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19/08/2014

A oração deve enraizar-se na alma

A verdadeira oração, a que absorve todo o indivíduo, não a favorece tanto a solidão do deserto como o recolhimento interior. (Sulco, 460)

O caminho que conduz à santidade é o caminho da oração; e a oração deve enraizar-se pouco a pouco na alma, como a pequena semente que se tornará mais tarde árvore frondosa.

Começamos com orações vocais, que muitos de nós repetimos desde crianças: são frases ardentes e simples, dirigidas a Deus e à Sua Mãe, que é nossa Mãe. De manhã e à tarde, não um dia, mas habitualmente, ainda renovo aquele oferecimento que os meus pais me ensinaram: Ó Senhora minha, ó minha mãe, eu me ofereço todo a Vós. E, em prova da minha devoção para convosco, Vos consagro neste dia os meus olhos, os meus ouvidos, a minha boca, o meu coração... Não será isto, de algum modo, um princípio de contemplação, uma demonstração evidente de confiante abandono? Que dizem aqueles que se querem, quando se encontram? Como se comportam? Sacrificam tudo o que são e tudo o que possuem pela pessoa que amam.


Primeiro uma jaculatória, e depois outra e outra... Até que parece insuficiente esse fervor, porque as palavras se tornam pobres...: e abrem-se as portas à intimidade divina, com os olhos postos em Deus sem descanso e sem cansaço. Vivemos então como cativos, como prisioneiros. Enquanto realizamos com a maior perfeição possível, dentro dos nossos erros e limitações, as tarefas próprias da nossa condição e do nosso ofício, a alma anseia escapar-se. Vai até Deus como o ferro atraído pela força do íman. Começa-se a amar Jesus de forma mais eficaz, com um doce sobressalto. (Amigos de Deus, nn. 295–296)

Temas para meditar 210


Temperança


A temperança é a virtude que harmoniza as exigências do espírito e da matéria, na unidade substancial da pessoa.



Definição de Temperança

Bento VXI – Pensamentos espirituais 12

 
Barreiras dos corações



Passando através das portas fechadas, o Senhor Ressuscitado entra no lugar onde se encontram os discípulos e saúda-os duas vezes, dizendo: «A paz esteja convosco!». Nós fechamos as nossas portas constantemente; continuamente, queremos pôr-nos em lugar seguro onde não sejamos perturbados pelos outros nem por Deus. Por isso, apenas podemos suplicar constantemente ao Senhor que venha ter connosco e que, ultrapassando as nossas barreiras, nos traga a sua salvação.


(BENTO XVI, Homilia da Missa de Pentecostes 2005.05.15)

Tratado da lei 89

Questão 108: Do conteúdo da lei nova.

Art. 3 — Se a lei nova ordenou suficientemente os atos internos do homem.

O terceiro discute-se assim. — Parece que a lei ordenou insuficientemente os actos internos do homem.

1. — Pois, são dez os mandamentos que ordenam o homem para Deus e para o próximo. Ora, o Senhor deu complemento só a três deles, a saber: sobre a proibição do homicídio, sobre a do adultério, e sobre a do juramento falso. Logo, ordenou o homem insuficientemente, omitido o complemento aos outros preceitos.

2. Demais. — O Senhor não ordenou nada, no Evangelho, sobre os preceitos judiciais, salvo sobre o repúdio da esposa, sobre a pena de talião e sobre a perseguição aos inimigos. Ora, há muitos outros preceitos judiciais na lei antiga, como já se disse (q. 104, a. 4, q. 105). Logo, neste ponto, ordenou insuficientemente a vida do homem.

3. Demais. — A lei antiga, além dos preceitos morais e judiciais, continha alguns outros, cerimoniais, sobre os quais o Senhor nada ordenou. Logo, ordenou insuficientemente.

4. Demais. — É da boa disposição interna da mente não fazer o homem nenhuma boa obra visando qualquer fim temporal. Ora, há muitos outros bens temporais que não o aplauso humano, pois, há muitas outras obras boas além do jejum, da esmola e da oração. Logo, o Senhor ensinou inconvenientemente quando, só em relação a essas três obras, mandou evitar a glória do aplauso humano, e nada ensinou sobre os demais bens terrenos.

