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25/08/2014

Que bonito ser jogral de Deus!

Em certa altura, alguém me disse: – Padre, mas se eu me encontro cansado e frio; se, quando rezo ou cumpro outra norma de piedade, me parece que estou a fazer teatro... A esse amigo e a ti, se te encontrares na mesma situação, respondo: – Teatro? Grande coisa, meu filho! Faz teatro! O Senhor é o teu espectador!: o Pai, o Filho, o Espírito Santo; a Santíssima Trindade estará a contemplar-nos, naqueles momentos em que "fazemos teatro". Actuar assim diante de Deus, por amor, para lhe agradar, quando se vive a contragosto, que bonito! Ser jogral de Deus! Que maravilhoso é esse recital realizado por Amor, com sacrifício, sem nenhuma satisfação pessoal, para dar gosto a Nosso Senhor! Isso sim que é viver de Amor. (Forja, 485)

Lê-se na Escritura: Iudens in orbe terrarum, que Ele brinca em toda a superfície da terra. Mas Deus não nos abandona, porque imediatamente acrescenta: deliciæ meæ esse cum filiis hominum, a minha delícia é estar com os filhos dos homens. O Senhor brinca connosco. E quando nos parecer que estamos a representar uma comédia, por nos sentirmos gelados e apáticos, quando estivermos aborrecidos e sem vontade de fazer nada, quando nos custar cumprir o nosso dever e alcançar as metas espirituais que nos tínhamos proposto, é altura de pensar que Deus brinca connosco e espera então que saibamos representar a nossa comédia com galhardia.

Não me importo de vos contar que, em algumas ocasiões, o Senhor me concedeu muitas graças, mas que geralmente vou a contrapelo. Prossigo o meu plano de vida, não porque me agrade, mas porque devo fazê-lo por Amor. Mas, Padre, pode-se representar uma comédia diante de Deus? Não será uma hipocrisia? Não te inquietes, pois chegou para ti o momento de entrares numa comédia humana que tem um espectador divino. Persevera, pois o Pai, o Filho e o Espírito Santo assistem a essa tua comédia. Faz tudo por amor de Deus, para lhe agradar, mesmo que te custe.


Que bonito é ser jogral de Deus! Como é belo representar essa comédia por Amor, com sacrifício, sem nenhuma satisfação pessoal, para agradar ao nosso Pai Deus, que brinca connosco! Põe-te diante do Senhor e diz-lhe confiadamente: não me apetece nada fazer isto, mas oferecê-lo-ei por Ti. E ocupa-te a sério desse trabalho, ainda que penses que é uma comédia. Abençoada comédia! (Amigos de Deus, 152)

Temas para meditar 216


Humildade


Foi a humildade a porta por onde o Senhor entrou a tomar posse do que já possuía. 



(Stº agostinho Sermões 6)

Tratado da Graça 05

Art. 5 — Se o homem sem a graça pode merecer a vida eterna.

(Infra, q. 114, a. 2, II Sent., dust. XXVIII, a. 1, dist. XXIX, a. 1, III Cont. Gent., cap. CXLVII, De Verit., q. 24, a. 1, ad 2, a. 14, Quold. I, q. 4, a. 2).

O quinto discute-se assim. — Parece que sem a graça o homem pode merecer a vida eterna.

1. — Pois, diz o Senhor (Mt 19, 17): Se tu queres entrar na vida, guarda os mandamentos. Por onde se vê que depende da vontade humana entrar na vida eterna. Ora, o que depende da nossa vontade podemos faze-lo por nós mesmos. Logo, o homem pode, por si mesmo, merecer a vida eterna.

2. Demais. — A vida eterna é um galardão ou prémio, que Deus dá aos homens, conforme a Escritura (Mt 5, 12): o vosso galardão está nos céus. Ora, Deus dá o galardão ou o prémio ao homem, segundo as suas obras, no dizer da Escritura (Sl 61, 12): Tu retribuirás a cada um segundo as suas obras. Logo, sendo o homem senhor dos seus atos, foi deixado ao seu poder entrar na vida eterna.

