com uma língua bruta, e de brutos, sem livro, sem mestre, sem guia, e no meio daquela escuridade e dissonância haver de cavar os primeiros alicerces, e descobrir os primeiros rudimentos dela, distinguir o nome, o verbo, o advérbio, a proposição, o número, o caso, o tempo, o modo, e modos nunca vistos nem imaginados, como de homens enfim tão diferentes dos outros nas línguas, como nos costumes, não há dúvida que é empresa muito árdua a qualquer entendimento, e muito mais árdua à vontade que não estiver muito sacrificada e muito unida com Deus. Receber as línguas do céu milagrosamente, em um momento, como as receberam os apóstolos, foi maior felicidade; mas aprendê-las e adquiri-las dicção por dicção, e vocábulo por vocábulo, à força de estudo, de diligência e de continuação, assim como será maior merecimento, é também muito diferente trabalho, e para um e outro se requer muita graça do Espírito Santo e grande cabedal de amor de Deus. Maior rigor usa neste caso o amor de Deus com os pregadores do Evangelho, do que usou a justiça de Deus com os edificadores da Torre de Babel. Aos que edificavam a Torre de Babel condenou-os a justiça de Deus a falar diversas línguas, mas não a aprendê-las; aos que pregam a fé entre as gentilidades, condena-os o amor de Deus, não só a que falem as suas línguas, senão a que as aprendam, que, se não fora por amor, era muito maior castigo. E que amor será necessário para um homem, e tantos homens, se condenarem voluntariamente, não só cada um a uma língua — como os da Torre - mas muitos a muitas?

Vejo, porém, que me perguntais: Pois, se a Deus é tão fácil infundir a ciência das línguas em um momento, e se antigamente deu aos apóstolos o dom das línguas, para que pregassem a fé pelo mundo, agora, por que não dá o mesmo dom aos pregadores da mesma fé, principalmente em cristandades ou gentilidades novas, como estas nossas? Esta dúvida é mui antiga, e já lhe respondeu S. Gregório Papa e Santo Agostinho, posto que variamente. A razão literal é porque Deus regularmente não faz milagres sem necessidade: quando faltam as forças humanas, então suprem as divinas. E como Cristo queria converter o mundo só com doze homens, para converter um mundo tão grande, tantas cidades, tantos reinos, tantas províncias, com tão poucos pregadores, era necessário que milagrosamente se lhes infundissem as línguas de todas as nações, porque não tinham tempo nem lugar para as aprender; porém, depois que a fé esteve tão estendida e propagada, como está hoje, e houve muitos ministros que a pudessem pregar, aprendendo as línguas de cada nação, cessaram comumente as línguas milagrosas, porque não foi necessária a continuação do milagre. Vede-o nas línguas do Espírito Santo.

Apparuerunt dispertitae linguae tanquam ignis, seditque supra singulos eorum (At. 2,3): Apareceram sobre os apóstolos muitas línguas de fogo, o qual se assentou sobre eles. Não sei se reparais na diferença: diz que apareceram as línguas, e que o fogo se assentou. E por que se não assentaram as línguas, senão o fogo? Porque as línguas não vieram de assento, o fogo sim. Os dons que o Espírito Santo trouxe hoje consigo sobre os apóstolos foram principalmente dois: o dom das línguas e o dom do amor de Deus. O dom das línguas não se assentou, porque não havia de perseverar: acabou geralmente com os apóstolos: Apparuerunt dispertitae linguae. Apareceram as línguas e desapareceram. Porém o dom do fogo, o dom do amor de Deus, esse se assentou: Sedit supra singulos eorum, porque veio de assento, e perseverou não só nos apóstolos, senão em todos os seus sucessores. E assim vimos em todas as idades, e vemos também hoje tantos varões apostólicos, em que está tão vivo este fogo, tão fervoroso este espírito, e tão manifesto e tão ardente este amor.

Aos apóstolos deu-lhes Deus línguas de fogo, aos seus sucessores deu-lhes fogo de línguas. As línguas de fogo acabaram, mas o fogo de línguas não acabou, porque este fogo, esse Espírito, esse amor de Deus faz aprender, estudar e saber essas línguas. E quanto a esta ciência das línguas, muito mais à letra se cumpre nos varões apostólicos de hoje a promessa de Cristo, que nos mesmos apóstolos antigos, porque Cristo disse: Ille vos docebit: que o Espírito Santo os ensinaria. E aos apóstolos da Igreja primitiva não lhes ensinou o Espírito Santo as línguas: deu-lhas e infundiu-lhas; aos apóstolos de hoje não lhes dá o Espírito Santo as línguas: vem-lhas infundir e ensinar-lhas: Ille vos docebit. As primeiras línguas foram dadas com milagre, as segundas são ensinadas sem milagre; mas eu tenho estas por mais milagrosas, porque menos maravilha é em Deus podê-las dar sem trabalho, que no homem querê-las aprender com tanto trabalho: em Deus argui um poder infinito, que em Deus é natureza; no homem argúi um amor de Deus excessivo, que é sobre a natureza do homem.

Com razão comete logo Cristo este ofício de ensinar ao Espírito Santo, e passa os seus discípulos da Escola da Sabedoria para a Escola do Amor: Ille vos docebit.

(cont)







[1] ) De repente veio do céu um estrondo, como do vento que assoprava com ímpeto (At. 2,2).