5. Demais. — É naturalmente ínsito no homem procurar as coisas necessárias à vida, e isso lhe é comum com os irracionais. Donde, diz a Escritura (Pr 6, 6-8): Vai ter, ó preguiçoso, com a formiga, e considera os seus caminhos, a qual, não tendo condutor, nem mestre, faz o seu provimento no estio, e ajunta no tempo da ceifa de que se sustentar. Ora, todo preceito estabelecido contra a inclinação da natureza é iníquo, por ser contra a lei natural. Logo, o Senhor proibiu inconvenientemente ao homem a busca do alimento e do vestuário.

6. Demais. — Não se deve proibir nenhum acto virtuoso. Ora, o juízo é um acto de justiça, conforme a Escritura (Sl 18, 15): Até que a justiça venha a fazer juízo. Logo, o Senhor proibiu inconvenientemente o juízo. E portanto, a lei nova ordenou insuficientemente os actos internos.

Mas, em contrário, Agostinho diz: Devemos considerar que, quando o Senhor disse: — Quem ouve estas minhas palavras — significa com isso suficientemente que o seu sermão contem plenamente todos os preceitos que regulam a vida cristã.

Como resulta do lugar aduzido de Agostinho, o sermão que o Senhor fez na montanha contém toda a regulamentação da vida cristã, e ordena perfeitamente os actos humanos internos. Pois, depois de declarar o fim da beatitude e de exaltar a dignidade dos Apóstolos, que deviam divulgar a doutrina evangélica, ordena os actos humanos internos. Primeiro, os do homem para consigo mesmo, depois, os relativos ao próximo.

Os actos relativos a nós mesmos, ele ordena-os de dois modos, conforme aos nossos dois movimentos internos, que levam aos actos — a vontade de agir e a intenção final. — Por isso, primeiro ordena a vontade do homem, pelos diversos preceitos da lei, de modo que se abstenha, não só das obras externas más, em si mesmas, mas também das internas e das ocasiões más. — Depois, ordena a intenção humana, dizendo que, em nossos actos não devemos buscar nem a glória humana, nem as riquezas mundanas, o que é entesourar na terra.

Em seguida, ordena o movimento interior do homem relativamente ao próximo. Assim, não devemos julgá-lo temerária, injusta ou presunçosamente. Nem devemos ser de tal modo negligentes que lhe entreguemos as coisas sagradas, se forem indignos.

E, por último, ensina o modo de cumprir a doutrina evangélica. Que é implorar o auxílio divino, esforçar-se por entrar pela porta estreita da virtude perfeita, tomar cautela para não se deixar transviar pelos sedutores. E faz ver que a observação dos mandamentos é necessária à virtude, não bastante só a confissão da fé, ou obrar milagres, ou só ouvir a doutrina.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — O Senhor completou só os preceitos da lei dos quais os Escribas e os Fariseus não tinham inteligência recta. E isto dava-se, principalmente, sobre três preceitos do decálogo. — Assim, quanto à proibição do adultério e do homicídio, pensavam que só era proibido o acto exterior e não, o desejo interior. E isso pensavam mais no concernente ao adultério e ao homicídio, do que ao furto e ao falso testemunho. Porque o movimento da ira, tendente ao homicídio, e o da concupiscência, tendente ao adultério, são considerados como de certo modo inerentes à natureza, isso não se dá com o desejo de furtar ou de proferir falso testemunho. — Deste tinham falsa inteligência, pensando que o perjúrio é, por certo, pecado, mas que o juramento deve em si mesmo ser desejado e repetido, porque, segundo lhes parecia, implica reverência a Deus. Por isso, o Senhor mostrou, que não devemos desejar, como bom, o juramento, mas é melhor falar sem jurar, salvo se houver necessidade.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Sobre os preceitos judiciais os Escribas e os Fariseus erravam de dois modos. — Primeiro, pensando que eram justos em si mesmos certos preceitos estabelecidos por Moisés, como permissões. Assim, o repúdio da esposa e receber usuras dos estranhos. Por isso, o Senhor proibiu o repúdio da mulher (Mt 5, 32) e receber usuras (Lc 6, 35): emprestai sem dai esperardes nada.