3. Demais. — A vida eterna é o fim último da vida humana. Ora, todos os seres da natureza podem, pelas suas faculdades naturais, conseguir o seu fim. Logo, com maior razão, o homem, de natureza mais elevada, pode chegar à vida eterna pelas suas faculdades naturais, sem o auxílio da graça.

Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Rm 6, 23): A graça de Deus é a vida eterna. O que foi dito, explica a Glosa nesse lugar, para entendermos, que Deus nos conduz, pela sua misericórdia, à vida eterna.

Os actos conducentes ao fim devem ser proporcionados a este. Ora, nenhum acto excede à proporção do princípio activo. Por isso, vemos que nenhum ser natural pode produzir, pela sua operação própria, um efeito que lhe exceda a virtude activa, senão só o que lhe for proporcionado à virtude. Ora, a vida eterna é um fim desproporcionado à natureza humana, como do sobredito resulta (q. 5, a. 5). Donde, o homem, pelas suas faculdades naturais, não pode praticar obras meritórias proporcionadas à vida eterna, para isso é necessária uma virtude mais alta, que é a virtude da graça. Portanto, sem esta, ele não pode alcançar a vida eterna. Pode, porém, praticar certas obras conducentes a determinados bens que lhe sejam conaturais, como, trabalhar no campo, beber, comer, ter amigos e outros semelhantes, como diz Agostinho.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — O homem, pela sua vontade, pode fazer obras meritórias para a vida eterna. Mas, como diz Agostinho, no mesmo livro, para isso é necessário que a vontade lhe seja preparada pela graça de Deus.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Ao lugar do Apóstolo — a graça de Deus é a vida eterna — diz a Glosa: É certo que a vida eterna é dada em retribuição das boas obras, mas estas mesmas já procedem da graça de Deus. Pois, como também já dissemos (a. 4), para cumprir os mandamentos de Deus, como devemos e meritoriamente, é necessária a graça.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A objecção colhe quanto ao fim conatural do homem. Pois, a natureza humana, por isso mesmo que é mais nobre, pode atingir um fim mais elevado, ao menos com o auxílio da graça, o qual de nenhum modo podem alcançar os seres de natureza inferior. Assim, tem melhor disposição para a saúde quem pode alcançá-la, com o auxílio de certos remédios, do que quem de nenhum modo o pode, como diz o Filósofo.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


Evang.; Coment.; Leit. Esp. (Cong para a Dout. da Fé - Leonardo Boff)

Tempo comum XXI Semana

Evangelho: Mt 23, 13-22

13 «Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que fechais aos homens o Reino dos Céus, pois nem vós entrais, nem deixais que entrem os que quereriam entrar. 14 Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que devorais as casas das viúvas a pretexto de longas orações! Por isto sereis julgados mais severamente. 15 Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que correis o mar e a terra para fazerdes um prosélito e, depois de o terdes feito, o tornais filho do inferno duas vezes pior do que vós. 16 «Ai de vós, guias cegos, que dizeis: “Se alguém jurar pelo templo, isso não é nada, mas o que jurar pelo ouro do templo, fica obrigado!”. 17 Insensatos e cegos! Pois que é mais, o ouro ou o templo, que santifica o ouro? 18 E dizeis também: “Se alguém jurar pelo altar, isso não é nada, mas quem jurar pela oferenda que está sobre ele, fica obrigado”. 19 Cegos! Qual é mais: a oferta ou o altar que santifica a oferta? 20 Aquele, pois, que jura pelo altar, jura por ele e por tudo o que está sobre ele, 21 e quem jura pelo templo, jura por ele e por Aquele que habita nele, 22 e quem jura pelo céu, jura pelo trono de Deus e por Aquele que está sentado sobre ele.

Comentário:

Para um cristão, jurar, não faz nenhum sentido já que deve ser conhecido por pessoa de palavra, em quem se pode acreditar sem reservas.
Por isso mesmo, deve estar preparado – sempre! – com conhecimento aprofundado da Doutrina para não ser nem apanhado em falso nem transmitir a outros algo que não seja correcto.
Estudar a Doutrina da Igreja é, pois, um dever, uma obrigação e uma grande necessidade.
Mais… deve ser constante!

(AMA, Comentário sobre Mt 23, 13-22, 2013.08.26)

Leitura espiritual



Magistério

CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ
NOTIFICAÇÃO SOBRE O LIVRO
«IGREJA: CARISMA E PODER.
ENSAIOS DE ECLESIOLOGIA MILITANTE»
DE FREI LEONARDO BOFF, O.F.M.

INTRODUÇÃO

No dia 12 de Fevereiro de 1982, Frei Leonardo Boff, OFM, tomou a iniciativa de enviar à Congregação para a Doutrina da Fé a resposta que deu à Comissão arquidiocesana para a Doutrina da Fé do Rio de Janeiro, que criticara o seu livro «Igreja: Carisma e Poder» (Editora Vozes - Petrópolis, RJ, Brasil, 1981). Declarava que aquela crítica continha graves erros de leitura e de interpretação.

A Congregação, após ter estudado o livro nos seus aspectos doutrinais e pastorais, expôs ao Autor, numa carta de 15 de Maio de 1984, algumas reservas, convidando-o a aceitá-las e oferecendo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de um diálogo de esclarecimento. Tendo porém em vista a repercussão que o livro estava tendo entre os fiéis, a Congregação informou L. Boff de que, em qualquer hipótese, a carta seria publicada, levando eventualmente em consideração a posição que ele viesse a tomar por ocasião do diálogo.

No dia 7 de Setembro de 1984, L. Boff foi recebido pelo Cardeal Prefeito da Congregação, acompanhado pelo Mons. Jorge Mejía, na qualidade de Secretário. Foram objecto do colóquio alguns problemas eclesiológicos surgidos da leitura do livro «Igreja: Carisma e Poder» e assinalados na carta de 15 de Maio de 1984. A conversa, que se desenvolveu num clima fraterno, proporcionou ao Autor ocasião de expor seus esclarecimentos pessoais, que ele quis também entregar por escrito. Tudo isto foi explicado num comunicado final publicado e redigido de comum acordo com L. Boff. Concluído o diálogo, foram recebidos pelo Cardeal Prefeito, em outra sala, os Eminentíssimos Cardeais Aloísio Lorscheider e Paulo Evaristo Arns, que se encontravam em Roma para esta oportunidade.

A Congregação examinou, seguindo a praxe que lhe é própria, os esclarecimentos orais e escritos fornecidos por L. Boff e, embora tomando nota das boas intenções e das repetidas declarações de fidelidade à Igreja e ao Magistério por ele expressas, sentiu-se contudo no dever de salientar que as reservas levantadas acerca do conteúdo do livro e assinaladas na carta, não poderiam, na sua substância, considerar-se superadas. Julga pois necessário, assim como estava previsto, agora publicar, nas suas partes essenciais, o conteúdo doutrinal da mencionada carta.