De outro modo erravam, pensando que certas práticas que a lei ordenava por justiça, deviam ser feitas por espírito de vingança, cobiça das coisas temporais ou ódio dos inimigos. E isto em relação a três preceitos. — Assim, julgavam lícito o desejo da vingança, por causa do preceito sobre a pena de talião, ora, esse preceito foi dado para se observar à justiça e não para se tirar vingança. E por isso o Senhor, para evitar a má inteligência dele, ensina que a alma do homem deve estar preparada a sofrer ainda maiores injúrias, se necessário for. — Pensavam ser lícito a moção da cobiça, por causa dos preceitos judiciais que ordenavam que fosse feita a restituição da coisa furtada, mesmo com algum acréscimo, como já dissemos (q. 105, a. 2 ad 9). E isso a lei ordenou para fazer observar a justiça e não para dar lugar a cobiça. Por isso o Senhor ensina que não exijamos nada pela cobiça, mas antes, estejamos prontos a dar ainda mais se for necessário. — Enfim, tinham como lícito a moção do ódio, por causa do preceito legal que mandava matar os inimigos, o que a lei instituiu para que se cumprisse a justiça, como já dissemos (q. 105, a. 3 ad 4), e não para se saciarem os ódios. E, por isso o Senhor ensina a amarmos os inimigos e estarmos prontos se for necessário, a lhes fazer benefícios. — Assim, no dizer de Agostinho, esses preceitos visam à preparação da alma.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Os preceitos morais deviam absolutamente permanecer na lei nova, pois em si mesmos se incluem na essência da virtude. Enquanto os preceitos judiciais não deviam necessariamente continuar, do modo pelo qual a lei os determinou, mas foram deixados ao arbítrio humano, que os determinassem de um ou de outro modo. Portanto, o Senhor nos ordenou convenientemente em relação a esses dois géneros de preceitos. — Quanto à observação dos preceitos cerimoniais, ela desapareceu totalmente, com a aplicação da lei nova. Por isso, em relação a esses preceitos, o Senhor nada ordenou, no seu ensinamento comum. Ensinou porém noutro ponto, que todo culto material, determinado na lei antiga, devia ser mudado, na vigência da lei nova. Assim, diz (Jo 4, 21-23): É chegada a hora em que vós não adorareis o Pai, nem neste monte nem em Jerusalém, mas os verdadeiros adoradores hão-de adorar o Pai em espírito e verdade.

RESPOSTA À QUARTA. — Todas as coisas do mundo se reduzem a três: as honras, as riquezas, e os prazeres, conforme a Escritura (1 Jo 2, 16): Tudo o que há no mundo é concupiscência da carne, que pertence aos prazeres da carne, e concupiscência dos olhos, que respeita às riquezas, e soberba da vida, que diz respeito à ambição de glória e honra. Ora, os prazeres supérfluos da carne, a lei não os prometeu, mas ao contrário, proibiu. Prometeu porém, em troca, uma honra excelsa e a abundância das riquezas: Se tu ouvires a voz do Senhor teu Deus, Ele te exaltará sobre todas as nações que há na terra. Isso, quanto à honra. E pouco adiante acrescenta: O Senhor te fará abundante de todos os bens, quanto às riquezas. Mas essas promessas os judeus entendiam-nas tão estultamente, que pensavam se devia servir a Deus por causa delas, como se fossem o fim. — Donde, para o evitar, o Senhor mostrou, primeiro, que não devemos praticar obras virtuosas por causa da glória humana. E ensina serem três as obras a que todas as mais se reduzem. Pois, tudo o que fazemos para refrear as nossas concupiscências se reduz ao jejum, tudo o que fazemos por amor ao próximo se reduz à esmola, enfim tudo o que fazemos para o culto de Deus se reduz à oração. E essas três obras ele considera-as especiais, como que sendo as importantes, e pelas quais os homens costumam principalmente buscar a glória. — Em segundo lugar, ensinou que não devemos por nas riquezas o nosso fim, quando disse: Não queirais entesourar para vós tesouros na terra.