PREMISSA DOUTRINAL

A eclesiologia do livro «Igreja: Carisma e Poder» propõe-se ir ao encontro dos problemas da América Latina e, em particular do Brasil, com uma colectânea de estudos e perspectivas (cf. p. 13). Tal intenção exige, de um lado, uma atenção séria e aprofundada às situações concretas, às quais o livro se refere e, por outro lado, — para realmente corresponder ao seu objectivo — a preocupação de inserir-se na grande tarefa da Igreja universal, no sentido de interpretar, desenvolver e aplicar, sob a inspiração do Espírito Santo, a herança comum do único Evangelho, entregue, uma vez para sempre, pelo Senhor à nossa fidelidade. Deste modo a única fé do Evangelho cria e edifica, ao longo dos séculos, a Igreja católica, que permanece una na diversidade dos tempos e na diferença das situações próprias às múltiplas Igrejas particulares. A Igreja universal realiza-se e vive nas Igrejas particulares e estas são Igreja exactamente enquanto continuam a ser, num determinado tempo e lugar, expressão e atualização da Igreja universal. Deste modo, com o crescimento e o progresso das Igrejas particulares cresce e progride a Igreja universal; ao passo que, debilitando-se a unidade, diminuiria e decairia também a Igreja particular. Por isso o verdadeiro discurso teológico não pode jamais contentar-se em apenas interpretar e animar a realidade de uma Igreja particular, mas deve, ao contrário, procurar aprofundar os conteúdos do depósito sagrado da palavra de Deus, depósito confiado à Igreja e autenticamente interpretado pelo Magistério. A praxis e as experiências que sempre têm origem numa determinada e limitada situação histórica, ajudam o teólogo e o obrigam a tornar o Evangelho acessível ao seu tempo. A praxis, contudo, não substitui, nem produz a verdade, mas está a serviço da verdade, que nos foi entregue pelo Senhor. O teólogo é, pois, chamado a decifrar a linguagem das diversas situações — os sinais dos tempos — e a abrir esta linguagem à inteligência da fé (cf. Enc. Redemptor hominis, n. 19). Examinadas à luz dos critérios de um autêntico método teológico — aqui apenas brevemente assinalados — certas opções do livro de L. Boff manifestam-se insustentáveis. Sem pretender analisá-las todas, colocam-se em evidência apenas as opções eclesiológicas que parecem decisivas, ou seja: a estrutura da Igreja, a concepção do dogma, o exercício do poder sagrado e o profetismo.

A ESTRUTURA DA IGREJA

L. Boff coloca-se, segundo as suas próprias palavras, dentro de uma orientação, na qual se afirma «que a igreja como instituição não estava nas cogitações do Jesus histórico, mas que ela surgiu como evolução posterior à ressurreição, particularmente com o processo progressivo de desescatologização» (p. 123). Consequentemente, a hierarquia é para ele «um resultado» da «férrea necessidade de se institucionalizar», «uma mundanização», no «estilo romano e feudal» (p. 71). Daí deriva a necessidade de uma «mutação permanente da Igreja» (p. 109); hoje deve emergir uma «Igreja nova» (p. 107, passim), que será «uma nova encarnação das instituições eclesiais na sociedade, cujo poder será pura função de serviço» (p. 108).

Na lógica destas afirmações explica-se também a sua interpretação acerca das relações entre catolicismo e protestantismo: «Parece-nos que o cristianismo romano (catolicismo) se distingue por afirmar corajosamente a identidade sacramental e o cristianismo protestante por uma afirmação destemida da não-identidade» (p. 132; cf. pp, 126 ss., 140).

Dentro desta visão, ambas as confissões constituiriam mediações incompletas, pertencentes a um processo dialético de afirmação e de negação. Nesta dialéctica «se mostra o que seja o cristianismo. Que é o cristianismo? Não sabemos. Somente sabemos aquilo que se mostrar no processo histórico» (p. 131).

Para justificar esta concepção relativizante da Igreja — que se encontra na base das críticas radicais dirigidas contra a estrutura hierárquica da Igreja católica — L. Boff apela para a Constituição Lumen gentium (n. 8) do Concílio Vaticano II. Da famosa expressão do Concílio «Haec Ecclesia (se. única Christi Ecclesia)... subsistit in Ecclesia catholica», ele extrai uma tese exactamente contrária à significação autêntica do texto conciliar, quando afirma: de facto, «esta (isto é, a única Igreja de Cristo) pode subsistir também em outras Igrejas cristãs» (p. 125). O Concílio tinha, porém, escolhido a palavra «subsistit» exatamente para esclarecer que há uma única «subsistência» da verdadeira Igreja, enquanto fora de sua estrutura visível existem somente «elementa Ecclesiae», que — por serem elementos da mesma Igreja — tendem e conduzem em direção à Igreja católica (LG 8). O Decreto sobre o ecumenismo exprime a mesma doutrina (UR 3-4), que foi novamente reafirmada pela Declaração Mysterium Ecclesiae, n. 1 (AAS LXV [1973], pp. 396-398).

A subversão do significado do texto conciliar sobre a subsistência da Igreja está na base do relativismo eclesilógico de L. Boff, supra delineado, no qual se desenvolve e se explicita um profundo desentendimento daquilo que a fé católica professa a respeito da Igreja de Deus no mundo.

DOGMA E REVELAÇÃO

A mesma lógica relativizante encontra-se na concepção da doutrina e do dogma expressa por L. Boff. O Autor critica, de modo muito severo, «a compreensão doutrinária da revelação» (p. 73). É verdade que L. Boff distingue entre dogmatismo e dogma (cf. p. 139), admitindo o segundo e rejeitando o primeiro. Todavia, segundo ele, o dogma, na sua formulação, é válido somente «para um determinado tempo e circunstâncias» (pp. 127-128). «Num segundo momento do mesmo processo dialético o texto deve poder ser ultrapassado para dar lugar a outro texto do hoje da fé» (p. 128). O relativismo que resulta de semelhantes afirmações torna-se explícito quando L. Boff fala de posições doutrinárias contraditórias entre si, contidas no Novo Testamento (cf. p. 128). Consequentemente «a atitude verdadeiramente católica» seria de «estar fundamentalmente aberto a todas as direções» (p. 128). Na perspectiva de L. Boff a autêntica concepção católica do dogma cai sob o veredito do «dogmatismo»: «Enquanto perdurar este tipo de compreensão dogmática e doutrinária da revelação e da salvação de Jesus Cristo dever-se-á contar irretorquivelmente com a repressão da liberdade de pensamento divergente dentro da Igreja» (pp. 74-75).

A este propósito convém ressaltar que o contrário do relativismo não é o verbalismo ou o imobilismo. O conteúdo último da revelação é o próprio Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, que nos convida à comunhão com Ele; todas as palavras referem-se à Palavra, ou — como diz São João da Cruz: «... a su Hijo ... todo nos habló junto y de una vez en esta sola Palabra y no tiene más que hablar» (Subida del Monte Carmelo, II, 22, 3). Mas nas palavras, sempre analógicas e limitadas, da Escritura e da fé autêntica da Igreja, baseada na Escritura, exprime-se, de modo digno de fé, a verdade acerca de Deus e acerca do homem. A constante necessidade de interpretar a linguagem do passado, longe de sacrificar esta verdade, torna-a, antes, acessível e desenvolve a riqueza dos textos autênticos. Avançando, guiada pelo Senhor, que é o caminho e a verdade (Jo 14, 16), a Igreja, que ensina e que crê, está convencida de que a verdade expressa pelas palavras de fé não só não oprime o homem, mas o liberta (Jo 8, 32) e é o único instrumento de verdadeira comunhão entre os homens de diversas classes e opiniões, enquanto uma concepção dialética e relativizante o expõe a um decisionismo arbitrário.

No passado, esta Congregação teve ocasião de mostrar que o sentido das fórmulas dogmáticas permanece sempre verdadeiro e coerente, determinado e irreformável, embora possa ser ulteriormente esclarecido e melhor compreendido (cf. Mysterium Ecclesiae, n. 5: AAS LXV [1973], pp. 403-404).

Para continuar na sua função de sal da terra, que nunca perde o seu sabor, o «depositum fedei » deve ser fielmente conservado na sua pureza, sem deslizar no sentido de um processo dialético da história e em direção ao primado da praxis.

O EXERCÍCIO DO PODER SAGRADO

Uma «grave patologia» de que, segundo L. Boff, a Igreja romana deveria livrar-se, é provocada pelo exercício hegemónico do poder sagrado que, além de torná-la uma sociedade assimétrica, teria também sido deformado em si mesmo.