RESPOSTA À QUINTA. — O Senhor não proibiu os cuidados necessários, mas só os desordenados. Ora, há quatro cuidados desordenados, que devemos evitar, relativamente aos bens temporais. — Primeiro, não constituirmos neles o nosso fim, nem servirmos a Deus, por causa das necessidades de comer e vestir. Por isso diz: Não queirais entesourar para vós, etc. — Segundo, não devemos buscar as coisas temporais, desesperando do auxílio divino. Por isso o Senhor diz: O vosso Pai sabe que tendes necessidade de todas elas. — Terceiro, os nossos cuidados não hão-de ser presunçosos, de modo a confiarmos em nós mesmos, pensando que com o nosso próprio esforço, sem o auxílio divino, poderemos obter o necessário à vida. O que o Senhor nega, dizendo que o homem não pode acrescentar nada à sua estatura. — Quarto, o homem inquieta-se com o tempo das suas necessidades, preocupando-se, no presente, com o que só respeita ao futuro. E por isso, o Senhor diz: Não andeis inquietos pelo dia de amanhã.

RESPOSTA À SEXTA. — O senhor não proíbe o juízo da justiça, sem o qual as coisas santas não podem ser negadas aos indignos, mas, o juízo desordenado, como dissemos.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


Evang.; Coment.; Leit. Esp. (Magistério - Ratzinguer)

Tempo comum XX Semana

Evangelho: Mt 19, 23-30

23 Jesus disse a Seus discípulos: «Em verdade vos digo que um rico dificilmente entrará no Reino dos Céus. 24 Digo-vos mais: É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, que entrar um rico no Reino dos Céus». 25 Os discípulos, ouvidas estas palavras, ficaram muito admirados, dizendo: «Quem poderá, então, salvar-se?». 26 Porém, Jesus, olhando para eles, disse-lhes: «Aos homens isto é impossível, mas a Deus tudo é possível». 27 Então Pedro, tomando a palavra, disse-Lhe: «Eis que abandonámos tudo e Te seguimos; qual será a nossa recompensa?». 28 Jesus disse-lhes: «Em verdade vos digo que, no dia da regeneração, quando o Filho do Homem estiver sentado no trono da Sua glória, vós, que Me seguistes, também estareis sentados sobre doze tronos, e julgareis as doze tribos de Israel. 29 E todo aquele que deixar a casa, ou os irmãos ou irmãs, ou o pai ou a mãe, ou os filhos, ou os campos, por causa do Meu nome, receberá cem vezes mais e possuirá a vida eterna. 30 Muitos dos primeiros serão os últimos, e muitos dos últimos serão os primeiros.

Comentário:

Quem, por mais que empenhe, pretende alcançar a meta tem, antes de mais, de convencer-se de duas coisas:

A primeira: que por si mesmo, sem ter alguém que o guie, aconselhe e o ajude a estabelecer um ‘plano de treino’, nunca conseguirá o que pretende!

A segunda: que só com o auxílio divino solicitado com perseverança, fé e esperança, lhe será possível percorrer todo o caminho que leva à salvação eterna.

Daqui que, cientes destas verdades, recorrer à direcção espiritual, é a atitude certa a tomar.

(ama, comentário sobre Mt 19, 27-29, 2013.08.20)

Leitura espiritual



Magistério

cardeal joseph ratzinger

Algumas perguntas pessoais

…/11

O "giro linguístico".

O fundamento para a renúncia inequívoca à verdade estriba no que hoje se denomina o "giro linguístico": não se poderia remontar para além da linguagem e das suas representações, a razão estaria condicionada pela linguagem e vinculada à linguagem. Já em 1901 F. Mauthner cunhou a seguinte frase: "O que se denomina pensamento é pura linguagem". M. Reiser comenta, neste contexto, o abandono da convicção de que com meios linguísticos se pode ascender ao que é supra-linguístico. O relevante exegeta protestante U. Luz afirma [...] que a crítica histórica abdicou na Idade Moderna da questão da verdade, e considera-se obrigado a aceitar e reconhecer como correta essa capitulação: agora já não haveria uma verdade a buscar para além do texto, mas apenas posições sobre a verdade que concorreriam entre si, ofertas de verdade que seria preciso defender com um discurso público no mercado das visões do mundo.