Dando por certo que o eixo organizador de uma sociedade coincide com o modo específico de produção que lhe é próprio, e aplicando este princípio à Igreja, L. Boff afirma que houve um processo histórico de expropriação dos meios de produção religiosa por parte do clero em prejuízo do povo cristão que, em consequência, teria sido privado de sua capacidade de decidir, de ensinar etc. (cf. pp. 75, 215 ss., 238-239). Além disso, após ter sofrido esta expropriação, o poder sagrado teria também sido gravemente deformado, vindo a cair deste modo nos mesmos defeitos do poder profano em termos de dominação, centralização, triunfalismo (cf. pp. 98, 85, 91 ss.). Para remediar estes inconvenientes, propõe-se um novo modelo de Igreja, no qual o poder seria concebido sem privilégios teológicos, como puro serviço articulado de acordo com as necessidades da comunidade (cf. pp. 207, 108).

Não se pode empobrecer a realidade dos sacramentos e da palavra de Deus enquadrando-a no esquema da «produção e consumo», reduzindo deste modo a comunhão da fé a um mero fenómeno sociológico. Os sacramentos não são «material simbólico», a sua administração não é produção, a sua recepção não é consumo. Os sacramento são dom de Deus. Ninguém os «produz». Todos recebemos por eles a graça de Deus, os sinais do eterno amor. Tudo isto está além de toda produção, além de todo fazer e fabricar humano. A única medida que corresponde à grandeza do dom é a máxima fidelidade à vontade do Senhor, de acordo com a qual todos seremos julgados — sacerdotes e leigos — sendo todos «servos inúteis» (Lc 17, 10). Existe sempre, decerto, o perigo de abusos; põe-se sempre o problema de como garantir o acesso de todos os fiéis à plena participação na vida da Igreja e na sua fonte, isto é, na vida da Senhor. Mas interpretar a realidade dos sacramentos, da hierarquia, da palavra e de toda a vida da Igreja em termos de produção e de consumo, de monopólio, expropriação, conflito com o bloco hegemónico, ruptura e ocasião para um modo assimétrico de produção, equivale a subverter a realidade religiosa. Ao contrário de ajudar na solução dos verdadeiros problemas, este procedimento leva, antes, à destruição do sentido autêntico dos sacramentos e da palavra da fé.

O PROFETISMO NA IGREJA

O livro «Igreja: Carisma e Poder» denuncia a hierarquia e as instituições da Igreja (cf. pp. 65-66, 88, 239-240). Como explicação e justificação para semelhante atitude reivindica o papel dos carismas e, em particular, do profetismo (cf. pp. 237-240, 246, 247). A hierarquia teria a simples função de «coordenar», de «propiciar a unidade, a harmonia entre os vários serviços», de «manter a circularidade e impedir as divisões e sobreposições», descartando pois desta função « a subordinação imediata de todos aos hierarcas » (cf. p. 248).

Não há dúvida de que todo o povo de Deus participa do múnus profético de Cristo (cf. LG 12); Cristo cumpre o seu múnus profético não só por meio da hierarquia, mas também por meio dos leigos (cf. ib. 35). Mas é igualmente claro que a denúncia profética na Igreja, para ser legítima, deve permanecer sempre a serviço, para a edificação da própria Igreja. Esta não só deve aceitar a hierarquia e as instituições, mas deve também colaborar positivamente para a consolidação da sua comunhão interna; além disso, pertence à hierarquia o critério supremo para julgar não só o exercício bem orientado da denúncia profética, como também a sua autenticidade (cf. LG 12).

CONCLUSÃO

Ao tornar público o que acima ficou exposto, a Congregação sente-se na obrigação de declarar, outrossim, que as opções aqui analisadas de Frei Leonardo Boff são de tal natureza que põem em perigo a sã doutrina da fé, que esta mesma Congregação tem o dever de promover e tutelar.

O Sumo Pontífice João Paulo II, no decorrer de uma Audiência concedida ao Cardeal Prefeito que subscreve este documento, aprovou a presente Notificação, deliberada em reunião ordinária da Congregação para a Doutrina da Fé, e ordenou que a mesma fosse publicada.

Roma, Sede da Congregação para a Doutrina da Fé, 11 de Março de 1985.

Joseph Card. Ratzinger
Prefeito

+ Alberto Bovone
Arcebispo tit. de Cesarea de Numidia
Secretário