Quem medita sobre semelhantes modos de ver as coisas, perceberá que lhe vem quase que inevitavelmente à memória uma passagem profunda do Fedro de Platão. Nela, Sócrates conta a Fedro uma história ouvida dos antigos, que "tinham conhecimento do que é verdadeiro". Certa vez Thot, o "pai das letras" e o "deus do tempo", teria visitado o rei egípcio Thamus, de Tebas. Instruiu o soberano em diversas artes que havia inventado, e especialmente na arte de escrever que tinha concebido. Ponderando o seu próprio invento, disse ao rei: "Este conhecimento, ó rei, tornará os egípcios mais sábios e fortalecerá a sua memória; é o elixir da memória e da sabedoria". Mas o rei não se deixou impressionar. Previu o contrário como consequência do conhecimento da escrita:

"Este método produzirá esquecimento nas almas dos que o aprenderem porque descuidarão o exercício da memória, já que agora, fiando-se da escrita externa, recordarão apenas de uma maneira externa, não a partir do seu próprio interior e de si mesmos. Por conseguinte, tu inventaste um meio, não para recordar, mas para perceber, e transmites aos teus aprendizes apenas a representação da sabedoria, não a própria sabedoria. Pois agora são eruditos em muitas coisas, mas sem verdadeira instrução, e assim pensam ser entendidos em mil coisas quando na realidade não entendem nada, e são gente com quem é difícil tratar, pois não são verdadeiros sábios, mas sábios apenas na aparência".

Quem pensa no modo como hoje os programas de televisão do mundo inteiro inundam o homem com informações e o tornam assim "sábio na aparência"; quem pensa nas enormes possibilidades do computador e da Internet, que por exemplo permitem a quem consulta ter imediatamente à sua disposição todos os textos de um Padre da Igreja nos quais aparece uma palavra, sem no entanto ter compreendido o seu pensamento –esse não considerará exageradas as prevenções do rei. Platão não rejeita a escrita enquanto tal, como nós também não rejeitamos as novas possibilidades de informação, antes fazemos delas um uso agradecido; mas dá um sinal de alerta cuja seriedade se comprova diariamente pelas consequências do "giro linguístico", como também por muitas circunstâncias que nos são familiares a todos.
H. Schade mostra o núcleo daquilo que Platão tem a dizer-nos hoje quando escreve: "É acerca do predomínio de um mero método filológico e da consequente perda da realidade que Platão nos previne".

Quando a escrita, o escrito, se converte em barreira que oculta o conteúdo, transforma-se numa anti-arte, que não torna o homem mais sábio, mas leva-o a extraviar-se numa sabedoria falsa e doente. Por isso, em face do "giro linguístico", A. Kreiner adverte com razão: "O abandono da convicção de que se pode remeter com meios linguísticos a conteúdos extralinguísticos equivale ao abandono de um discurso que de algum modo ainda estava cheio de sentido". E sobre esta mesma questão o Papa [João Paulo II] comenta na Encíclica [Fides et ratio]. "A interpretação desta Palavra (a de Deus) não pode levar-nos de interpretação em interpretação, sem nunca chegarmos a descobrir uma afirmação simplesmente verdadeira".
O homem não está aprisionado na sala de espelhos das interpretações; pode e deve buscar o acesso ao real, que está além das palavras e se lhe revela nas palavras e através delas


[i].


Outras religiões


Intolerância religiosa?

Com muita frequência, alguns interpretam o facto de anunciar Cristo como uma ruptura no diálogo com as outras religiões. Como é possível anunciar Cristo e dialogar ao mesmo tempo?

[...] Cristo é totalmente diferente de todos os fundadores de outras religiões, e não pode ser reduzido a um Buda, ou a um Sócrates, ou a um Confúcio. É realmente a ponte entre o céu e a terra, a luz da verdade que se mostrou a todos nós. Mas o dom de conhecer Jesus não significa que não haja fragmentos importantes de verdade em outras religiões.

À luz de Cristo, podemos instaurar um diálogo fecundo com um ponto de referência comum, e assim podemos ver como todos esses fragmentos de verdade contribuem para um aprofundamento da nossa própria fé e para uma autêntica comunhão espiritual da humanidade [ii].

Vítima da intolerância.

A Igreja declara-se contra a intolerância. Mas não é ela mesma vítima da intolerância?

Com efeito. Houve, por um lado, filosofias de estilo totalitário [que a perseguiram], embora na actualidade o marxismo esteja em crise. Por outro, o racionalismo agnóstico não é tão pacífico como poderia parecer. Alguns consideram a Igreja o último baluarte da intolerância, mas quando combatem essa [pretensa] intolerância, tornam-se eles mesmos intolerantes. E então a intolerância pode converter-se em violência [iii].

Liberdade de opinião? Não quereria entrar aqui nas complexas discussões dos últimos anos, mas apenas ressaltar um aspecto fundamental para todas as culturas: o respeito pelo que é sagrado para outra pessoa, e particularmente o respeito pelo sagrado no sentido mais alto, por Deus. É lícito supor que deveríamos poder encontrar esse respeito mesmo em quem não está disposto a crer em Deus. Onde se viola esse respeito, perde-se algo essencial na sociedade.

Na sociedade actual, graças a Deus, multa-se todo aquele que desonra a fé de Israel, a sua imagem de Deus, as suas grandes figuras. Multa-se também aquele que vilipendia o Corão e as convicções de fundo do Islão. Mas quando se trata de Cristo e do que é sagrado para os cristãos, a liberdade de opinião aparece como o bem supremo, cuja limitação representaria uma ameaça ou até uma destruição da tolerância e da liberdade em geral.
No entanto, a liberdade de opinião tem um limite: não pode destruir a honra e a dignidade do outro; não há liberdade para mentir ou para destruir os direitos humanos.

O Ocidente sente um ódio por si mesmo que é estranho e só pode ser considerado patológico. Tenta, louvavelmente, abrir-se, cheio de compreensão, para valores externos, mas já não se ama a si próprio; só vê da sua História o que é censurável e destrutivo, ao mesmo tempo que não é capaz de perceber o que é grande e puro.
A Europa precisa de uma nova aceitação de si própria - embora certamente crítica e humilde -, se quiser verdadeiramente sobreviver [iv].

Todas as religiões conduzem à salvação?

Ultimamente, vem-se impondo de modo bastante geral esta tese: todas as religiões são caminhos de salvação. Talvez não o caminho ordinário, mas ao menos caminhos "extraordinários" de salvação: por todas as religiões se chegaria à salvação. Isto transformou-se na visão habitual.

Semelhante tese não corresponde apenas à ideia da tolerância e do respeito pelos outros que hoje nos é imposta. Corresponde também à imagem moderna de Deus: Deus não pode rejeitar homem algum apenas porque não conhece o cristianismo e, em consequência, cresceu noutra religião. Aceitará a sua vida religiosa da mesma forma que faz com a nossa.

Embora esta tese - reforçada nos últimos tempos com muitos outros argumentos – seja bastante clara à primeira vista, não deixa de suscitar dúvidas. Pois as religiões particulares não exigem apenas coisas diferentes, mas também coisas opostas. [...]

Sendo assim, está-se aceitando como válido que atitudes contraditórias conduzem à mesma meta; em poucas palavras, estamos novamente diante da questão do relativismo.

Pressupõe-se sub-repticiamente que, no fundo, todos os conteúdos são igualmente válidos. O que é que vale realmente, não o sabemos.

Cada um tem de percorrer o seu caminho, ser feliz à sua maneira, como dizia Frederico II da Prússia. Assim, a cavalo das teorias da salvação, o relativismo torna a entrar sub-repticiamente pela porta traseira: a questão da verdade é separada da questão das religiões e da salvação. A verdade é substituída pela boa intenção; a religião mantém-se no plano subjetivo, porque não se pode conhecer aquilo que é objetivamente bom e verdadeiro [v].

Todas as religiões são boas?

As religiões (e agora também o agnosticismo e o ateísmo) são consideradas iguais. Mas com certeza isto não é assim. Com efeito, há formas de religião degeneradas e doentias, que não elevam o homem, mas o alienam: a crítica marxista da religião não carecia totalmente de base.
Também as religiões nas quais é preciso reconhecer uma grandeza moral, e que estão a caminho da verdade, podem adoecer em certos trechos desse caminho. No hinduísmo (que mais propriamente é um nome coletivo para diversas religiões), há elementos grandiosos, mas também aspectos negativos: por exemplo o entrelaçamento com o sistema de castas, a prática da queima de viúvas - que se formou a partir de representações inicialmente simbólicas -, bem como as aberrações do shaktismo [vi], para mencionar apenas um par de situações.

Também o Islão, com toda a grandeza que representa, está continuamente exposto ao perigo de perder o equilíbrio, de dar espaço à violência e deixar que a religião deslize para o ritualismo externo.

E naturalmente há também, como todos nós bem sabemos, formas doentias no cristianismo.
Assim aconteceu quando os cruzados, na conquista da cidade santa de Jerusalém, em que Cristo morreu por todos os homens, mergulharam muçulmanos e judeus num banho de sangue. Isto significa que a religião exige discernimento, discernimento em relação às formas das religiões e discernimento no interior da própria religião, conforme o seu próprio nível.

Com o indiferentismo quanto aos conteúdos e às ideias -todas as religiões, embora distintas, seriam iguais -, não se pode ir adiante. O relativismo é perigoso, tanto para a formação do ser humano individualmente como em comunidade. A renúncia à verdade não cura o homem. Não se pode esquecer o enorme mal que se fez na História em nome de opiniões e intenções boas [vii].

Salvação e moral.

Quando se fala do significado salvífico das religiões, surpreendentemente pensa-se, na maioria das vezes, apenas em que todas possibilitariam a vida eterna, com o que se acaba neutralizando o pensamento da vida eterna, pois todo o mundo chegaria a ela de uma forma ou de outra. Mas assim rebaixa-se de maneira inconveniente a questão da salvação.

O céu começa na terra. A salvação no além pressupõe uma vida correspondente no aquém. Não podemos, pois, perguntar-nos apenas quem vai para o céu e desentender-nos simultaneamente da questão do céu. É necessário perguntar o que é o céu e como vem à terra. A salvação do além deve refletir-se numa forma de vida que torne o homem humano no aquém, isto é, neste mundo, e portanto conforme com a vontade de Deus.

Isto significa [...] que, na questão da salvação, é preciso olhar para além das próprias religiões, para um horizonte ao qual pertencem as regras de uma vida recta e justa, regras que não podem ser relativizadas arbitrariamente. Eu diria, pois, que a salvação começa com a vida recta e justa do homem neste mundo, que abarca sempre os dois pólos, o do indivíduo e o da comunidade.

Há formas de comportamento que nunca podem servir para tornar recto e justo o homem, e outras que sempre pertencem ao ser recto e justo do homem. Isto significa que a salvação não está nas religiões como tais, mas depende também de até que ponto levam os homens, junto com elas, ao bem, à busca de Deus, da verdade e do bem. Por isso, a questão da salvação traz sempre consigo um elemento de crítica religiosa, embora também possa aliar-se positivamente com as religiões. Em qualquer caso, tem a ver com a unidade do bem, com a unidade do verdadeiro, com a unidade de Deus e do homem [viii].

O caminho da consciência.

Não disse que a salvação pode ser atingida por todos os caminhos. O caminho da consciência, [que consiste em] manter o olhar focado na verdade e no bem objectivo, é o único caminho, embora possa tomar muitas formas por causa do grande número de pessoas e de situações. Mas o bem é um só, e a verdade não se contradiz. O facto de o ser humano não os atingir não relativiza as exigências da verdade e da bondade. Por isso, não basta permanecer na religião que se herdou, mas é preciso que se esteja atento ao verdadeiro bem e assim se seja capaz de transcender os limites da própria religião.
Mas isto só faz sentido se a verdade e o bem existirem realmente. Seria impossível percorrer o caminho para Cristo se Ele não existisse. Viver com os olhos do coração abertos, purificar-se interiormente e buscar a luz são condições indispensáveis para a salvação humana. Portanto, é absolutamente necessário proclamar a verdade, isto é, fazer brilhar a luz (não a pôr "sob o alqueire, mas num candelabro" [cfr. Jo 5, 14-15] [ix].

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





Notas:
[i] Conferência no encontro de presidentes de comissões episcopais da América Latina para a doutrina da fé, Guadalajara (México), Nov 1996)
[ii] El relativismo, nuevo rostro de Ia intolerância
[iii] L’abolition de l’homme
[iv] Fundamentos espirituales de Europa, conferência na biblioteca do Senado da República Italiana, 13.05.2004; repr. em Zenit, 22.05.2004
[v] Fe, verdad y cultura
[vi] Conjunto de crenças dentro do tantrismo - movimento filosófico e ritualístico que influenciou diversas seitas hinduístas, budistas etc. - que preconiza a realização espiritual por meio de prácticas densamente simbolistas, que em alguns casos abrangem a magia negra, o culto à morte e prácticas sexuais orgiásticas (N. do T.)
[vii] Ibid
[viii] Fe, verdad y cultura
[ix] Entrevista à Frankfurter Aligemeine Zeitung